Questionar os padrões vigentes deve ser uma iniciativa tanto de dentro quanto de fora da comunidade LGBTQIAP+
Rosemary Ketchum/Pexels
Questionar os padrões vigentes deve ser uma iniciativa tanto de dentro quanto de fora da comunidade LGBTQIAP+

O momento de  questionar a própria sexualidade ou identidade de gênero é sempre muito marcante na vida de qualquer pessoa LGBTQIAP+. Viver sob um sistema cis-heteronormativo condiciona essa parcela da população a se reprimir e negar quaisquer desejos ou identidades que fujam da esfera heterossexual e cisgênero. Por conta disso, bater de frente com o padrão vigente causa grandes repercussões não apenas no indivíduo em si, mas na estrutura social como um todo que, ao ser questionada, perde a força manipulativa. 

O ator, apresentador e influenciador  Vítor diCastro é um homem gay e conta ao iG Queer que os questionamentos acerca dos padrões socialmente associados ao gênero masculino e da sexualidade em si começaram cedo. “Sempre foi parte de mim questionar as normas, tanto que é algo marcante desde a minha infância. Eu questionava: por que não posso usar essa roupa? Por que não posso andar com essas pessoas? Por que não posso assistir isso ou agir de determinada maneira? Eu virava para os meus pais e perguntava o motivo pelo qual eu não podia usar um colar de miçanga”. 

Vítor continua ao relatar que o fato dele ir contra o que era socialmente reproduzido como “padrão” e “correto” o fez passar por uma terapia de conversão. “Meus pais se cansaram dos questionamentos. Depois desse processo, eu voltei para o armário e parei de bater de frente com a heteronormatividade. Comecei a me vestir com roupas lidas como masculinas e me portar como o ‘menino de igreja filho da catequista’. Foi só aos 18 anos, graças ao teatro, que me desvenciliei dessa limitação. O processo de questionar a cis-heteronormatividade foi libertador para mim”. 

Provindas de um sistema de repressão, as normas hétero-cis são constantemente reproduzidas em todas as instâncias da sociedade a fim de manter as vivências LGBT fora de quaisquer ambientes. Elvis Justino , integrante do coletivo  Família Stronger e ativista LGBT+, diz que, de acordo com a perspectiva heterossexual e cisgênero, a comunidade LGBTQIAP+ pretende promover uma “ditadura gay”, mas o que se vê é o oposto. 

“O sistema heteronormativo é imposto como uma ditadura. É dito às pessoas que elas precisam ser hétero-cis, e quem faz isso são justamente aqueles que acusam a comunidade LGBT de promover um movimento ditatorial. Desde a infância até a vida adulta e o leito de morte, as pessoas não podem ser livres, então questionar esse sistema ajuda as pessoas a se libertarem realmente”, aponta. 

“Quando você levanta algumas questões sobre o assunto, é comum que muita gente consiga se reconhecer dentro da sigla LGBT. Essa iniciativa precisa existir, principalmente dentro das famílias, pois muitas ainda são fundamentalistas”, continua ele. “A família de comercial de margarina que a igreja cristã prega é composta pelo pai, pela mãe e pelos filhos, enquanto muitas crianças por aí são criadas por mães solo, tios ou avós. A realidade é bem diferente do que se propaga, mas ainda assim o sistema tenta impor as normas hétero-cis. É por isso que precisamos sempre bater de frente e lembrar que existem diferentes tipos de orientação sexual e identidade de gênero”. 

A psiquiatra Luciane Ikeda destaca que o meio no qual a pessoa cresce e a convivência influencia diretamente nas crenças que cada indivíduo irá internalizar, o que por sua vez pode impactar o processo de questionamento da própria sexualidade e identidade de gênero: “O meio fornece grande influência na aceitação. Há culturas que não aceitam a homossexualidade, por exemplo, como vemos em países como a Arábia Saudita. A cultura do país em questão e o ambiente familiar tem grande ação sobre a capacidade – ou não – do indivíduo aceitar a própria sexualidade”. 

Vítor diCastro relembra que questionar o padrão vigente é o primeiro passo para conseguir as respostas necessárias para se desprender do que lhe é dado de fora para dentro e assumir o que realmente é de dentro para fora. “Depois de um determinado tempo, eu entendi que não posso usar um colar de miçanga porque a sociedade é heternomativa e a masculinidade é extremamente frágil, por exemplo. Com isso, comecei a pensar: ‘Eu vou fazer o que eu tenho vontade, e se você discorda, então é um problema seu’. Se eu não sou uma pessoa cis-heteronormativa e não questiono esses pedrões, irei continuar seguindo um caminho que não é meu e interpretando um personagem que não me cabe”. 

“Me questionar me fez perceber que eu podia ser gay e que poderia expressar isso como quisesse, pois até mesmo sobre a comunidade LGBT a cis-heteromormatividade impõe padrões e estereótipos”, acrescenta. Elvis Justino traz à tona a importância de promover esses debates ao ponto em que o imaginário coletivo entenda que ninguém é obrigado a estar em caixas que não lhe convém, e questionar as normas parte justamente do princípio de liberdade individual e de romper com sistemas violentos. 

“Quando você foge do padrão hétero-cis é como se o mundo explodisse”, compara. “A vida vira uma guerra. É muito complicado para algumas pessoas conseguir entender que existem outras possibilidades e que nenhuma delas é algo negativo”. Para Luciane Ikeda, os meios de comunicação e os espaços de troca de ideias são fundamentais para o avanço tanto destes questionamentos quanto das reivindicações por direitos em si. Aos olhos dela, o cenário futuro é otimista. 

“A mídia exerce um grande poder de influência na opinião pública, e atualmente vemos uma abertura maior para assuntos relacionados à comunidade LGBTQIAP+. Cada vez mais o assunto é discutido, o que ajuda a extinguir preconceitos, mas ainda existe muito a ser feito. As coisas começaram a mudar, mas a tendência é evoluir com o tempo”. 

E onde estão os supostos aliados?

Questionar a cis-heteronormatividade não deve – ou não deveria – se restringir apenas às pessoas LGBT e sim à sociedade como um todo. Uma vez que parte da violência sofrida pela comunidade vem de fora para dentro, os questionamentos deveriam tornar-se rotina para quem é heterossexual e cisgênero. 

“Não foram os LGBTs que criaram a LGBTfobia”, relembra Vítor. “É lógico que infelizmente encontramos preconceitos vindos de dentro da comunidade, contudo vale lembrar que vivemos e fomos criados em uma sociedade LGBTfóbica, então não estamos blindados de reproduzir violência. Quando conversamos com pessoas hétero-cis sobre isso, o que elas precisam entender é que estamos falando de uma questão real. Muitos resistem ao assunto e se recusam a reconhecer que fazem parte de um problema, tanto que ouvimos as famosas frases: ‘Eu não tenho nada contra gays’, ‘eu adoro Pabllo Vittar’, ‘não tenho problema com pessoas trans’ – mas essa mesma pessoa é incapaz de corrigir um amigo que faz uma piada transfóbica, por exemplo”. 

O fato da população que atende à cis-heteronormatividade se abster da cena e não questionar os padrões que lhe privilegiam faz com que o grupo oprimido precise despertar a questão para o grupo opressor, o que não deveria acontecer uma vez que  a comunidade LGBTQIAP+ é quem está no alvo das estatísticas de violência. Essa inversão de papéis dificulta o avanço da luta como um todo. 

“A violência que cai sobre nós vem de mãos hétero-cis”, ressalta diCastro. “Então eles precisam se unir a estes questionamentos. Se não começarmos discutindo o básico, perguntando o porquê das coisas serem como são, não tem como evoluirmos no debate. Primeiro precisamos indagar: as coisas estão boas do jeito que estão? É isso que deveríamos ser enquanto sociedade? As pessoas vivem em harmonia? Estamos livres de problemas sociais? Quando reconhecemos que a resposta é não, automaticamente fica claro que não tem como sermos conservadores, por que o que vamos conservar se tem muitos de nós morrendo?”. 

Não estar na pele de pessoas LGBT ou de pessoas pretas, no caso do racismo, e de mulheres, no caso do machismo, impede que os indivíduos atingidos pelo privilégio branco, hétero, cis e masculino consigam compreender em totalidade como funcionam essas opressões. Contudo, ainda que não exista a experiência da vivência, o fato de fazerem parte do grupo opressor encarrega a estas pessoas da responsabilidade de ajudar na luta contra a violência. 

“Questionar a cis-heteronormatividade é boa para todo mundo, porque faz com que você esteja ciente de um problema”, observa Vítor. “Até mesmo quem faz parte da comunidade LGBT precisa entender que não é porque você está dentro do mesmo guarda-chuva que todos são iguais. As demandas mudam, as violências são diferentes. Entender que a cultura cis-hétero imposta é negativa ajuda quem está de fora da comunidade LGBT a de fato assumir o papel de aliado e se perguntar o que pode ser feito para ajudar”. 

Elvis Justino resgata o fato de que especialmente na política o termo “aliado” é banalizado. Colocar-se como alguém a favor da luta LGBT é muito diferente de ser ativamente influente no próprio meio para garantir os direitos desta população e colaborar com a busca por melhores condições de vida daqueles que fogem do padrão heterossexual e cisgênero. 

“Precisamos entender até que ponto eles são aliados”, destaca. “Nas próprias Câmaras Legislativas, até que ponto os que estão ali presentes entendem os próprios privilégios? Alguns até propõem leis e medidas pró-LGBT. Quem é hétero-cis e está em posição de poder precisa usar esses benefícios perante à sociedade que o favorece e usar em prol daqueles que são postos à margem. É preciso olhar para essas pessoas e dizer:  ‘Esses sistema cis-heteronormativo está matando pessoas’”.

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