Viver à sombra da cisgeneridade, ser apagada e tolhida de seus próprios gostos e anseios ainda são algumas características da infância da grande maioria das crianças transgênero . Apesar dos muitos avanços, a sociedade cisnormativa não consegue aceitar a existência da transgeneridade e transforma em preto e branco o período mais colorido de todo ser humano, tal como aconteceu com a escritora Maria Lucas.
Nascida e criada no Valão, um sub-bairro de classe baixa dentro da favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio de Janeiro, ela é filha de uma migrante nordestina que chegou ao Sudeste em busca de uma vida mais digna para a família. Quando nasceu, Maria sabia exatamente quem era: uma mulher artista, mas ouvia dentro de casa que não poderia dizer isso, já que nasceu em um corpo supostamente masculino .
“ Desde os meus três anos de idade eu sabia e falava que era mulher e artista. Quanto a ser mulher, isso me foi privado de continuar falando e expressando”, conta em entrevista exclusiva ao iG Queer. “Com relação a ser artista, minha mãe sempre me apoiou e, ainda criança, entrei para o grupo Nós do Morro, no Vidigal, onde tive meus primeiros trabalhos profissionais”, lembra.
Ser uma mulher trans na vida adulta já não era um problema para a mãe dela, que ofereceu todo o apoio necessário para Maria Lucas. Já o convívio com os outros familiares até hoje é problemático porque a transfobia a privou de ter contato e algum tipo de relação respeitosa.
“ Minha mãe , diferente do resto da família, é minha melhor amiga e se enche de orgulho da filha que tem. Ela foi muito amparada pelo grupo ‘Diversidade Católica’ que auxilia e promove encontros para pessoas católicas que, de alguma forma, fazem parte do coletivo LGBT+.”
Viver em um “universo azul” quando a criança é uma menina trans é um dos temas do segundo livro da escritora, “Mais Uma Casa de Bonecas” (Editora Urutau), que retrata as socializações e contradições de relações familiares entre pessoas cisgêneras e heterossexuais, assim como o empoderamento de corpos trans e LGBTQIA+ em relações de afeto entre si. Na obra, Maria Lucas usa o alter-ego Ela para narrar algumas histórias que já vivenciou, como ser afastada de brincadeiras como “casinha” ou “bonecas” .
“Eu sempre me senti sendo uma das meninas e ser privada de estar no mesmo lugar que as outras me causava muita confusão, ansiedade e exaustão mental. Desejo muito que toda criança trans seja amparada ainda em seus primeiros anos de vida porque um ser tão jovem não merece passar por tamanho sofrimento. Me causa muita dor só em lembrar de tudo isso”, lamenta.
Violência
Este livro é a segunda parte da “Trilogia D’Ela”, cujo primeiro título, “Esse Sangue Não é de Menstruação, Mas de Transfobia”, foi lançado em 2021, durante a pandemia. Ela retrata um episódio que sofreu durante a quarentena da Covid-19, quando morava com um grupo de mulheres cisgênero e foi expulsa sem ter para onde ir , momento este que Maria Lucas descreve como “um dos mais difíceis de sua trajetória de vida”
“Infelizmente é uma triste realidade de travestis e pessoas trans no nosso país”, introduz. “As expulsoras eram, em sua maioria, mulheres cis, brancas, acadêmicas, artistas, algumas LGBTs e ‘ditas’ feministas. Era um casarão onde se propunha, e se propõe e mantém até hoje, como uma casa de coletivos artísticos no topo do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Fui a única pessoa trans que passou por esse lugar e, assim como muitos outros lugares que ousamos ocupar, minha história foi devastada, enxotada, apagada e contada pelos que até hoje frequentam o lugar como se eu fosse uma travesti agressiva e perigosa, dois clichês utilizados e perpetuados pela cisgeneridade para marginalizar e privar os corpos de mulheres trans do convívio social”, enumera.
A escritora afirma que a violência física contra qualquer pessoa é mais óbvia, porém existem “pequenos” tipos de agressão que ainda são comuns e o universo cisgênero precisa se dar conta disso, como respeitar nomes e pronomes de pessoas trans e travesti. Contudo, ela salienta que o mais importante é que a população cis faça uma autoanálise para entender o lugar de privilégio em que está inserida na sociedade.
“Acredito que é fundamental que a cisgeneridade se autoestude, entenda porque é cis, quais seus códigos, vivências e pactos sociais, e tirar-se do lugar de centro e as pessoas trans como ‘o estranho’, o alheio, ‘o outro do cis’. Só aí podemos pensar a partir de um lugar em que estejamos em equidade social.”
“Ultratransfóbico”
A comunidade trans tem assistido e aplaudido algumas mudanças e conquistas que vêm ocorrendo nos últimos 10 anos, como a conquista do direito de retificar o nome sem precisar passar por avaliações, ter uma jogadora trans na elite do vôlei brasileiro, mudar o nome e gênero diretamente no cartório sem autorização judicial e eleger a primeira mulher trans como deputada estadual no país, mas muito ainda precisa ser feito em um país que mais mata a população LGBT no mundo .
Maria Lucas diz o Brasil ainda é um país “ultratransfóbico”, destaca que a comunidade continua muito invisibilizada e aponta que as pessoas trans e travestis precisam de políticas públicas e privadas que garantam espaços reais em faculdades, empresas, mercados de ensino e de trabalho.
“Assim como conscientizar a área de saúde para que tenhamos nossos cuidados básicos respeitados nesses espaços públicos, também precisamos de leis que nos garantam direitos de sermos respeitadas, afinal somos uma população que corre o risco da morte e da violência à luz do dia e isso precisa ser combatido urgentemente.”
Ela acredita que todas as pessoas que não são trans precisam compreender que a expectativa de vida desta população é de apenas 35 anos e isso é um grave problema social. Maria afirma que é preciso ler, ouvir, conviver com pessoas trans para mudar essa realidade.
“É preciso empregar e financiar estudos e projetos de pessoas trans, compartilhar conhecimento entre os seus e fomentar os conhecimentos adquiridos sobre transgeneridade; ouvir o seu amigo tratando travestis no masculino e/ou chamando de traveco e corrigir, ensinar, se posicionar. A população cisgênera no geral é muito acomodada e assiste, ou nem busca ver, o extermínio trans de braços cruzados e isso não é de hoje. Deixem de preguiça, olhem, escutem, leiam travestis ”, finaliza.
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