Celebrado dia 10 de setembro, o Dia do Gordo traz à tona, entre outros debates, o combate à gordofobia , que inclui por exemplo a iniciativa de despatologizar os corpos gordos, ou seja, desvinculá-los de uma visão doente. Na mesma data, é celebrado o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio . Levando em consideração estas duas demandas sob a ótica de uma sociedade LGBTfóbica , vale colocar em discussão como a gordofobia atinge pessoas LGBT e gordas, bem como os impactos que causa na saúde mental destes indivíduos.
A psicóloga cognitivo-comportamental especializada em transtornos alimentares, Rejane Sbrissa, aponta que a pressão estética, ou seja, o incentivo massivo para atingir o padrão estético vigente – um corpo magro – tem consequências diretas na saúde mental de pessoas gordas. “Os maiores impactos na saúde mental são a depressão, ansiedade generalizada, dificuldade de relacionamentos interpessoais, estresse constante e baixa autoestima – além de poderem causar transtornos alimentares como a anorexia, bulimia e compulsividade alimentar”.
Ainda de acordo com a especialista, os transtornos psicológicos não andam sozinhos. Estar submetido à chamada cultura da magreza, alimentada pela indústria do emagrecimento, pode levar pessoas gordas a submeterem-se a processos perigosos na busca pelo “corpo ideal”.
“As pessoas que vão em busca de um corpo perfeito e não saudável acabam por cometer loucuras para alcançarem esse objetivo – muitas vezes inalcançável –, justamente por não levarem em conta a realidade de seu próprio tipo físico. Recorrem a dietas alimentares super-restritivas, pulam refeições, tomam medicamentos mesmo sem orientação médica e abusam de exercícios físicos, causando lesões ao organismo como um todo”, alerta.
Assumir tais riscos pode ser o primeiro passo para desenvolver transtornos alimentares que, segundo Sbrissa, são muito alimentados pelas agressões verbais e psicológicas as quais pessoas gordas estão sujeitas a sofrer, especialmente no ambiente escolar.
“Com as críticas, pressão, cobranças constantes e sofrendo bullying, muitas vezes esses indivíduos podem desenvolver algum transtorno alimentar, ou seja, começam a ter comportamentos irregulares quanto aos hábitos alimentares para emagrecer e chegar ao corpo desejado. Eles desenvolvem uma grande preocupação em relação ao peso e à forma do corpo, perdendo sua real imagem corporal – não se veem como realmente são, e sim com algum tipo de distorção”, destaca.
A exclusão vem por todos os meios e espaços
Deko Lipe , homem gay, cis e gordo, autor do livro infantil “O brincoder de Pepe”, conta ao iG Queer que desde a infância teve o corpo colocado em uma posição cômica e caricata, como se a função dele fosse ser o amigo divertido. “É muito engraçado ser gordo, mas nunca é considerado bonito ou saudável”, comenta. Além disso, Deko já teve a vida afetiva diretamente afetada pelos padrões de beleza e marginalização do próprio corpo.
“Eu olhava e pensava: ‘Nossa, aquele menino é tão bonito, mas nunca vai me querer’. Entra em toda a questão da autoestima, que é colocada lá no chão, então olhamos para uma pessoa e acreditamos que nunca seríamos capazes de ficar com ela”, conta. Atualmente Deko namora e está de bem com a própria imagem, mas ressalta que as heranças dos comentários ouvidos e da gordofobia sofrida como um todo permanecem vivas.
“Quando alguém diz que sou bonito, por mais que eu me sinta confortável comigo mesmo, surge aquela desconfiança, especialmente se o comentário vier de uma pessoa padrão. Por exemplo: eu só comecei a usar sunga muito depois da adolescência porque antes disso só usava bermudas até o joelho”, explica.
Entre os eventos traumáticos já vividos, Deko destaca que muitas pessoas dentro da comunidade têm dificuldade de expor e assumir relacionamento com pessoas gordas, por exemplo. Ele conta que já teve parceiros que agiam diferente com ele quando estavam a sós e quando estavam na roda de amigos.
“Entre nós as coisas eram ótimas”, descreve. “Tínhamos uma excelente convivência, nos envolvíamos bem sexualmente, tudo bastante tranquilo. Porém, na hora de sair em grupo, era sempre com os meus amigos, porque eu gosto de unir meus parceiros às minhas amizades e ter as pessoas que gosto ao meu redor. Ele, por sua vez, só saía com pessoas padrões e eu nunca era incluído. Era como se eu não devesse estar com eles. Crescemos aprendendo que nosso corpo sempre vai nos privar de alguma coisa”.
O escritor também traz à tona como a indústria da moda ajuda a alimentar a insegurança de pessoas gordas com o próprio corpo, uma vez que a variedade de peças acima do GG é bastante limitada, especialmente em lojas mais populares e que não tenham uma abordagem específica ao corpo gordo.
“As roupas que achamos para comprar são sempre em tons mostarda, marrom e preta, raramente uma branca, por exemplo. Parece que não usamos outras cores. É difícil achar uma estampa, e quando achamos inevitavelmente tememos a forma como as pessoas irão nos olhar. Será que vão me achar bonito? Porque nós percebemos os olhares, e não temos como nos blindar emocionalmente o tempo todo”, comenta.
Vale ressaltar que as violências muitas vezes partem de dentro da própria comunidade LGBT, pois, como afirma Deko Lipe, o meio gay ainda propaga muitos padrões de beleza. “Quando estou em uma festa, por exemplo, e abrem uma roda de dança, sempre que eu começo a dançar noto os olhares maldosos sobre mim porque ser um viado gordo incomoda”, aponta. “Além disso, sua imagem é sempre colocada em uma posição ridicularizada”.
Toda a pressão sofrida, além de causar a sensação de não pertencimento – tanto por ser LGBT, que ainda é socialmente interpretado como um “erro”, quanto por ser gordo, característica majoritariamente lida como algo negativo –, incentiva a autodestruição: “Quando não tiram a própria vida, as pessoas se submetem a medicamentos desnecessários para corresponder a um culto ao corpo ideal – que não existe. O tempo todo estão tentando nos colocar dentro de um padrão”.
É preciso desenvolver novas perspectivas acerca da beleza
Gui Teixeira , pessoa trans não-binária e gorda, destaca que o processo de aceitar o próprio corpo é constante e vem de muito tempo. “Foi uma questão de entender que existem outras formas de beleza e que eu posso ter diferentes olhares sobre o corpo gordo – olhar esse que não vem de uma natureza repulsiva”, explica. “Porém, a gordofobia está aí. A todo momento as pessoas nos empurram para um padrão estético que diz que precisamos perder peso”.
Ela explica que chegou a emagrecer durante uma época da vida, mas esse emagrecimento era visto de uma maneira romantizada que não condizia com a realidade do corpo dela. “Eu perdi peso porque estava deprimida, mas as pessoas não se importavam. Para elas, eu estar mais magra era a única coisa que importava”. Para Gui, o fato de ser uma pessoa trans e estar exposta à transfobia se une ao fato de ser uma pessoa gorda e cria uma vertente bastante específica, ou seja, é uma sobreposição de opressões.
“Quando você se entende e se afirma como pessoa trans, a sociedade automaticamente pensa que seu intuito vai ser buscar um padrão estético no qual o gênero que você se identifica está enquadrado. De fato, muitas pessoas transgênero vão ter questões com o próprio corpo durante o processo de transição, mas não são todas. No meu caso, que sou uma pessoa não-binária que se aproxima de estereótipos femininos, é muito difícil encontrar roupas porque a cultura da magreza é muito mais acentuada na figura da mulher, então preciso sempre buscar lojas estratégicas nas quais um tamanho GG seja realmente GG, e não um M”, explica.
Ao ser questionada sobre a incidência de gordofobia dentro da comunidade LGBT, Gui destaca especialmente os aplicativos de relacionamento, majoritariamente desenvolvidos para homens cis e gays ou bissexuais: “Tudo naquilo [aplicativos] reforça a magreza como sinônimo de beleza. Esses espaços fazem com que tenhamos vergonha do nosso corpo, sem contar as baladas frequentadas por homens gays padrão”.
Quanto às consequências para a saúde mental desta população, Gui compartilha com o iG Queer que já sofreu episódios depressivos. Para ela, um dos principais aspectos que dificulta o processo de aceitação pessoal do corpo gordo é a falta de representatividade.
“Você não se sente representada de nenhuma forma”, aponta. “Uma pessoa magra tem muito mais facilidade de acessar roupas e artifícios que deixem ela confortável dentro da sua expressão de gênero, por exemplo. Esse fator nos coloca em uma situação muito ruim porque desenvolvemos pensamentos negativos sobre nós mesmos. Porém, quando passei a ver outras referências na moda eu percebi a possibilidades de existência do corpo gordo como uma potência, e isso foi essencial para que eu mudasse meu olhar sobre mim mesma”, conclui.
Agora você pode acompanhar o iG Queer também no Telegram! Clique aqui para entrar no grupo. Siga também o perfil geral do Portal iG.