Viver em ambientes conservadores e ter contato com bullying na infância pode levar pessoas LGBT a se verem como merecedoras dos ataques
Pexels/Alex Green
Viver em ambientes conservadores e ter contato com bullying na infância pode levar pessoas LGBT a se verem como merecedoras dos ataques

Em 2021, o número de  crimes violentos contra pessoas LGBTQIAP+ cresceu pouco mais de 33% em relação ao ano anterior, segundo dados do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil, produzido pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+. No total, foram 316 mortes em comparação com 262 em 2020. Essa crescente reforça, entre outras preocupações, como a violência ainda é vívida e palpável no cotidiano da comunidade e, portanto, um fenômeno com o qual toda pessoa LGBTQIAP+ precisa aprender a lidar ao longo da vida. 

Entre os efeitos de estar constantemente exposto à violência, vale colocar em discussão como pessoas LGBT tendem a naturalizar certos ataques e condutas hostis devido à recorrência destes comportamentos em meio à rotina. Tal processo se dá, muitas vezes, desde a infância , quando muitas pessoas LGBT começam a experimentar visões e sentimentos que diferem do padrão cis-hétero normativo, como explica a psicóloga Samara Morais. Ela acrescenta ainda que, dependendo do meio no qual o indivíduo foi criado, a internalização da LGBTfobia acontece de modo ainda mais orgânico. 

“Dependendo de como foi o ambiente em que a pessoa LGBT viveu e cresceu, fica ainda mais difícil identificar algumas situações como violência. Em ambientes escolares, por exemplo, são muito comuns os relatos de pessoas LGBT sobre bullying e outras violências que muitas vezes não são físicas, mas verbais e discriminatórias. Quando a pessoa se percebe em minoria e diferente do padrão que é esperado, muitas vezes ela se enxerga como a errada na situação e sente que deve reprimir seu modo de ser e agir”, desenvolve. 

Além do ambiente escolar, o seio familiar, no qual deveria, em teoria, reinar o acolhimento e o respeito , também tem um papel importante para que pessoas LGBTQIAP+ absorvam a violência de forma passiva. O psicólogo Renan Sposito Beltrami explica que a pessoa pode sofrer ainda mais justamente por conta do conceito conservador que busca controlar o outro de acordo com crenças enraizadas e julgadoras.

"[LGBTs] acabam reprimindo a verdadeira expressão de seu ser por medo do julgamento, de sofrer violências, de serem expulsos de casa, serem rejeitados pela família etc, o que, por sua vez, gera um conflito muito intenso, pois, supostamente, a família nos ama e nós amamos a família, porém muitas delas contribuem negativamente com o adoecimento psíquico do indivíduo”, explica. 

Ainda de acordo com o especialista, as pessoas LGBT adoecem porque acabam acreditando que os julgamentos são normais e elas estão erradas em agir diferente dos padrões”. Ao iG Queer, Caluã Eloi, trans não-binário e preto, conta que percebeu o quanto naturalizava as violências quando colocou no pedestal quem lhe tratava com o mínimo de respeito, pois para ele isso nunca veio fácil. 

“Lembro que quando saí de uma empresa na qual trabalhei estava enchendo a bola da minha chefe dizendo: ‘Nossa, ela é uma pessoa maravilhosa’. E na verdade ela era apenas a única pessoa daquele ambiente que me respeitava, então aos meus olhos era Deus no céu e ela na terra. Ela me chamava pelo nome social e não me destratava; simplesmente me dava o mínimo que os outros não davam. Foi quando notei que estava naturalizando as situações de violência pelas quais passei e ainda passo ao longo da vida”, diz. 

Ele chama a atenção para o fato de que se contentar com o mínimo porque nada positivo costuma vir para pessoas LGBT organicamente as coloca como refém de possíveis relacionamentos abusivos, por exemplo, tanto em relações românticas quanto em amizades e convivência familiar.

“Você não consegue enxergar certas situações dentro de casa ou dentro do seu relacionamento porque a pessoa está te dando o mínimo, enquanto, ao mesmo tempo, ela pode estar fazendo chantagem emocional e promovendo outras microagressões. Porém, para quem está deslumbrado por ter o nome social respeitado, por exemplo, ou poder simplesmente sair de mãos dadas com o namorado ou namorada, é difícil reconhecer o outro lado da relação”. 

A assessora de comunicação Becca Sturki, mulher cisgênero e lésbica, vivenciou um extenso histórico de violência do qual demorou para se desprender justamente por internalizar as agressões e ter dificuldade de impor a própria voz. 

“Durante o tempo de faculdade, um ex-namorado me viu com a minha namorada e, por ciúme, contou para minha madrasta e meu pai, com quem eu morava na época. A violência por conta da minha orientação sexual veio de uma forma muito bruta dentro da minha casa. Além das ofensas que ouvi, a mulher que na época era minha madrasta ameaçou a mim e a minha namorada na época, cuspiu em mim e me expulsou de cada dizendo que não queria que eu ficasse perto da minha irmã [que na época tinha cinco anos], porque eu poderia dar em cima dela – acho que essa foi a coisa mais cruel que ela disse”, narra ao iG Queer. 

De acordo com Becca, ela foi morar com a mãe e, após o fim do relacionamento em questão, ela reprimiu os próprios desejos devido ao trauma da reação violenta que recebeu. Ela chegou a sair apenas com homens por um ano e meio e conheceu uma moça com quem começou a namorar.

“Àquela altura eu tinha voltado a falar com a mulher que me expulsou de casa porque era uma relação de abuso psicológico da qual eu não conseguia me livrar. Quando comecei a namorar novamente, toda a violência voltou e fui proibida de vê-la.” 

A assessora destaca que o processo terapêutico foi fundamental para que conseguisse superar os danos do convívio agressivo, “mas por muito tempo aceitei essa violência e tinha medo de contar para as pessoas que sou uma mulher lésbica”, salienta. 

Efeitos colaterais: apatia e falta de reação

Uma vez que as pessoas LGBT estão sob o risco de internalizar as violências e naturalizá-las, vale pensar de que forma este fenômeno afeta a vida do indivíduo em si, tanto no que diz respeito à saúde mental quanto a forma de se portar e tomar decisões. Caluã Eloi pontua, por exemplo, a falta de iniciativa e revolta quando a pessoa é colocada no centro de um conflito. 

“Temos a tendência de ser mais reativos quando a violência não é com a gente”, pontua. “Se eu vejo uma pessoa sofrendo LGBTfobia, imediatamente vou dizer que ela precisa denunciar e tomar a frente para proteger aquela vítima. Mas quando é comigo, por exemplo, eu travo. E isso é complicado porque sem a denúncia as coisas nunca vão se resolver, porém ao mesmo tempo ficamos com um pé atrás”. 

Para ele, um dos motivos que levam ao receio de denunciar, por exemplo, é o desgaste que ela gera, especialmente por conta da burocracia por trás – e da própria LGBTfobia enraizada também: “Se eu for denunciar todo o caso de violência que eu sofrer, vai ser muito estressante. A gente escolhe nossas brigas, seleciona aquelas que mais ‘valem’ ser denunciadas. Isso é ruim porque, querendo ou não, os responsáveis continuam impunes”. 

Ao mesmo tempo, Caluã traz para o debate a dificuldade de se expor durante uma denúncia, principalmente devido ao risco de não ter o relato acatado e ainda se colocar em uma posição vulnerável para sofrer novas violências. 

“Por outro lado, esse fenômeno mostra o quanto as políticas públicas precisam avançar: se o cenário fosse melhor, seríamos levados a sério no momento da denúncia e os impactos da violência nos dariam vontade de revidar, mas a dificuldade do processo e o risco de represália nos faz dar o braço a torcer para a impunidade”. 

O psicólogo Renan Sposito Beltrami destaca que a apatia pode sim ser um efeito colateral da naturalização da violência. “A apatia nada mais é que a indiferença do indivíduo diante de situações que normalmente haveria uma resposta emocional. Diante de recorrentes comportamentos e reforços aversivos, a pessoa tende a não repetir aquilo que gerou a punição, ou seja, começa a guardar para si, gerando um conflito interno importante”, comenta. 

“Com medo de expressar aquilo que gosta e é, a pessoa se torna apática, e essa apatia pode ser generalizada para outras áreas da vida, como nos estudos, trabalho e relações interpessoais, afetando cada vez mais a si próprio e gerando sofrimento intenso”, conclui.

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