Alice Marcone, roteirista, atriz, cantora-compositora e apresentadora.
Reprodução/BR3 Produções
Alice Marcone, roteirista, atriz, cantora-compositora e apresentadora.

Ocupar lugares que subvertam à estrutura social estipulada para pessoas transgêneros é uma especialidade de Alice Marcone, pois a jovem trans de 27 anos é roteirista, atriz, cantora, compositora e apresentadora. Em seu currículo extenso, ela já roteirizou as séries “De Volta aos 15”, da Netflix; “Noturnos”, do Canal Brasil;  “Manhãs de Setembro”, da Amazon Prime Video , e colaborou com o roteiro de “Todxs Nós”, da HBO. Enquanto atriz, ela também atuou na série “De Volta aos 15”, “Bonde” e “Chão de Fábrica", curtas-metragens premiados.

Além de ocupar espaço no audiovisual brasileiro, ela também já apresentou e roteirizou o reality show “Born to Fashion”, do canal E! Entertainment, e é a primeira brasileira trans que canta sertanejo, fazendo parte do nicho queernejo , um gênero que coloca a comunidade LGBTQIAP+ como protagonista das letras e clipes das músicas. Entretanto, ainda é um nicho muito pouco explorado no Brasil, embora tenha outros artistas como Reddy Allor, Gabeu e Gali Galó.

Nascida em Valinhos, no interior de São Paulo, ela se mudou para Serra Negra, outra cidade do interior do estado, quando ainda era criança, onde morou até os 17 anos. Em sua trajetória, ela relembra que a arte sempre esteve presente em sua vida desde muita jovem, quando sua mãe ainda gravava fitas de VHS dela fazendo teatros com seus bichos de pelúcia.

“Na pré-adolescência, eu tinha um perfil falso no Orkut em que publicava webséries e fanfics. A arte sempre esteve presente na minha vida, mas fui entender que eu queria seguir isso profissionalmente aos 21 anos, quando estava no terceiro ano da faculdade de Psicologia”, conta.

“A psicologia entrou na minha vida porque eu tinha muito medo de me formar num curso superior em artes e não arranjar trabalho. Porém, mesmo antes de terminar a faculdade, oportunidades como atriz e roteirista foram surgindo”, recorda.

A transição de gênero também ocorreu em sintonia com o desejo de entrar para a carreira artística: “Nesse processo, eu voltei a fazer cursos livres de atuação e roteiro, que já fizeram parte da minha formação desde o Ensino Fundamental e Médio. Depois consegui entrar para o mercado audiovisual, primeiro como atriz e então como roteirista. Nesse meio tempo, a música aparecia sempre como um hobby, como algo que eu fazia para me descontrair ou me expressar. Apenas em 2020 que comecei a querer me lançar profissionalmente como cantora, com meus lançamentos sertanejos”, explica Marcone.

“Sinto que não tem espaço para mim no mercado da música”

Ela conta que o desejo de focar no gênero sertanejo nasceu depois de um longo bloqueio criativo de três anos em que não conseguia compor nenhuma música. Alice diz que percebia suas composições muito desterritorializadas, a grande maioria em inglês, e isso mexeu com ela.

"Fui percebendo que grande parte das minhas referências vinham do mundo pop ou indie, gêneros em que eu sentia alguma liberdade imaginária de elaborar e pautar meus desejos, identidade e existência enquanto mulher trans. Porém, olhando para minha própria história, entendi que eu sou uma mulher trans que cresceu e se entendeu como trans na zona rural de uma cidade do interior de São Paulo, onde a música sertaneja em todas suas vertentes (caipira, universitária, romântica) é muito presente. Por conta do preconceito que eu sofria quando me descobri uma pessoa LGBTQIA+, fui me afastando progressivamente da música sertaneja. De repente começou a ser importante eu resgatar culturalmente algo que foi tão importante na minha formação”, cita.

Cantar sertanejo para ela é um movimento de retomada para apropriar-se de um imaginário que nunca deveria ter sido tirado dela ou que as pessoas diziam não fazer, mas conta que não é fácil lidar com essa vertente artística em sua vida.

“Esses preconceitos, tanto de quem julga que por ser travesti e que não posso cantar sertanejo, quanto de quem pensa que por ser sertaneja eu não posso ser travesti, estão me afastando novamente desse empenho [de retomada], pois eu fui percebendo que tem custos financeiros e psicológicos demais para que eu possa bancar sozinha. De toda forma, eu pretendo trazer esse movimento com a música para mais perto do audiovisual e não aniquilá-lo totalmente. Também não quero passar a minha vida inteira cantando só sertanejo”.

Nesse sentido, ela cita que sua inspiração é Lady Gaga em tom irônico, pois quer ter um projeto musical country, um pop, um de jazz e entre outros. Embora já tenha lançado singles como “Pistoleira”, que fez em parceria com Gabeu , e “Noite Quente”, a artista argumenta que ainda sente o mercado audiovisual como sendo muito mais acolhedor em sua trajetória do que o mercado musical.

“Sinto que não tem espaço para mim no mercado da música e estou em vias de desistir, ou pelo menos de reformular completamente a forma com a qual a música faz parte da minha carreira, tentando torná-la algo muito mais atrelado à minha carreira audiovisual do que seguir investindo numa carreira como cantora, simplesmente. Afinal, são muitas dificuldades: enquanto uma mulher trans cantando sertanejo, não acredito que o meu trabalho tenha um público-alvo pronto para consumir minha música e sustentar financeiramente meu trabalho. Espaços e casas de show tradicionalmente sertanejos jamais contratariam uma travesti  para cantar em seus palcos, tampouco acredito que espaços de protagonismo LGBTQIA+ chamariam uma artista que canta sertanejo para trabalhar”, reflete a artista.

“De toda forma, resgatar narrativas  pretas e indígenas que fizeram parte do sertanejo e reconstruir um imaginário LGBTQIA+ dentro desse gênero é algo do qual eu não vou desistir tão facilmente e pretendo tentar seguindo com isso no mercado audiovisual, com possíveis projetos autorais futuros”, adiciona.

Interesses do mercado

Alice pondera também que estamos em um momento de virada da nossa cultura, em que a presença crescente dos streamings e da forma on-line de consumir conteúdo aumentou demais a demanda por produções de audiovisuais. Projetos com a temática LGBTQIA+ refletem cada vez mais isso, atingindo mais espaço nas produções audiovisuais brasileiras, mesmo que de forma lenta, gradual e fruto de muita luta.

“Sinto que esse foi um momento propício para minha entrada no mercado, que precisava de profissionais como eu para poder legitimar e dar mais verdade para suas produções. Porém, hoje, tenho receio de que o mercado apenas se interesse por mim enquanto roteirista e atriz em projetos com a temática LGBTQIA+ em primeiro plano. Não que eu não queira contar essas histórias, mas também quero transitar por outras narrativas, falar de questões que não têm a ver necessariamente com diversidade sexual e de gênero”, pontua.

Em seus planos para o futuro, a cantora acredita que seria muito feliz em um trabalho em que pudesse exercer todos os aspectos da sua expressão artística de forma livre e integral.

“Atualmente, talvez, ser roteirista seja o que me venha mais fácil e naturalmente, por ser a área que eu mais tenho estudado e trabalhado, justamente por ser onde mais tem surgido oportunidades de trabalho, mas isso não significa que apenas escrever dramaturgia seja o que mais me completa. Idealmente, almejo um lugar de showrunner e criadora dos meus próprios projetos audiovisuais, onde eu possa atuar com essas minhas diversas facetas criativas integralmente, roteirizando, atuando, estando perto da concepção musical e levando adiante todas as outras responsabilidades de uma showrunner”, enfatiza.

Ela ainda aconselha que, para pessoas trans, assim como ela, que queiram entrar para o mercado audiovisual ou musical, que busquem sempre aliados, tanto membros da comunidade LGBTQIAP+, quanto aqueles que estão fora dela.

“Especialmente fora dela, porque, infelizmente, é onde o poder ainda circula. Mas tenha suas parceiras da comunidade para ter com quem falar, desabafar e bolar estratégias de resistência e hackeamento. E estudem muito porque a primeira coisa que a transfobia gera é as pessoas duvidarem do nosso talento, então quanto mais conseguirmos provar que somos capazes, melhor, pois estaremos o tempo todo sendo colocadas à prova. Saibam diferenciar críticas construtivas das negativas que só servem para disfarçar transfobia; cresça com as primeiras, ignore (ou denuncie) as segundas”, finaliza. 

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** Julio Cesar Ferreira é estudante de Jornalismo na PUC-SP. Venceu o 13.º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão com a pauta “Brasil sob a fumaça da desinformação”. Em seus interesses estão Diretos Humanos, Cultura, Moda, Política, Cultura Pop e Entretenimento. Enquanto estagiário no iG, já passou pelas editorias de Último Segundo/Saúde, Delas/Receitas, e atualmente está em Queer/Pet/Turismo.

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