Ocupar o espaço universitário ainda é um desafio para grande parte da população trans e travesti do Brasil, pois somente 0,02% destes corpos conseguem adentrar uma universidade federal; não significa que puderam concluir. Em contrapartida, 90% estão na prostituição de maneira compulsória, de acordo com a Associação Nacional de travestis e Transexuais (Antra).
Os motivos já são conhecidos: exclusão escolar, familiar e estigmatização social que coloca muitas dessas jovens em uma situação de vulnerabilidade e desconforto de adentrar outros espaços; senão aqueles que a sociedade delimita para elas.
Mas, mesmo em meio as mudanças que são necessárias e essenciais acontecerem, há mulheres trans e travestis que lidaram com essa realidade, subvertendo a estrutura e se apoderando dos espaços acadêmicos e de seus textos para mostrarem sua capacidade intelectual.
Maria Clara Araújo dos Passos , 26, foi uma dessas mulheres. Ao entrar na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) aos 18, sabia que precisaria lidar com isso. E assim o fez. Hoje, ela é Pedagoga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pois precisou ser transferida para São Paulo no meio da sua graduação.
Além disso, atualmente é Mestranda em Educação, na linha de Sociologia da Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo (USP).
“Quis ocupar o espaço acadêmico como um experimento, para sair desse lugar compulsório que as trans e travestis são inseridas, ou na prostituição, ou no ramo da beleza, de alguma forma”, conta a educadora.
Por seu processo de transição ter ocorrido já no ensino médio, ela sabia que teria que lutar pelos seus direitos dentro da universidade, que na época, ainda não puderam ser respeitados, sobretudo, o uso de seu nome social e acesso ao banheiro feminino.
Entretanto, mesmo com as violências diárias e silenciosas, ela optou em continuar. Tanto que, visa ter uma visão mais crítica dessas situações. Maria Clara diz que não se incomoda em estar nesses lugares para ensinar, pois escolhe usar isso como uma ferramenta de transformação de espaços. “Por estar no campo das humanidades, nunca me senti sozinha no meio acadêmico. E enquanto pedagoga, entendo que às vezes o meu corpo precisa estar lá para ensinar algumas coisas”, reflete.
Em sua linha de pesquisa, ela busca trazer à tona assuntos que permeiam questões como identidade de gênero e raça, vivências trans e travestis, feminismo e neoconservadorismos.
Além de ser educadora, também é assessora parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo e desde 2019, faz parte da Mandata Quilombo da Deputada Erica Malunguinho.
Atualmente, ela está lançando o livro “Pedagogias das Travestilidades”, que é baseado em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em pedagogia. No livro, a autora documenta o saber que vem sendo produzido, desde 1979 até a atualidade, pelo Movimento de Travestis e Mulheres Transexuais no Brasil, desde seu início, nas ruas, até sua chegada ao espaço na academia.
A pesquisadora repercute também acerca do que é esperado que os corpos transvestigêneres pesquisem ou produzam: “Sinto uma certa cobrança que pessoas trans falem de assuntos que envolvam sua vivência, mas não vejo como algo ruim, pelo contrário, isso nos permite colocar nossas percepções em evidência. Até porque, é preciso que possamos versar sobre nossa vida e nossas perspectivas sobre os diferentes assuntos”, diz.
Na área da Psicologia, temos Jaqueline Gomes de Jesus , 44, Mestra em Psicologia e Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB), com pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais e História da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Além disso, é também professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz.
Ela também já foi agraciada com a Medalha Chiquinha Gonzaga (2017), concedida pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, por indicação da Vereadora Marielle Franco.
Em meio a um currículo extenso, Jaqueline sempre esteve inserida no espaço universitário. Isso porque, sua família já tem uma trajetória com a academia, como ela explica. Sua mãe foi a primeira mulher da família a entrar em uma universidade e ela morava próximo ao campus da Universidade de Brasília, o que fez com que ela tivesse familiaridade com o espaço educacional ao longo de toda a sua vida e percorreu essa trajetória organicamente,
Em 2009, já em seu Doutorado, ela inicia seu processo de transição e passa a ter uma visão mais analítica do cenário científico para as pessoas trans e travestis. Assim como Maria Clara Araújo, ambas falam que nunca sofreram violência física nesses espaços, mas as silenciosas são constantes.
“É comum para outras pesquisadoras ou pesquisadores trans, a falta de referência do nosso trabalho ou de pensarem que a nossa produção só se restringe em uma temática de pessoas trans, como se a gente não fizesse pesquisas em diferentes áreas do conhecimento”, avalia a psicóloga.
E ressalta que pesquisadores que têm marcadores de raça e de gênero sofrem com esse desafio, porque suas produções sofrem sempre um reducionismo. “É importante pontuar que eles [pessoas cis, brancas e que são vistas como universais] precisam não só se colocarem, mas perceberem isso, para que a nossa pesquisa também seja mais reconhecida, não só como uma pesquisa de nicho, mas como uma pesquisa que traz olhares próprios de pessoas com diferentes experiências”.
Por ser professora, ela cita que os alunos lidam muito bem com a sua presença dentro da sala de aula, mas há alguns professores e diretores que ainda são conservadores e não conseguem respeitar seu exercício acadêmico. “Eles têm um grande desafio de nos reconhecer como produtoras de conhecimento”, pontua.
Ademais, ela também relata que até nos processos institucionais para seleção de professores, há essa transfobia, que para ela, como mulher negra, também se intersecciona com o racismo. “Fui reprovada em seleções em que eu era a autora de livros que faziam parte da bibliografia”.
“Precisamos de mais de um mecanismo de ações afirmativas que permitam que esses estudantes consigam chegar à docência e possam desenvolver pesquisas de forma mais consolidada”, explicita Jaqueline ao ser indagada sobre a rede de apoio de pessoas trans e travestis dentro do meio acadêmico.
Objeto de estudo x produção de conhecimento
“Conheço bem, desde pequena, essa relação de ser observada como aquela que não é produtora de conhecimento. A questão é mais como as pessoas leem, diferenciam, ou reduzem a minha produção”, argumenta Jaqueline.
“Antes não queria contribuir com pesquisas acadêmicas, mas reconheci a importância. Hoje, se alguém me pede para ser inserida em algum trabalho acadêmico, eu peço que esteja inserida na bibliografia”, finaliza Maria Clara.
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