Uma escola municipal localizada no bairro do Jardim Consórcio, zona sul de São Paulo, foi atacada na web, na última sexta-feira (17), devido aos grafites feitos pelos próprios alunos com alusões à comunidade LGBTQIAP+ . As fotos foram replicadas nas redes sociais de um deputado estadual, que criticou as ilustrações. Nos comentários, apoiadores afirmam que os desenhos "tiram a inocência das crianças" e "ferem a família".
O muro da Escola Municipal Conde Pereira Carneiro foi grafitado por jovens com imagens que simbolizam a comunidade LGBT, como a bandeira, pessoas trans e a frase “Toda forma de amor deve ser respeitada”. As pinturas foram feitas em 2019 e estão conservadas desde então.
No Instagram, Twitter e Facebook, o deputado Douglas Garcia (PTB-SP), que já se declarou um homem gay contra a militância LGBTQIA+, pediu providências ao prefeito, Ricardo Nunes, pedindo para que os muros fossem pintados novamente, cobrindo as intervenções dos alunos.
“Este é o muro da Escola Municipal Conde Pereira Carneiro, em São Paulo, onde estudam crianças a partir de 6 anos de idade. Oficiei o prefeito para que proceda com a pintura do muro da Escola e adote as devidas providências disciplinares”, escreveu o deputado.
Entre as mensagens de apoio, internautas afirmam que a pintura é um absurdo e pode ser danosa para crianças por apresentarem “conotação sexual”. Os comentários receberam críticas desde pais de alunos da instituição até perfis de cidades do interior paulista.
Por outro lado, alunos e pais também foram às redes para protestar contra a publicação do deputado estadual, que debochou das manifestações. “Rapaziadinha, baixa a bola porque eu sei muito bem como funciona essa escola. Eu e meu irmão concluímos o Ensino Fundamental no Conde (entre 2008 a 2009). Eu também (pela 8ª C) pintei o muro com meus colegas, mas na época não fomos feitos de idiotas úteis a movimentos políticos”.
Mariana, 13, que está no 8º ano, conta que soube das ameaças perto da hora de ir embora da escola. Durante a aula de ciências, duas alunas do 9º ano conversaram com o professor, que depois explicou que a escola estava sendo atacada por conta dos desenhos LGBTQIAP+ na parede.
“Achei injusto porque a pintura não está ofendendo ninguém. É só um muro que a gente escolheu pintar”, afirma Mariana. A aluna explica que teve medo de ir embora após saber dos ataques na internet.
Liz*, 14, se sentiu ainda mais triste por ter sido uma das alunas a pintar uma das ilustrações no muro. “Acho errado como estão apenas atacando a escola sem nenhum tipo de sensibilidade, dizendo que a escola está transformando as crianças em esquerdistas e atacando todo mundo apenas por conta de três muros pintados sobre a causa LGBT e sobre o respeito ao próximo”, desabafa a aluna.
Shirlene Pereira, 35, mãe de uma das alunas da escola, afirma que se revoltou com os comentários do deputado e de outros internautas. “Primeiro que o muro da escola não fala só sobre pessoas LGBTQIA+, mas de muitas formas de preconceito, incluindo racismo e deficiência. Fala sobre igualdade em um geral”, aponta.
“O deputado nem ao menos procurou saber sobre as pinturas nos muros. Simplesmente atacou pelo fato de ter uma bandeira LGBTQIA+ estampada no poste. A intenção da escola em promover igualdade, o que foi ignorada e rechaçada de forma homofóbica e machista”, acrescenta.
Para Natalie Teves, 43, as pinturas expressam a preocupação da escola em incluir pessoas que se sentem diferentes das demais, mostrando que suas singularidades são importantes e devem ser respeitadas. “Fiquei chocada depois que descobri que o deputado estudou na mesma escola, já que lá tem tanta gente diferente e tanta diversidade.”
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“A gente precisa de mais amor e empatia para não acontecer daqui para frente o que está acontecendo agora, para que tenhamos menos pessoas como ele que acham que estão resolvendo alguma coisa. Temos muito mais pelo que devemos nos preocupar”, salienta.
Procurada pelo iG Queer, a Escola Municipal Conde Pereira Carneiro diz que não vai se pronunciar neste momento.
Muro reúne intervenções artísticas de alunos há anos
Assim como Liz, a ex-aluna Evelyn Vitória Ferreira Silva, 17, participou da elaboração de diversos muros da escola. A pintura em si é uma tradição da escola que passou a ter manutenção da própria comunidade do entorno da instituição. Além disso, é um trabalho de conclusão de curso realizado pelos alunos.
Ela explica que, a cada dois anos, os alunos escolhem alguns temas que estejam em alta na sociedade que sejam considerados “de difícil compreensão”. Os temas a serem abordados no muro são votados pelas classes, e os escolhidos eram pintados no muro pelos grupos.
“É um grande trabalho de pesquisa e de intervenção artística. Não são desenhos simplesmente escolhidos, tem um estudo por trás”, explica. O muro anterior a esse, pintado em 2017, falava sobre desmatamento.
O dinheiro usado para fazer as pinturas não é da verba anual da escola, mas é arrecadado no período de festa junina. Os trabalhos para desenvolver todo trabalho, Evelyn explica, dura em torno de um ano. “Me senti muito mal vendo as pessoas falarem daquilo como se fosse um rabisco, e não é. Não sabem o trabalho que tem por trás. Esse muro leva muitas pessoas a pensar, refletir e questionar sobre muitos assuntos”.
Alunos assaltados, praça abandonada e falta de acessibilidade
Nos comentários, os pais também chamaram atenção para o fato de que outras necessidades da escola foram ignoradas pelo deputado ao fazer a postagem. Uma das urgências, na visão dos responsáveis, é o fato de que as crianças estão sendo assaltadas nos horários de entrada e saída nos arredores da escola.
Há 20 dias, Mariana foi assaltada enquanto voltava para casa com dois colegas, a 100 metros da escola. Dois homens abordaram os alunos e tomaram o celular dos colegas de Mariana. Ela disse que havia deixado o aparelho em casa.
Os três foram ameaçados pelos assaltantes, que demandaram que eles não fossem até a polícia. “Fiquei com muito medo e, desde aquele dia, não levo mais o celular para a escola”. Shirlene explica que o bairro onde a escola está localizada é totalmente residencial e deserto. “Não existe um patrulhamento e não tem aquelas rondas escolares nem nada para proteger as crianças”, explica.
Outro ponto que fica em falta em relação aos alunos é a falta de acessibilidade para crianças e adolescentes portadoras de deficiência. Mariana explica que a escola não possui elevadores ou rampas, impossibilitando que alunos cadeirantes possam frequentar a escola. “O deputado não procurou saber se está havendo assalto na escola, se tem elevador e quais são nossos problemas reais. Isso me irritou muito”, afirma.
Rogerio Cano, 46, é ex-aluno da escola e confirma que tanto a questão de segurança como de acessibilidade perduram até hoje. Mas ele inclui ainda a questão da grande praça que está em frente à escola. Abandonada, ela se tornou um ponto de uso de drogas e assaltos. “Se o deputado tivesse olhado para o outro lado da rua, ele teria visto mais problemas do que um muro. Ele foi muito infeliz no que disse”, afirma.
Rogerio explica ainda que, há anos, alunos e moradores fizeram um abaixo assinado para que uma pista de skate fosse construída na praça, o que nunca foi para frente. Ele diz que, há dois anos, o projeto chegou a ser aprovado com orçamento de R$ 70 mil, mas resultou em uma “mini pista”. “Mais parece um escorregador de criança. Parece que foi desvio de dinheiro”.
Mobilização
Alunos e ex-alunos, incluindo os autores de algumas das artes no muro, estão se organizando para impedir que a arte seja apagada dos muros. Evelyn, aliás, diz que sofreu muitas ameaças.
“Se eles destruírem e pintarem o muro, a posição dos alunos é de que vamos pintar novamente do jeito que estava. É um direito nosso ter aquilo exposto”, diz a ex-aluna. No sábado (18), um grupo se reuniu nos arredores da escola para fotografar todos os pontos do muro, caso seja necessário refazerem as ilustrações.
Ela continua a afirmar que recebeu muitas ofensas de perfis que criticaram as pinturas por motivos religiosos. “Eu sou evangélica e tenho a minha fé, por isso me coloquei na frente para não deixar que apontem o dedo para ninguém. Assim como eu tenho direito de ter a minha fé, qualquer pessoa tem direito de ser quem quiser”.
Sindicatos, organizações educacionais e educadores também se pronunciaram contra os ataques. O Sindicato Especialistas Ensino Público São Paulo (Sinesp) afirmou apoiar a "diversidade e autonomia das unidades educacionais para construírem seus projetos políticos pedagógicos".
Gestores da DRESA, Diretoria Regional de Educação, fizeram uma nota de repúdio e cita "momento histórico" de "educação sob ataque". "Acreditamos que a educação, para ser libertadora, precisa em primeiro passo ser aberta ao diálogo, ao novo, ao questionamento, ao argumento e às vivências e experimentações do mundo que vivemos e da sociedade na qual estamos inseridos e desejamos construir", inicia a nota.
"Não é possível que, em pleno século 21, ainda possamos nos deparar com ofensas e ataques a trabalhos nos quais os estudantes puderam compartilhar sua visão de mundo, seu sentimento de pertencimento por meio de suas crenças, de sua orientação sexual (ou do respeito à diversidade nela contida), e a tantos outros elementos que foram abordados na pintura do muro da EMEF Conde Pereira Carneiro."
"Queremos mais muros como estes. Muros que esbocem que o retrocesso não calará quem ousa sonhar com uma sociedade mais justa, digna, respeitosa e igualitária. Queremos derrubar os muros da intolerância, do preconceito e do desamor. [...] Cidadão de bem é aquele que trabalha, que respeita os outros indivíduos, que é tolerante, amoroso e que compreende que não lhe cabe o direito de determinar o modo de viver de outras pessoas", finaliza.
*Os nomes foram alterados para proteger a identidade das crianças.