Brincar com bonecas diz respeito ao gosto dos indivíduos, e não a orientação sexual ou identidade de gênero
Lokman Sevim/Pexels
Brincar com bonecas diz respeito ao gosto dos indivíduos, e não a orientação sexual ou identidade de gênero

Desde tenra idade, é muito comum que as crianças sejam  condicionadas ou no mínimo orientadas a ter determinados comportamentos e aderir a certas brincadeiras divididas entre “de menino” e “de menina”. A propagação de  estereótipos de masculinidade e feminilidade, bem como a falta de tato com crianças que não correspondem a essa expectativa, alimentam, por sua vez, um sistema de violência e repressão das identidades, sejam elas LGBTQIAP+ ou não. 

Entre os muitos tabus que englobam estes conceitos, o famoso “meninos podem brincar de boneca?” é o exemplo mais utilizado para insinuar que usar “brinquedos de menina” interfere na sexualidade de alguém. “A criança não tem em seus primeiros anos de vida a percepção de julgamento”, explica a psicóloga Bruna Rodrigues. 

“O brincar da criança está relacionado com a construção de concepção de mundo que ela tem, logo é extremamente saudável que crianças brinquem com diferentes tipos de brinquedos, pois na vida adulta ela lidará com diferentes atividades. Homens precisam saber cozinhar e lavar roupa, assim como as mulheres precisam saber trocar o óleo do carro”. 

“Em nenhum lugar do mundo um brinquedo irá definir o gênero ou a sexualidade de uma criança”, continua a psicanalista Andrea Ladislau. “Essas crenças são limitantes e impedem as pessoas de serem livres e fazerem uso da liberdade de escolha. As consequências dessa castração, falando em termos psicoterápicos, é sem dúvida a construção de crianças que carregam para a vida adulta a dificuldade de interação social, além de várias amarras que vão fazer esse indivíduo se retrair ao ponto de negar desejos”. 

Cidney Sousa é um homem cisgênero e gay. Ao iG Queer, ele conta que brincava de bonecas quando era criança, mas isso em nada definiu a sua sexualidade. De acordo com ele, julgamento e a pressão partiam majoritariamente dele próprio, devido ao medo das represálias provocadas pela segregação entre “coisas de menina” e “coisas de menino”. 

“Talvez eu me repreendesse mais que qualquer pessoa porque, querendo ou não, crescemos numa cultura que separa as coisas entre ser ‘de menino’ e ser ‘de menina’, então era confuso para mim. Eu não tinha o desejo de ser uma garota, mas ao mesmo tempo era como se [brincar de bonecas] pertencesse somente ao mundo delas, o que me fazia pensar que seria mais fácil se eu fosse uma delas porque não teria que me esconder. É difícil ter que esconder algo que você ama, especialmente para mim. Mesmo criança, e sem nenhuma visão mais rebuscada de mundo, eu já entendia que precisava me permitir existir para além do que as pessoas esperavam de um garoto, ou do que um garoto deveria ser”, explica. 

No caso de Cidney, a divisão de atividades era bastante presente na escola e, assim como brincar de bonecas, preferir estar em contato com estereótipos de feminilidade não exerceu nenhuma influência na sexualidade dele, uma vez que naquela época Cidney sequer sabia exatamente o que era ser gay. 

“Lembro especialmente das aulas de educação física. As meninas jogavam vôlei e os meninos, futebol. Eu nunca gostei de esporte algum, mas futebol era de fato a coisa mais sem graça ao meu ver, por isso, se a outra opção era vôlei, optaria por ela, mas não era permitido – pelo menos não sempre. Era como se sempre fosse preciso escolher um lado baseado no seu sexo”, diz. 

“Sempre me conectei mais com esse mundo dito feminino, mas em nenhum momento me enxerguei como mulher, e eu nem sequer sabia o que era ser gay, eu só queria brincar e queria que fosse mais simples. Olhando para aquela época agora, é estranho pensar que uma criança se divertindo possa causar tanto incômodo ou perturbação em outras pessoas”.

Andrea aponta que a escola tem o papel justamente de desconstruir os preconceitos e proporcionar que os indivíduos cresçam livres do reforço constante de estereótipos. Uma vez inseridas em ambientes saudáveis, as crianças se tornam adultos muito menos impedidos, porém a especialista reforça que este não é um papel exclusivo do ambiente escolar. 

“Quanto mais [a escola] informar e educar de maneira livre, teremos crianças e adultos mais felizes e menos enraizados na limitação. Contudo, esse papel de educar e orientar não é apenas da escola, e sim um conjunto entre ela e os pais e responsáveis. Dentro de casa o diálogo também precisa ser aberto, a criança não pode ter medo de perguntar. Permitir a expressão do que se deseja e acredita é um ato de amor e empatia que começa desde cedo”, ressalta. 

Cidney explica que dentro de casa felizmente não houve nenhum tipo de repressão, mas o mundo do lado de fora não foi tão gentil. “Na minha casa nunca sofri preconceito algum, o problema é quando você sai para vivenciar o mundo porque acaba se deparando com todo tipo de gente. Já ouvi muito ‘tem que aprender a virar homem’ por aí, e sempre me questionei se só existe uma maneira de ser homem, o que implica em ser grosso e violento, na maioria das vezes”. 

“Mas o interessante é que se você tiver força o suficiente, ou só um pouco de ousadia, acaba se reinventando. Antes de tudo, você precisa libertar a si mesmo, algo que, talvez, não tenha feito de forma consciente, mas acontecia sempre que eu escolhia alguma ‘coisa de menina’, como um caderno cor de rosa no ensino médio, ou usar uma maquiagem em 2022 só porque estou a fim”, complementa. 

De acordo com ele, as mudanças acontecem por meio de pequenas ações, até porque os estereótipos normalmente são fomentados em atividades comuns do dia a dia. “Acho que até mesmo pequenos diálogos causam grandes diferenças. Quantas situações não são precisamente relacionadas a uma simples cor como o rosa? Por que não explicar às crianças que cores são apenas cores? Involuntária ou voluntariamente, as escolas deveriam dar às crianças espaço para dialogar sobre isso, elas podem aprender com a gente, adultos, mas também umas com as outras”, comenta. 

Ao ser questionado sobre quais motivos possivelmente levam as pessoas a acreditarem que meninos que brincam de bonecas são gays ou bissexuais, Cidney diz que por existirem muitos homens que, assim como ele próprio, gostavam de boneca e se descobriram LGBT, as pessoas levam como uma norma. “Só que não é tão simples assim”, ele contrapõe. 

“Eu não carrego em mim o sentimento de que ‘me tornei’ alguma coisa. Eu acredito que sempre fui o que sou, só que cada fase da sua vida você vive isso de uma forma diferente. E a maior verdade é que naquela época, entre os meus quatro e 13 anos, eu não fazia ideia do que era se sentir atraído por outro cara. Até porque, que representatividade nós tínhamos como temos hoje no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000? Se eu sou gay foi porque me descobri de uma maneira totalmente desapercebida. Foi pela minha audácia ao ouvir certas coisa e ao invés de me fechar em uma concha”. 

Ele continua ao relatar que as repressões feriram, é claro, mas não há como lutar para sempre contra algo tão intrínseco do ser humano como a sexualidade, afinal ser gay é tão natural quanto ser heterossexual. 

“Não que ofensa não doesse, doía, mas eu não sabia ser outra coisa além de mim mesmo. E isso nem era sobre gostar de outra pessoa, era eu comigo mesmo e um desejo de, sim, se transformar, de ser diferente... quem nunca? A pessoa que você é a partir da sua sexualidade pode se revelar mais tempestuosa que aquelas brincadeiras na infância”, diz.

“A boneca, para mim, representava o poder de ser qualquer coisa. Ela me distanciava do mundo real, e na verdade faz isso até hoje. A diferença é que não existe mais o desejo de ser outra coisa. A boneca me ensinou, desde muito cedo, que não há nada mais lindo do que ser verdadeiramente você, e que em alguns momentos da vida isso vai ser testado, e pessoas vão querer te fazer sentir culpado ou tentar te podar, e querer que você seja menos. Eu só posso dizer que sou grato por ter internalizado aquela voz que dizia ‘seja tudo o que quiser ser’”, conclui.

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