Reprodução/Netflix - 02.09.2022
"Heartstopper" é um dos exemplos mais recentes de séries LGBT desenvolvidas de acordo com a realidade da comunidade

A incidência de  séries abertamente LGBTQIAP+ na TV e principalmente no streaming ganha cada vez mais espaço e visibilidade, ao passo em que se tornam uma ferramenta por meio da qual a comunidade exemplifica as próprias vivências em prol da reivindicação de direitos e levantamento de debates pertinentes a esta parcela da população. 

Contudo, é importante trazer à luz todos os aspectos por trás de produções LGBT e a forma como elas impactam a sociedade e os meios de comunicação em si – bem como a receptividade do público, acima de tudo. Para estabelecer este parâmetro, o iG Queer conversou Alan Ferreiras, sócio-fundador da Agência SILVA, líder de comunicação e roteirista. Ele reconhece o aumento no volume de séries LGBT, porém destaca que não se pode deixar de lado o fator mercadológico que movimenta a indústria. 

“Existe sim um aumento da consciência sobre a importância dessas pautas, mas eu acredito que essa evolução atende a uma oportunidade de mercado e a ideia de que esse tipo de conteúdo tem um público fiel que divulga e atrai novas audiências de forma orgânica. Então, no fim, o mercado tem atendido aos interesses de alcance e audiência, e não necessariamente a construção saudável de novas narrativas”, explica. 

Mesmo com este contraponto, Ferreiras não descarta a importância do papel do setor audiovisual na formação de opinião. “Seja com conteúdos saudáveis, progressistas e plurais ou com mensagens conservadoras, preconceituosas e limitantes, a TV e o cinema sempre foram poderosas ferramentas na construção de imaginários coletivos”, salienta.

“O audiovisual colabora para a construção dos padrões de beleza na definição das pautas que são relevantes para a sociedade. Por isso, séries e produções que abordam a experiência LGBTQIA+ têm importante papel na hora de representar vivências menos estigmatizadas, inspirar novas possibilidades de acolhimento e criação de círculos sociais e tornar palpável a sensação de pertencimento, tão necessária e até rara em momentos de construção de identidade da comunidade”, continua. 

O profissional cita dois exemplos de séries juvenis que tratam de temáticas LGBT para explicar de que maneira tal representação midiática influencia diretamente nos lares que consegue alcançar.

“A TV pode ser espelho do que vemos na sociedade, mas também pode ser um exemplo. A representação de um  casal adolescente gay vivendo as questões rotineiras de amadurecimento e afetividade em séries como  ‘Heartstopper’ ou  ‘Com amor, Victor’ é bem menos espelho do que eu gostaria, mas absolutamente capaz de inspirar ou criar exemplos positivos. Por exemplo, narrativas com ambientes familiares nos quais os conflitos relacionados à sexualidade de um filho são resolvidos de forma não-violenta são exemplos sensíveis de novas formas de representar relações e situações antes estigmatizadas”, discorre. 

Avanços e pendências

Ao ser questionado sobre as transformações da indústria, o especialista aponta que o público se tornou mais atento a certos detalhes e se coloca em uma posição mais crítica em prol da retratação cada vez mais fiel das vivências LGBTQIAP+.

“Eu sinto que o público está mais atento às construções dos personagens. Produções que reduziam personagens LGBTQIA+ às dores de sua sexualidade, pessoas sem expressão afetiva ou hipersexualizada e inseri-los em tramas nas quais eles são alvo de violência física – muita vezes letal – para o desenvolvimento do arco-principal [hábito chamado de 'bury your gays' na indústria americana] são cada vez mais rechaçadas pelo grande público”, aponta. 

O especialista comenta que tal fenômeno, quando encontra os meios certos, é potencializado, o que leva a um movimento constante de incentivo, reflexão e reivindicação por conteúdos com cada vez mais qualidade e verossimilhança. 

“Quando a insatisfação encontra o poder das movimentações que as redes sociais têm na aceitação de um produto, os produtores e canais se veem obrigados a construir novas formas de representá-los. Assim, é cada vez mais comum que salas de roteiro de produções para esse público contem com a presença de pessoas da comunidade e de pesquisas mais sensíveis às suas necessidades”, explica. 

Grande parte das produções que dominam o mainstream são norte-americanas, o que levanta dúvidas sobre a forma com a qual a indústria brasileira lida com esta demanda. Existem séries nacionais notórias que abordam temas LGBT e valem ser citadas, como “Todxs Nós”, “Toda Forma de Amor”, “Segunda Chamada”, “Feras”, “Onde nascem os fortes” e “Os experientes”, entre outros. O especialista reconhece que o país ainda precisa avançar nas produções LGBTQIAP+.

“A indústria brasileira ainda está bastante atrasada no desenvolvimento de produtos que abordem qualquer temática relacionada à diversidade. É verdade que algumas séries e novelas – importante produto da cultura audiovisual brasileira – já se permitiram abordar essa temática, muitas vezes de forma didática na hora de falar de preconceito e aceitação”, começa. 

“Entretanto, é importante que a comunidade LGBTQIA+ seja representada de forma mais ampla e plural. O cinema tem construído narrativas mais ricas e menos reducionistas desses personagens, mas infelizmente essa ainda é uma plataforma com produção e alcance aquém das proporções do país”, esclarece Alan Ferreiras.

Em vista dessa carência, o especialista levanta a importância de produções LGBTQIAP+, principalmente em um país de cunho conservador como o Brasil, cujas estatísticas de violência constantemente apontam para um futuro preocupante. 

“Hoje, o Brasil se encontra numa curva crescente de pessoas que se consideram evangélicas, grupo historicamente antagônico às pautas LGBTQIA+. E as novas formas de equilíbrio entre esses dois grupos é um ótimo exemplo do que pode ser tratado com a potência do audiovisual”. 

Ele cita como exemplo a série “Skins” (2007), que narra a história de um grupo de amigos entre 16 e 18 anos na Inglaterra. A produção é polêmica por abordar temas diretamente ligados à adolescência e aos seus respectivos conflitos, como sexualidade, uso de drogas, gravidez precoce e transtornos de personalidade e alimentares. 

“[Na série], dois amigos, um gay assumido e um mulçumano, se desentendem quando o personagem de origem religiosa pede que o amigo mude seu jeito de ser para ir a uma festa com sua família. A cena que considero essencial é o momento em que Anwar, o personagem mulçumano, conta para o pai que seu melhor amigo é gay. Sem spoilers, vemos um exemplo de como diferenças geracionais e religiosas podem sim existir sem que isso represente antagonismos violentos e reproduções de preconceitos”, pontua. 

Alex Henley é um personagem gay na série
Reprodução/Netflix - 02.09.2022
Alex Henley é um personagem gay na série "Skins"

Explorar o audiovisual em prol das representações saudáveis de vidas LGBTQIAP+, além de humanizar esses indivíduos, possibilita que as vozes de cada letra sejam devidamente ouvidas e consideradas na prática, uma vez que integram não só o imaginário do público, mas também o cenário político vigente. 

“Em suma, o que a indústria pode fazer para retratar nossas vivências é construir imaginários potentes e inspiracionais nos quais a nossa existência seja possível, em toda a sua plenitude, de forma natural, entre todas as outras formas de viver. Isso enquanto fortalece nossos laços de comunidade, aumenta nosso repertório de referências e emprega pessoas capazes de contar essas histórias de forma plural”, finaliza.

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