Professores LGBTQIAP+ em sala de aula impulsionam debate sobre diversidade, mas sofrem por pressões do sistema educacional
Pexels/Katerina Holmes
Professores LGBTQIAP+ em sala de aula impulsionam debate sobre diversidade, mas sofrem por pressões do sistema educacional

“Eu nunca serei um professor”, é o que dizia a si mesmo Cidney Sousa, estudante de Letras e, paradoxalmente, professor. “Não achava que tinha a capacidade de fazer outro ser humano compreender algo que eu estava ensinando”, reflete. Isso mudou quando ele foi convidado a ver, na faculdade, um vídeo que apresentava o processo de educação bilíngue de crianças de desenvolvimento, na faixa dos cinco a oito anos de idade, em uma escola que futuramente seria seu local de trabalho.

Se tornar um professor, ainda mais de crianças, claramente nunca foi uma escolha, mas esse ofício começou a ser criado durante o cotidiano. “Eu fui levado por uma situação e me apaixonei e criei uma conexão com elas. É gratificante, não por questão financeira, mas por ver o desenvolvimento humano de uma criança”, conta.

“Estar perto delas é ter uma nova visão de mundo. Tudo bem que elas são inocentes e ingênuas, mas elas são muito abertas a tudo e me ensinaram a ser mais aberto para o mundo, para a vida. Eles me ensinaram coisas para ser uma pessoa melhor e, em troca, eu ensino coisas que eles vão precisar algum dia”, continua.

A animação dos alunos em relação ao Cidney também fez com que os pais criassem um laço de afeto com o professor, ainda mais depois da pandemia. Se antes ele dava aula apenas para os alunos, nas videoconferências passou a educar uma família inteira. Os elogios das crianças rendem a ele diversos bilhetes com mensagens carinhosas; e dos pais, presentes e até bolos nas datas de aniversário.

O fato de ser um homem gay é irrelevante tanto para os alunos como para os pais delas. “Dependendo da criança, ela pode notar que sou diferente, mas ela não tem a construção social inteira para determinar o que é uma pessoa hétero e não hétero. Elas têm cinco anos, não sabem direito nem quem são, quem dirá o outro”, afirma.

O Brasil passa por um contexto social e político que não vê com bons olhos o contato de crianças com pessoas e discussões LGBTQIAP+. O receio da bancada conservadora está relacionada a uma possível “ influência negativa ” ou “doutrinação”, termos usados para se referir a tópicos relacionados à diversidade, educação sexual e identidade de gênero.

Apesar desses ataques em escala nacional, Cidney explica que em seu ambiente nunca foi coagido em relação à sexualidade ou expressão de gênero. Isso fez com que sempre fosse ele mesmo em sala de aula. “Me mostro muito abertamente para eles. Não em relação a sentir atração por homens, porque não tem espaço para isso, mas sobre o que gosto, ouço ou leio”.

Um exemplo foi a reação das crianças quando viram a capa do celular do professor, que estampava a imagem da princesa Cinderela, da Disney. “Eles notaram e estavam 100% nem aí se eu era um homem, só estavam impressionados e felizes porque é a Cinderela. Não estavam nem aí para o contexto”, lembra. “O que eu amo nas crianças é que elas têm mais predisposição para gostar de você do que para te julgar. Quando uma criança te julga, pode ter certeza que é porque ela ouviu alguém fazer isso”, acrescenta.

Perguntado sobre se já se sentiu incomodado em algum momento durante o trabalho, Cidney responde que nem notou. “Eu estou tão ocupado sendo eu mesmo que não tenho tempo de processar se alguém me julgou. Não vou me minimizar ou me deixar inibir senão a gente acaba se moldando”, justifica.

As dores de pessoas educadoras LGBTQ+

Dani Caitano, é professora não binária e enfrentou atitudes lesbofóbicas no ambiente escolar, como críticas a sua aparência e manter o relacionamento em segredo; o que a motiva é o trabalho com as crianças
Acervo pessoal
Dani Caitano, é professora não binária e enfrentou atitudes lesbofóbicas no ambiente escolar, como críticas a sua aparência e manter o relacionamento em segredo; o que a motiva é o trabalho com as crianças

As inquietações da psicóloga e pedagoga Dani Caitano fez com que ela pesquisasse as experiências de mulheres lésbicas professoras. “Tinha como objetivo tecer um diálogo entre pessoas LGBT que trabalham em escolas e tenham tido seus corpos atravessados pela censura, violência, assédio e silenciamento”, diz. Essas situações descritas no trabalho foram vivenciadas pela própria Dani ao tentar se estabelecer no espaço escolar.

Dani se considera uma pessoa lésbica não-binária e trabalha com crianças de cinco a seis anos em uma escola particular, em São Paulo. Em diversos ambientes de trabalho em que passou foi vítima de transfobia. “Quando cortei o cabelo me disseram que eu nem estava parecendo uma mulher ou que eu era suja por não me depilar. Foram situações de machismo que vivi em outra escola que trabalhei”, afirma.

A escola onde trabalha atualmente foi onde conheceu a namorada, com quem vive junto. As duas foram encorajadas a manter a união em segredo; e foi o que fizeram por um ano. “A gente trabalhava alguns dias na mesma sala, porque eu acompanhava uma criança que estudava com ela. A gente tinha mais receio ainda de falar e ficar um clima tenso quando estivéssemos trabalhando juntas. É um temor que as pessoas têm de que a gente vai doutrinar as crianças, mostrar coisas inadequadas”, relata.

Durante a pandemia, elas precisaram reorganizar os cenários onde davam aulas para as crianças para que os familiares não notassem que se tratava da mesma casa. Até que a situação ficou insustentável. “Via todo mundo falando do que fez no fim de semana, histórias sobre os cônjuges, e eu tinha que ficar quieta”. Dani precisou pedir autorização à escola para responder com quem mora, caso as crianças perguntassem. Levou mais um ano esperando. O aval nunca veio.

“O trabalho do educador é muito árduo e sendo LGBT se sofre inúmeras violências. Você sempre é tido como exagerada e as pessoas do trabalho mal falam com você. Nunca te escutam de verdade porque não estão no mesmo lugar, as pessoas querem te enquadrar no sistema cis-heteropatriarcal delas”, afirma Dani.

Se por um lado a convivência com os colegas de trabalho é difícil, a situação é outra com as crianças. “Tiro as minhas forças do trabalho com elas. É isso que me alimenta. Elas não têm uma questão com isso, não têm nenhum problema. As pessoas menosprezam muito a consciência infantil porque as crianças têm total capacidade de discussão política. Elas estão imersas na sociedade e estão pensando o tempo inteiro.”

Falar em segredo

A professora de dança Vanessa Soares, da OND Casa 1, em projeto chamado
Bruno Oliveira
A professora de dança Vanessa Soares, da OND Casa 1, em projeto chamado "Leitura na Praça"

A estrutura sexista encontrada na sociedade não deixa de aparecer no ambiente educacional, o que impacta a maneira como o sistema de educação é refletido. Vanessa Soares, professora de dança que faz parte do núcleo educativo da ONG Casa 1, afirma que o papel principal da educação, do ponto de vista institucional, é o de controle.

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A dificuldade do educador ou educadora não consta nas crianças, mas em sua organização e nas próprias escolhas do sistema educacional que, majoritariamente, mantém noções da sociedade e não cogita levar o aluno à reflexão, mas a manter uma norma estabelecida.

“A maneira como a educação no Brasil é institucionalizada já é um processo de controle e colonial. Deveria ser pensado em como não dar prosseguimento ao processo colonial que é brasileiro. As nossas escolas, principalmente as públicas que têm menos recursos, continuam ainda sendo formadoras de um corpo subalterno e subserviente”, analisa Vanessa.

Esse silenciamento se estende aos professores que estão fora dessa norma e a assuntos que dizem respeito a pessoas como eles. Dani, por exemplo, cita a falta de livros sobre pessoas LGBTQ+ na biblioteca da escola em que leciona. Até pouco tempo atrás só existia um deles que contava a história de uma família formada por dois homens, escrito por uma pessoa heterossexual.

“Existem assuntos que ficam para trás, mas porque o próprio sistema educacional, não a escola em si, é influenciado. Por exemplo, temos uma aula para falar sobre famílias. Você acha que vou ensinar que existem famílias com dois caras ou duas mulheres e que eles têm um filho adotado? Isso já foi discutido, mas abertamente é como se fosse demais”, conta Cidney.

Com a proibição do sistema hierárquico de educação, Vanessa explica que há uma “negociação mínima” realizada para manter a permanência naquele espaço, mas não suficiente para mudar toda a estrutura de educação. A saída encontrada é o segredo; ou currículo oculto, como chama Dani. Trata-se de uma maneira de se ensinar sobre temas que não necessariamente estão no currículo, mas acabam sendo abordados.

“Quando me proponho a estar em um espaço como professora, eu acredito nos alunos, não na estrutura metodológica. E é por acreditar neles que desenvolvo meus segredos com eles”, conta Vanessa. Esses segredos não se tratam de situações danosas para as crianças, mas que tornam a educação mais libertadora do que é permitido pelo currículo escolar.

Esses segredos podem surgir à tona a partir de perguntas dos próprios alunos sobre determinados temas. Minados pelo currículo oficial, os educadores podem desenvolver códigos para passar determinados conhecimentos, o que inclui questões de diversidade ou de gênero. É importante reforçar que essas conversas não levam a questão abordagens sexuais, mas de educação sobre as diferenças.

“É como um feitiço e um feitiço eu não digo para todo mundo, incluindo as grandes estruturas que querem destruir isso, que não acreditam nisso como potência. Eles não merecem saber dos segredos que eu desenvolvo com os meus alunos. Não dá mais para jogar ou ter liberdade com essa galera”, aponta a professora.

“Nós, pessoas que de alguma forma estão dentro da sigla LGBTQIAP+ e somos professores dentro de alguma instituição, precisamos exercitar mais em acreditar na desobediência. Existe um segredo na desobediência das crianças que nós precisamos aprender, principalmente a gente que está ‘desobedecendo’ às normas. É muito importante observar e aprender com a desobediência”, conclui.

Crianças podem entender a diversidade?

A preocupação acerca de uma “doutrinação de gênero” está relacionada a um mito de que uma criança será “desvirtuada” caso entre em contato com pautas e pessoas LGBTQIAP+. No entanto, o contato com professores LGBTs podem ser agentes para gerar consciência sobre respeito a outros tipos de existência que não sejam heterossexuais e cisgênero.

“Essa é a parte interessante de cativar as pessoas. Você vai deixando coisas nas pessoas e nem sabe, e elas usarão isso para serem seres humanos melhores. Quando a gente está em sala de aula, não só ali, precisamos ensinar valores na esperança de que elas sejam melhores e não retrocedam”, diz Cidney.

“As pessoas enxergam que as crianças não são capazes de compreender as coisas, quando na verdade ela está ali disposta a ouvir tudo se você explicar”, continua.

“Acham que vamos levar assuntos para as crianças e elas vão ficar sentadas escutando. E não. As crianças me perguntam coisas, sabem coisas. A escola é o lugar da diversidade no sentido que as crianças têm uma formação com as famílias, mas lá é o lugar de encontrar o que você não veria na sua casa”, complementa Dani.

A pedagoga aponta que as crianças têm um senso de liberdade que o restante da sociedade não tem. Ela se lembra de uma data em que uma aluna deu a mão a ela. Outra aluna disse que elas eram namoradas, ao que Dani explicou que não era verdade, mas duas pessoas adultas que são do mesmo gênero podem namorar. Nisso, a aluna que a deu a mão perguntou se ela tinha namorada, e Dani respondeu que sim. “Puxa, que pena, eu queria casar com você”, respondeu.

“Às vezes, você não espera que uma criança vá falar uma coisa. Quando a gente apresenta um tema não sabe para onde as crenças vão, e essa é a riqueza de ser criança. Acho que elas já trazem a pauta da diversidade, não é algo inserido. Basta a gente conseguir escutar e levar adiante junto com elas”, pensa Dani.

“Os pais podem proteger o quanto quiserem, mas um dia essas crianças vão precisar entrar em contato com o mundo externo e entender que existe uma diversidade que não está ali para influenciar, machucar, seja o que for. É uma diversidade, uma realidade externa que só quer existir”, finaliza Cidney.

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