Abordar questões LGTBQIAP+ e educar a sociedade sobre o assunto sempre foi um desafio. Nos últimos anos, a naturalização desses assuntos favoreceu que o tópico fosse discutido com um pouco mais de facilidade e abertura; no entanto, quando se fala sobre o ambiente escolar, tanto a estrutura educacional quanto a própria sociedade continua resistente.
Com isso, há iniciativas sociais e até legislativas que tentam minar a educação sobre esse assunto, principalmente para crianças. Com essas noções sociais e políticas ganhando popularidade e sendo reproduzidas no comportamento da sociedade, é comum que esse efeito seja respaldado nas salas de aula.
Como consequência, esses ambientes se tornam censurados para a educação sobre diversidade. Minados pelo currículo oficial, educadores contam de que maneira conseguem “driblar” o currículo oficial.
Dani Caitano, pedagoga que dá aulas para crianças entre seis e sete anos, pesquisa as vivências de professoras lésbicas em sala de aula. Segundo ela, a dificuldade maior em falar sobre diversidade acaba sendo com crianças pequenas. Consequentemente, esse assunto é esbarrado, mesmo que minimamente, na adolescência ao falar sobre educação sexual.
"As crianças se beneficiam dessas experiências. É óbvio que a gente pensa toda uma forma de abordar, ninguém vai chegar lá fazendo doutrinações", afirma Dani. "A educação sexual não é só prevenir violências e abusos. Isso é importante, mas é também para a pessoa poder descobrir o desejo dela, o que ela quer ser acima de tudo", acrescenta.
Legislações e movimentos conservadores anti-LGBT impactam educação
O movimento brasileiro mais conhecido por tentativas de veto de uso de materiais didáticos ou de temas LGBT no currículo escolar é o Escola sem Partido. Criado em 2004, integrantes políticos tinham como intuito sancionar leis que protegessem crianças de uma "doutrinação ideológica de esquerda".
Houve tentativas de se criar um programa que discutisse LGBTfobia nas salas de aula, o Escola sem Homofobia, que tinha como intuito formar educadores para abordar questões de gênero e sexualidade. No entanto, foi vetado em 2011 e ganhou o apelido pelo qual ficaria mais conhecido: o "kit gay".
Pouco antes da eleição do atual presidente, Jair Bolsonaro (sem partido), em 2018, foi adicionado ao PL nº 193/2016, do Escola sem Partido, que assuntos relacionados a orientação sexual ou identidade de gênero, referida no texto como "ideologia de gênero", não podiam fazer parte de planos educacionais. No entanto, o prazo de discussão foi encerrado e o projeto foi arquivado.
Mesmo com o PL derrubado, a política brasileira apresenta resquícios desse pensamento. Exemplo disso é que, neste ano, cerca de 14 estados brasileiros conseguiram avançar com leis para vetar o uso de linguagem neutra no ambiente escolar. Belo Horizonte conseguiu avançar com o PL 54/2021 , que quer "garantir o aprendizado da língua portuguesa de acordo com as normas e orientações legais de ensino", excluindo maneiras de comunicação inclusivas ou neutras.
A movimentação mais recente relacionada ao assunto ocorreu em abril deste ano, quando a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) chegou a votar o PL 504, que proibiria veiculação de propaganda com pessoas LGBTQIAP+ e famílias homoafetivas por "mostrarem práticas danosas e influenciar erroneamente crianças e jovens". Apesar de não dizer respeito diretamente à educação, a forma como o tema foi encarado reforça o estigma da sexualidade para crianças.
“Tentativas de fazer a gente não dar esse âmbito de educação para crianças tem inúmeras. Mas não vai adiantar, porque a gente vai continuar falando sobre isso. Professores LGBTQIA+ vão encontrar essas brechas e, por mais que queiram avançar sobre nossos corpos, a gente vai continuar”, pondera Dani.
Estereótipos sobre gênero em crianças vêm de casa
Se por um lado as famílias se preocupam que as escolas farão mal ao falarem sobre diversidade, são elas próprias quem ensinam noções estereotipadas sobre gênero. O professor Cidney Sousa, que trabalha com educação bilíngue com crianças de cinco a oito anos, exemplificou ao recordar sobre uma aula sobre cores primárias, em que exibiu um vídeo.
“O vídeo diz que em um mundo meio entediante, o azul e o amarelo se conheceram, se casaram e assim nasceu o verde. Só que em nenhum momento aquilo aborda sobre ser homem ou mulher, porque cores são cores, não têm gênero”, explica. No entanto, um dos alunos pareceu confuso e incomodado, pois entendeu que eram dois homens se casando. “Ele olhou para mim e disse ‘two boys’ [dois meninos], e eu dizia ‘no, two colors, no boys’ [não, duas cores, sem meninos]”, lembra.
O professor conta que precisou insistir na explicação algumas vezes porque o garoto não conseguiu compreender tão facilmente a noção de que cores não são realmente atribuídas a gêneros. “Eu nem tenho certeza se ele compreendeu”, diz. Por mais que essa seja uma forma de desconstruir essa linha de pensamento, há obstáculos para poder desmistificar até determinado ponto.
“São ideias que os pais ou responsáveis acabam colocando na cabeça das crianças”, avisa. “Eu nem entrei no tópico de homens se casando porque não tinha espaço ali. Se eu tivesse que entrar ali teria que explicar para aquela criança que isso existe, que faz parte da realidade”, explica, acrescentando que o sistema educacional como um todo não consegue fazer com que ele chegue mais longe no assunto.
Cidney explica que é importante romper esses padrões do que é “de menino” e o que é “de menina” e permitir que crianças exerçam as próprias personalidades e sejam incentivadas a gostarem do que quer que gostem. “Se um menino chegar para mim e dizer que gosta de algo de menina, eu não vou negar para aquela criança o direito de gostar do que ela gosta”.
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Professores precisam estar aptos a abordar o assunto
Vanessa Soares, professora de dança que faz parte do núcleo educativo da ONG Casa 1, explica que se importar com a diversidade não pode ser apenas um discurso da boca para fora. Na prática, uma educação que vise explorar as várias formas de se existir requer cuidados com detalhes que podem parecer pequenos, mas que fazem diferença para uma educação não sexista e não LGBTfóbica.
“É uma necessidade urgente que os educadores repensem aquilo que os foi ensinado há muito tempo, que repensem as pesquisas e tudo aquilo que ele aprendeu e que consiga fazer um atravessamento dentro do que existe hoje”, aponta. Ela cita como exemplo aulas de biologia que não explicam a existência de pessoas que estejam fora da heteronormatividade, como pessoas trans, intersexo e não binárias, por exemplo.
“Supondo que tenho um aluno adolescente passando por uma transição. Não adianta respeitar a performance de gênero dos alunos e, por exemplo, afirmar que quem tem útero e tem vagina é mulher porque eu estou afirmando para o aluno que, mesmo que ele esteja no mundo de outra maneira, eu estou destruindo a possibilidade de existência dessa pessoa. Serão ressaltadas verdades que não estão acontecendo naquele corpo naquele momento”, exemplifica.
Essa distinção de gênero também é passível de acontecer em aulas de educação física, em que o corpo masculino é visto como mais forte e veloz e o de feminino, mais frágil. “O que significa quando eu comemoro que um corpo visto como de menino corre mais do que um corpo visto como de menina? É um exercício muito sutil e enraizado. Isso precisa ser um exercício cotidiano. O educador não pode pensar que está fazendo um grande trabalho no mundo ao deixar a criança escolher rosa ou azul. Isso já está dado. E o que não está sendo dito?”, questiona Vanessa.
Diversificar materiais complementares é ação bem-vinda
Dani diz se apoiar na literatura para poder abordar temáticas envolvendo diversidade. Ela e a companheira, que também é professora, passam bastante tempo pesquisando sobre títulos que possam apresentar esse mundo para as crianças. “Ainda faltam muitos pontos de partidas para abordar o assunto. Ler uma história e conversar sobre ela faz com que as crianças fiquem interessadas em outros materiais.
No primeiro dia de aula de uma de suas turmas, Dani apresentou o livro “Princesa Kevin”, que conta a história de um garoto que gosta de se vestir de princesa. Ao contrário do que é considerado um “livro de menino”, a capa do livro é cor de rosa, o que faz com que as crianças tenham estranheza de início.
“A gente começa o primeiro dia já discutindo o óbvio. Essa idade é muito potente no sentido de serem atravessadas por conversas e práticas que você faz”, conta. Dani percebe o efeito a longo prazo, já que ela vê que os alunos pararam de fazer determinações sobre algo ser pertencente a um gênero ou a outro. “Rosa não é mais de menina e os meninos brincam de casinha. Hoje tenho muito orgulho dessa experiência porque um personagem ser de menino ou menina não importa, se pode ser quem quiser.”
A tentativa de Dani de diversificar o material didático também consiste em apresentar às crianças outros tipos de experiências. No Dia do Grafite, celebrado em 27 de março, ela levou grafiteiras indígenas, LGBT e negras para que pudessem contar sobre a arte para as crianças.
Dani também percebeu facilidade em aliar discussões de gênero e antirracistas no mesmo tópico ao apresentar e investigar os orixás, que são as divindades das religiões de matriz africana. “Você tem Oxumaré, que dizem ser masculino e feminino, e Oxum, que, dizem, se relacionava também com mulheres”, aponta.
“Isso abre as crianças para olharem para outras vidas, sabedorias e ancestralidades. Esse trabalho está muito relacionado à possibilidade de ver outras existências. Eu vou cavando essas brechas para poder me sentir minimamente contemplada no que penso como educação”, acrescenta.
Às vezes, essa tática também consiste nos pequenos detalhes. “Uma vez entrei na sala com uma pulseira com arte africana e começaram a me perguntar de onde era. Aí você já conta uma história e ensina sobre aquela cultura. Tem coisas que são muito sutis que são do cotidiano e as crianças são muito frutíferas nesse sentido, porque elas param para escutar, para querer saber. Isso vai criando os contextos”.
Escola precisa ser espaço de convivência com a diferença
Dani e Vanessa afirmam que não cabe apenas aos educadores o papel de colocar crianças em contato com outras existências. Também é primordial que isso transcenda a sala de aula e se estenda a outros ambientes que os alunos pertencem.
Para Dani, é preciso ter aproximação com o máximo de pessoas diversas possíveis capazes de conscientizar sobre o próprio entorno e o mundo. "Ensinar a criança a pensar que nem todo mundo tem a mesma cor que ela, por exemplo, e que mesmo assim elas podem ter algo em comum. Isso vai abrindo formas de transformar essas violências estruturais que a gente vive", explica.
"A escola deveria ser, primeiramente, um espaço de vivência, e não um espaço hierarquizado de ensino. Assim, se tira a escola desse lugar e a coloca como espaço de experimentação do corpo com outras maneiras de existência também. O professor deveria olhar a sala de aula mais como um lugar de funcionalidade do que de se aprender", pensa Vanessa.
A convivência com pessoas fora dos padrões heteronormativos e a presença desses corpos na sociedade também são ferramentas de aprendizado que descentralizam a escola como único local de conhecimento.
Vanessa se lembra da própria infância no Rio de Janeiro, em que via uma travesti chamada Zazá passando pela rua toda arrumada para fazer shows e festas. “Essa é a potência do corpo. Contra isso não tem censura que dê conta. As pessoas estão aí. Zazá já deve estar com quase 60 anos e ela me educou quando simplesmente andava na rua. Isso também é processo de educação”, conta.
“É no atrito que se compreende e se gera o que me faz compreender a diferença, então eu acredito que a convivência com as diferenças é o que me faz compreender as diferenças. Se eu só digo que as aceito, mas não convivo com elas, não tem como”, finaliza a professora.