Produtor Matheus de Luca trabalhou seis anos na gestão e produção de teatro, dança e circo no Sesc MT
Reprodução/Instagram @deluca_matheuss 10.08.2022
Produtor Matheus de Luca trabalhou seis anos na gestão e produção de teatro, dança e circo no Sesc MT

O produtor cultural Matheus De Lucca disse que foi demitido do Sesc Mato Grosso depois de seis anos de trabalho, sem justa causa, pela realização de uma peça teatral em que um ator se vestia de mulher no teatro do Sesc Arsenal, em Cuiabá.

Segundo ele, a atual gestão regional é conservadora e não permite espetáculos que levantem bandeiras,  incluindo a LGBTQIA+.

Na última semana, o Sesc Arsenal cancelou o lançamento do livro da escritora Nelly Winter por ela ser drag queen , segundo denunciam a artista e a editora que publicou o livro. Elas alegam censura e discriminação. O caso é investigado pelo Ministério Público Estadual de Mato Grosso. O Sesc nega as acusações.

Matheus trabalhava como analista de programação de artes cênicas do Sesc Arsenal e era responsável pela organização dos espetáculos, até que em agosto do ano passado foi demitido, por causa de uma peça que retrata conflitos de gerações. 

"A peça tem a filha, a mãe e a avó. A mãe era interpretada por um ator e a filha por duas pessoas, um homem e uma mulher, mas não eram travestis e não tinham nenhuma postura que pudesse levar a isso. Não levantavam nenhuma bandeira LGBTQIA+", comentou.

A orientação, segundo ele, era não autorizar peças com classificação para maiores de 14 anos, voltadas para o entretenimento e, em 2021, a determinação foi baixar para 10 anos, ou seja, com classificação livre. 

"Já sabíamos que não eram aprovados projetos que levantassem alguma bandeira, porque o Sesc tinha adotado uma postura mais conservadora. Mas esse espetáculo tinha sido aprovado pela própria diretoria. Passou pelas mãos e assinatura do diretor Carlos Rissato", explicou o produtor rural.

Matheus foi informado que um dos diretores havia criticado o fato de personagens mulheres serem vividas por homens, na peça. E, dois dias depois da apresentação, a gerente pediu que ele enviasse toda a programação e anunciou uma reunião naquela semana.

"Nessa reunião, o diretor falou muitos absurdos. Falou que coisas daquele tipo não poderiam se repetir e que ele pensava que mudando a classificação isso não iria mais acontecer, que todos sabem que o Sesc não levanta nenhuma bandeira e que esse era o tipo de coisa que afetaria todo mundo, que poderia haver demissão de várias pessoas, e que a mãe dele seria a última a chorar, porque ele não seria o primeiro a ser demitido", contou.

Na mesma semana, a diretora de programas sociais do Sesc Mato Grosso foi demitida. E ele foi desligado um mês depois.

Segundo o ex-funcionário, o cenário é de desmonte, desde 2018, quando mudou a gestão e entrou o novo presidente. Tiveram várias demissões, inclusive de pessoas que ocupavam cargos de alto escalão, que eram responsáveis por definir a programação. Hoje, tudo depende do aval da direção.

Na data da demissão, De Luca fez uma postagem no Instagram sobre a saída do Sesc, na qual não mencionou os motivos exatos, mas citou ter feito um trabalho voltado para todos.

"Deixo o Sesc com a consciência tranquila e a sensação de dever cumprido por saber que fiz, até o último dia, o trabalho para o qual fui contratado: promover, difundir e incentivar a arte e a cultura de e para todas, todas e todes, independentemente de cor, gênero, orientação sexual ou política", disse, finalizando com: "Bora para cima porque tempos difíceis pedem danças furiosas".

A demissão de Matheus é citada por uma funcionária do Sesc em uma conversa com Nelly Winter, na semana passada, ao argumentar que não pode liberar o evento porque a gestão do espaço é conservadora. 

"O presidente ficou sabendo, e teve demissão de um analista. Também aconteceram outros casos, de comadres que se vestem também, é uma arte, [já aconteceu] de ter vindo aqui assistir a uma peça, e o pai de uma criança reclamou. Então, estamos vivendo um contexto muito complicado aqui, e eu acho que seria perigoso pra mim, liberar", afirma, no áudio.

Para ele, o caso da Nelly foi censura . " A arte expõe, leva à reflexão. Não é só para entreter e divertir, mas queremos uma arte crítica", disse.

Boicote de uma década


O ator André D’Lucca se diz vítima de boicote por parte do Sesc Arsenal há cerca de dez anos, desde que reclamou do tratamento dado aos artistas no local. Mas, depois de tanto tempo e diante da recusa do lançamento do livro da escritora Nelly Winter por suspeita de discriminação e censura, ele afirma ter certeza de que “o boicote” é porque ele interpreta personagens femininas no teatro.

Ele disse que foi maltratado por uma mulher que era responsável pelo teatro do Sesc à época, depois do sumiço da peruca que compunha o personagem. O ator disse que só entraria quando achasse o acessório, mas a gerente do teatro à época anunciou o espetáculo, mesmo sem ele.

"Depois achei a peruca, que alguém tinha jogado em uma coxia. Me apresentei e, ao final, ela veio aos berros, dizendo que eu dependia do Sesc e que tinha que ser mais obediente. Mas eu falei que aquilo eram paredes e que se tirassem os artistas, não tinha sentido", lembrou o artista, que interpreta ‘Almerinda’ no teatro, entre outros personagens.

Ele fez uma carta e encaminhou para a direção nacional do Sesc relatando a situação. "Os artistas me procuraram, mas não tiveram coragem de assinar o documento também. Desde então eu virei ‘persona non grata’ no Sesc", contou.

Antes da pandemia, uma funcionária entrou em contato e pediu para D’Lucca ser jurado de um concurso realizado no Sesc.

"Eu disse que eu aceitaria, mas sabia que uns dois dias depois ela voltaria a falar comigo dizendo que não quer mais a minha presença lá e ela disse: ‘Imagina, eles vão amar’. Mas, depois, ela me ligou constrangida dizendo que o quadro de jurados já estava preenchido, mas na verdade ela levou o meu nome e não quiseram", relatou. 

O episódio é antigo. Então, na avaliação do ator, não tem lógica o Sesc mantê-lo afastado se esse for o motivo. "Eu falei 'não é possível que esse ranço continue depois de mais de dez anos, porque já trocou a gestão, já trocou todo mundo'. Mas agora que aconteceu isso (com a Nelly) eu falei: 'ah entendi'. Isso tudo é porque eu faço personagens femininas", declarou.

Em nota, o Sesc informou que não tem conhecimento nem da demissão do analista e nem do boicote ao ator André D’Lucca.

Manifestações de apoio


Após o caso de Nelly Winter vir à tona, entidades e artistas manifestaram apoio à escritora e criticaram o Sesc. Uma delas foi Nany People , que lamentou a postura da entidade em um comentário nas redes sociais. 

"É uma pena que uma instituição tão séria e respeitada como o Sesc esteja em Cuiabá administrado por mãos tão retrógradas, preconceituosas e despreparadas. Fica claro que quem não merece a sua arte é o Sesc Cuiabá. Faça do limão uma limonada. Lance o teu livro em um lugar que te mereça, amada", disse Nany.

Em nota, a Associação da Parada do Orgulho LGBTQIA+ de Mato Grosso afirmou repudiar “a censura LGBTQIfobica sofrida pela escritora e drag queen Nelly Winter” e criticou a administração do Sesc. 

“Um regime de extremo autoritarismo e desrespeito ao processo de fazer e fomentar cultura em Mato Grosso, transformando um espaço que durante décadas recebeu produções de vários artistas regionais e nacionais, incentivou a cultural em todas as suas dimensões e vertentes”, diz o comunicado.

O Sesc-MT informou, em nota, que "não tem conhecimento nem do 'boicote' ao referido ator e nem da demissão de analista mencionado no áudio".

Especificamente sobre a acusação de recusa do lançamento do livro de Nelly, o Sesc alegou, em nota, que foi surpreendida com as denúncias e que elas não condizem com a realidade.

“O referido lançamento da obra literária ‘Versa - Bardos em Linhas’ foi devidamente aprovado pela diretoria e, inclusive, consta na programação do Sesc-MT, disponibilizada no site da instituição, para ocorrer no dia 31 de agosto, no horário das 18h às 21h”, diz a nota.

O Sesc também pontua que “o Sesc Arsenal é um espaço privado, mantido pelos empresários do comércio e, além de eventos de cultura, também atende atividades de lazer, esporte e saúde”, e que “repudia qualquer ato de preconceito, reafirmando o seu compromisso com a cultura e com os artistas mato-grossenses”.

A editora Umanos, no entanto, afirma que o evento foi cancelado porque uma das autoras é drag queen. Até então, estava tudo acertado para a realização do evento, mas, quando foram fornecidos os nomes dos autores do livro, houve a recusa. 

“A justificativa dada pela equipe da referida entidade foi a de que dentro do espaço público que possui, em Cuiabá, não pode ter apresentação ou manifestação de artistas ligados à comunidade LGBTBTQIA+, como homem que se traveste de mulher, seja em nome da arte drag ou da literatura, com alegação de que o local se trata de um ambiente conservador, assim como o público que lá frequenta”, diz, em trecho da nota.

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