O preconceito enraizado e reproduzido desde a infância e adolescência tem impactos diretos na vida sexual e romância de pessoas LGBTQIAP+
iG Queer
O preconceito enraizado e reproduzido desde a infância e adolescência tem impactos diretos na vida sexual e romância de pessoas LGBTQIAP+

Durante o Mês da Criança, o iG Queer publicou a série "Pequenos Arco-Íris" , composta de três reportagens que abordam a importância de  desconstruir a cis-heteronormatividade desde a infância e as consequências de  manter crianças e adolescentes LGBT em ambientes violentos. Neste último material, além de dar continuidade ao debate sobre o papel da escola dentro deste contexto, o foco é observar quais são os reflexos da LGBTfobia enraizada no começo da vida afetiva e sexual desta comunidade. 

O ambiente de ensino consiste na primeira experiência de socialização dos indivíduos, além de ser um dos locais nos quais as crianças e os jovens passam a maior parte do tempo ao longo do ano. Tendo em vista isso, é muito importante pensar de que forma a escola pode agir em prol do combate à LGBTfobia e ao bullying em geral, dado que a maioria das pessoas LGBT tem histórias e experiências traumáticas envolvendo o colégio. 

“A escola se configura como um espaço coletivo e deve se preocupar em ser um ambiente que cuida do sentimento de comunidade/pertencimento. Cada pessoa que compõe o espaço escolar assume um papel e deve se sentir seguro, ouvido, atendido neste ambiente. São muitas as consequências negativas ao estar num ambiente hostil, podemos destacar a sensação de incompetência/baixa autoestima, a insegurança, desconforto, desconfiança, agressividade, entre tantas outras”, explica a pedagoga Ana Paula Yazbek. 

Ainda de acordo com ela, a forma como as escolas reforçam estereótipos de gênero e normas heterossexuais são os dois principais fatores a serem combatidos em um primeiro momento para que tais ambientes sejam mais saudáveis. “Fomos criados num mundo regido pela lógica heteronormativa. Segmentado pelos universos masculinos e femininos, perpassado por muitos estereótipos do que ‘é normal’ para a sociedade. Há um grande movimento que busca romper esta lógica e creio que a abertura pode se dar desde os primeiros anos”, explica. 

“Quando as escolas optam por não ter espaços e atividades destinadas a meninos ou meninas, quando possibilitam conversas que tragam configurações familiares diversas, personagens/personalidades que não se enquadram num único padrão, por exemplo, estão começando a tocar nesta temática de forma mais honesta e respeitosa. Há ainda um longo caminho de mudança, mas deve haver um começo e, para isso, diálogo, informação e formação devem inaugurar as ações de mudanças. Junto, reforço que desde a educação infantil deve-se buscar a não segmentação das brincadeiras e objetos com a classificação de meninos/meninas. Deve-se também realizar a leitura de bons textos de literatura infantil que podem ser lidos e suscitar conversas com as crianças”, acrescenta a especialista. 

Ao ser questionada sobre os obstáculos enfrentados para conseguir estabelecer ensino de qualidade ligado à diversidade sexual e de gênero nas escolas, Yazbek ressalta que a falta de informação é um ponto que impede muitas pessoas de enxergarem a importância de falar sobre sexualidade e identidade de gênero em sala de aula. “Os leigos e reacionários acreditam que ao tratar deste assunto estamos incentivando escolhas ‘não normativas’ às crianças e jovens, mas este pensamento é muito restrito. Precisa existir um novo olhar para a diversidade, no qual não haja espaço para o preconceito e sim a possibilidade de se falar com respeito e que exista escuta sobre outras percepções de mundo”, comenta. 

Ainda de acordo com ela, apesar do acesso à educação ser um direito garantido por meio da Constituição Federal, não existem ações governamentais voltadas especificamente para promover ambientes escolares mais seguros para pessoas LGBTQIAP+.

“Os nossos representantes abrem a boca com gosto para falar de família, circunscrevendo neste âmbito apenas aquelas ditas ‘convencionais’. Praticamente não vemos no poder público pessoas trans trabalhando (principalmente em cargos de maior visibilidade). Se tivéssemos fóruns organizados para a discussão e esclarecimento do grande público e o tabu pelas orientações sexuais e identificações de gêneros deixassem de ser considerada uma pauta relevante, iríamos iniciar uma possível mudança”, pontua. 

Herbe de Souza, educadora e mulher trans, conta ao iG Queer que seu trabalho inclui a instrução de outros professores para lidarem com questões de gênero e sexualidade. De acordo com ela, é uma iniciativa que ainda encontra obstáculos. 

“Além dos professores de creche, também falamos com professores do Ensino Médio”, explica. “Eles precisam respeitar os corpos em sala de aula. A pessoa trans precisa ser respeitada tanto quanto os demais, mas eu vejo muitos professores que não chamam alunos transgênero pelo nome correto, mesmo sabendo que esse aluno tem tal direito garantido por lei”. 

A especialista conta ainda que quando um aluno muda de escola é importante que os responsáveis fiquem atentos à forma como a instituição vai tratar o jovem em questão e que tipos de preceitos serão passados. “Eu oriento os pais a se informarem e, acima de tudo, ouvirem o filho primeiro. Costumo falar muito francamente e dizer o que o jovem está sujeito a sofrer, mas sempre reforço que os pais não os abandonem porque o problema não está no adolescente, de forma alguma”. 

E na hora de se relacionar, como fica?

Levando em consideração que a escola consiste na primeira experiência de socialização dos indivíduos e que pessoas LGBTs enfrentam vários obstáculos – abordados ao longo desta série –, vale questionar de que forma tudo isso reflete no início da vida afetiva e sexual, seja ainda na adolescência ou no começo da vida adulta – diretamente afetada pelas experiências prévias. 

“As pessoas LGBT podem sim crescer de forma reprimida por conta da  sociedade, família, religião e outras tantas formas e pessoas que pressionam. Essa repressão, restrição, pressão e a própria LGBTfobia tem impactos catastróficos quando, por conta dos traumas vividos, essas pessoas acabam por se relacionarem com indivíduos pelos quais não se sentem atraídos e envolvidos emocionalmente e sexualmente de maneira saudável, além de não se sentirem aceitos e respeitados”, expõe a sexóloga Gislene Teixeira. 

A psicóloga Sophia Izumi, por sua vez, ressalta que o acúmulo de traumas ao longo da vida leva pessoas LGBT a se tornarem adultos com uma autoestima extremamente baixa. “A sensação constante de estar deslocado faz com que muitos adultos cresçam sem se sentirem dignos de afeto”, explica. “Quando converso com meus pacientes, muitos deles têm a não aceitação dos pais como ponto principal, o que os leva a fazerem coisas escondidos e se sentirem culpados por isso. Eles se forçam a fazer o que não querem: a famosa  heterossexualidade compulsória. Isso é muito real e pesado. A pessoa não pode ser quem ela é porque nunca foi proposto a ela um ambiente na qual ela tivesse liberdade, então ela se autossabota e vive uma vida infeliz”. 

“Quando comecei a ganhar a ideia que tinha ‘algo errado’ comigo, acabei me mutilando no sentido de identidade. Me forçava a falar que gostava de garotas e beijar garotas porque eu precisava me enquadrar em um padrão”, conta André Nascimento, escritor e homem gay. “Para piorar, eu sou filho de fazendeiro. Éramos dois homens em casa: eu e meu irmão. Meu pai nunca foi ruim nem cruel, mas era uma pessoa limitada educacionalmente e replicou um padrão de comportamento em cima de mim e do meu irmão. Ele nunca me forçou a nada, mas tivemos sim muitos choques ao longo do caminho”. 

“Eu estudei muito tempo em escola rural, feita para atender os filhos de fazendeiros da região. A maioria dos professores era dali mesmo, então eles também replicavam padrões [cis-heteronormativos]. É claro que antes de mim existiram outros alunos homoafetivos, mas acho que eu fui o primeiro a escancarar a porteira, por assim dizer”, relembra. 

Ele explica que incentivar desde cedo que meninas fiquem apenas com meninos e que meninos fiquem apenas com meninas é um hábito que limita a visão de mundo dos indivíduos e os empurra para caberem em caixas que nem sempre lhes comportam. 

“Eu tenho nojo de quem fala que uma criança pequena vai crescer e casar com beltrano, mesmo sendo brincadeira. Na minha época, enquanto criança, falar isso era muito normal. Vira e mexe eu dizia ter uma namoradinha ou estar gostando de fulana, sendo que não estava. Isso era muito inconsciente, partia de mim. Mais para frente, na adolescência, eu via todo mundo ao meu redor beijando, e o jovem sofre muito com a pressão social. Dos 12 aos 19 anos eu era pressionado nesse sentido: se eu quisesse beijar alguém, teria que ser uma menina, até porque não tinham muitos garotos gays na minha escola e eu não sabia se algum deles teria coragem de ficar comigo e ser alvo de comentários”, conta. 

O escritor comenta ainda que chegou a ter uma namorada, por quem de fato tinha sentimentos, mas que por meio desse relacionamento aprendeu a diferenciar o que sentia por ela do que realmente consistia sua orientação sexual. 

“Foi um momento importante para eu entender que não sentia atração sexual por ela e que não era isso que eu queria. Ela foi alguém muito importante na minha vida, tanto que quando terminamos foi sofrido para nós dois. Em resumo, foi uma experiência importante para autoconhecimento e tomada de decisões”, diz. 

Assim como André, Eduardo Dias também é escritor e um homem gay. Ele conta ao iG Queer que já sofreu pressão para se relacionar com mulheres e explica de onde elas vieram e quais foram os desdobramentos disso. 

“Primeiro teve a pressão dos amigos”, pontua. “Em segundo lugar, eu era muito ligado à igreja, e lá você ouve que é errado [ser LGBT] e que quem é assim tem que se casar com uma mulher e ter filhos. Nesse período [juventude], tive a sensação de que eu tinha que mudar de algum jeito. Eu rezava para Deus me modificar e me fazer gostar de mulher – o que nunca aconteceu, obviamente. Depois disso, tive um momento que acho que toda pessoa LGBT enfrenta, que é o pensamento de ‘vou ficar sozinho para sempre’. Eu aceitei isso na época”, relata. 

Para que o sofrimento de pessoas LGBTQIAP+ seja amenizado, além da escola e da família investirem em abordagem afirmativas, inclusivas e respeitosas, toda a cultura LGBTfóbica precisa mudar, o que não vai acontecer tão cedo, levando em conta que a marginalização de pessoas LGBT é estrutural. Gislene Teixeira ressalta, portanto, a importância de que cada indivíduo trabalhe consigo mesmo para se aceitar e se proporcionar o melhor dentro do que estiver ao alcance. 

“Vá, desbrave o mundo, mas tenha cautela. Busque por informação e conhecimento, converse com profissionais, agende consultas médicas, previna-se, use preservativo e todos os demais meios de prevenção e preservação, seja sexual, afetivo ou emocional. Tenha noção do que lhe faz bem e dá prazer, não se deixe ferir e, acima de tudo, não se diminua para caber em lugar algum”, conclui.

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