Na última década, drag queens e drag kings têm se destacado na mídia e nas artes, alcançando cada vez mais fãs e admiradores. O fenômeno cultural, impulsionado por reality shows e pelo crescente número de personalidades drags sendo visibilizadas, inspira a comunidade LGBTQIA+ e se consolida como uma linguagem que transmite coragem para esta população.
A cantora e drag queen Gloria Groove , uma das principais artistas do movimento no país atualmente, comenta com exclusividade ao iG Queer que as drags unem diversos tipos de manifestações culturais, desde música, dança e poesia até atuação, maquiagem e moda, para entregar uma mensagem. “Drag queens lembram ao mundo que vale muito a pena brincar de ser a melhor versão de si próprio”, diz.
Gloria explica que a arte drag é de extrema importância por desafiar normas de gênero e padrões comportamentais. “Isso mantém esse tipo de discussão sempre em movimento. Além disso, a drag se destaca pelo caráter de instalação artística em ação, colocando a arte como principal ferramenta de luta”, afirma.
No Brasil, cada vez mais artistas drag queens têm surgido e conquistado espaço midiático e na internet por meio da arte. Além de Gloria, o país tem também nomes como Pabllo Vittar, Lia Clark, Gloria Groove e Aretuza Lovi. Entre outras drags que se tornaram conhecidas estão a gamer Samira Close, a criadora de conteúdo Lorelay Fox e a professora e atriz Rita Von Hunty, conhecida por participar da primeira temporada do reality show "Academia de Drags", apresentado por Silvetty Montilla.
Gloria diz que essa visibilidade é resultado do percurso realizado por décadas de gerações de artistas e ativistas para o reconhecimento desta arte. “Hoje, com a expansão da internet e a democratização da informação por meio das redes sociais, conseguimos avançar ainda mais ao fazer com que a arte drag tenha respeito e visibilidade em grandes veículos de comunicação, como rádios e TVs. Agora é trabalhar e se dedicar muito para provar que viemos pra ficar”, declara a cantora.
De onde vem a drag?
Nos últimos anos, a figura da drag voltou a ficar em alta quando a drag queen RuPaul, uma das principais figuras LGBTQIA+ nos Estados Unidos, criou o reality show RuPaul’s Drag Race , que se tornou franquia replicada em diversos países. O programa conquistou uma legião de fãs e acendeu ainda mais a chama da arte drag em escala mundial.
Porém, estima-se que a existência da drag venha desde o século 16. Naquela época, o escritor e dramaturgo William Shakespeare identificava personagens de seus roteiros como “drag”, que referencia o verbo “arrastar” por conta dos vestidos e identificava papéis femininos feitos por atores homens.
Anos depois, na década de 1980, a linguagem de drag queens e drag kings ganhou força como símbolo de resistência e pertencimento. A arte drag era muito usada por participantes da cultura ballroom, que são encontros que incentivavam a dança e performances artísticas como as das drags.
Apesar da cena de Nova York ser muito mencionada, o Brasil também possuía uma forte cultura drag nas boates LGBT, principalmente as localizadas no centro da cidade de São Paulo. Entre alguns nomes desta época estão Silvetty Montilla, Kaká Di Polly, Miss Biá, Márcia Pantera, Salete Campari e Nany People (que, mais tarde, passou a se identificar como uma mulher trans).
Na televisão brasileira, as drag queens, bem como algumas pessoas trans e travestis, passaram a ganhar espaço na televisão como transformistas. Na década de 1980, o apresentador e empresário Silvio Santos passou a incluir as drag queens no "Show de Calouros", no SBT.
Essas movimentações culturais foram realizadas em meio ao período de redemocratização do país, o que fez com que se tornasse uma linguagem de resistência da comunidade em uma era em que era ainda mais proibida.
Você viu?
Também foi no SBT, entre as décadas de 1990 e 2000 , que a drag queen Vera Verão, vivida por Jorge Lafond , ganhou notoriedade na televisão. Até hoje, a personagem é marcada como uma das principais e mais populares drag queens do país.
Quando nasce uma drag
Para artistas, o nascimento de uma drag queen ou um drag king é sinal de um momento de autodescoberta. João Pedro Delgado tinha 18 anos quando Scarlett Suniva, sua drag queen, aflorou. Seu primeiro contato com a montação e com seu poder político foi por meio da maquiagem. Na época, ele cursava direito em uma das faculdades mais tradicionais de São Paulo. “Fiz um pequeno protesto por causa de um menino que foi discriminado, inclusive por professores, por passar lápis de olho”, lembra.
Apesar de assumido, ele tentava entender sua orientação afetivo-sexual e a maneira como isso impactaria seu convívio com as pessoas, algo com o que Scarlett contribuiu. Para se montar, um artista drag precisa passar horas em frente ao espelho, o que, para João, foi uma forma de confrontar seus demônios internos.
“Me montar me arremessou novamente para fora do armário e destruiu completamente minha zona de conforto. A partir daí, usando salto e peruca, fui catando os cacos do que queria manter em mim.”
Para o bailarino Thiago Fayad, a arte drag chegou de forma inesperada. Ele tinha 15 anos e morava em Bauru, interior de São Paulo, quando viu uma drag queen pela primeira vez. “Ela foi namorada do meu primeiro namorado e era lindíssima, se maquiava maravilhosamente bem, tinha várias roupas e perucas. Adorava vê-la se maquiando”, afirma.
Logo começou a pensar que poderia se tornar uma boa drag queen, já que trabalhava como cabeleireiro, sabia se maquiar e tinha a possibilidade de investir em um figurino. Mas Thiago calou esse desejo por medo do preconceito da família e só voltou a pensar nele quando se mudou para a capital.
Um dia, quando voltou para Bauru para visitar familiares, um amigo disse que tinha aberto uma balada LGBT (na época, chamada de GLS) e pediu para que ele fizesse um show como drag. Naquela noite, apenas uma artista performaria na boate.
Thiago topou, mas não tinha nada para se caracterizar. “Eu não estava preparado para virar uma drag, não tinha nem nome, só tinha uma peruca. Corremos a cidade inteira perguntando para outras drags que não iam trabalhar se podiam emprestar algumas coisas”, lembra.
O show não só deu certo como foi repetido em outras de suas visitas a Bauru, tamanho o sucesso que fez. “Para mim mesmo, eu estava só ajudando um amigo, mas na realidade eu estava realizando uma vontade minha”, assume.
Repensando a masculinidade
O drag king Don Valentim nem mesmo sabia o que era um drag king quando começou a se interessar por arte drag. Naquela época, em 2015, ele conhecia apenas o que a mídia mostrava e a esmagadora maioria eram drag queens. Além disso, grande parte dos performers eram homens cis.
Don usou a internet para estudar e entender a cultura drag king por meio de coletivos brasileiros, como Os Piratas de Gênero, no Rio de Janeiro, e Kings of the Night, em Curitiba. Também conheceu o trabalho do drag king Wendell Cândido, a quem tem grande admiração.
A figura de Don surgiu como uma maneira para conseguir se ver sob uma perspectiva diferente. “Busquei tutoriais na internet sobre como fazer maquiagem drag, e eles me mostraram uma exploração da masculinidade cis-heteronormativa. Então, comecei a questionar sobre esses estereótipos masculinos na nossa sociedade”, explica.
No começo, ele não viu o que estava fazendo como uma ferramenta política, mas depois entendeu o que faz como uma paródia sobre a masculinidade e os estereótipos de gênero. “Essa masculinidade está em um pedestal, é reproduzida como uma figura heróica e todo poder da sociedade está centrado nessa figura. Então você pode pegar esses estereótipos que não foram delegados a você e fazer piada disso, desmontá-los", explica.
A arte drag pode ser uma maneira de fazer com que a sociedade indague sobre questões que podem ser incômodas de uma forma diferente, principalmente em relação às questões de gênero e orientação sexual. “Sempre que uma pessoa vê uma drag se cria um questionamento mental. Mesmo que seja de repulsa, é um sentimento, né? Está mexendo com a pessoa de alguma forma. Todas as reações que o drag gera são muito interessantes”, acredita.
A força da montação
A primeira vez que Don saiu montado na rua foi em uma viagem ao Rio de Janeiro, quando conheceu Wendell Cândido e pode acompanhá-lo em uma festa drag. Ele explica que a experiência foi, ao mesmo tempo, libertadora e desconfortável. “Eu ainda não sabia como deveria me comportar enquanto drag, e eu vi que era muito diferente do que apenas se montar em casa. A experiência drag requer uma interação com outras pessoas, requer que você viva esse drag. É uma arte que abrange muitos aspectos”, afirma Don.
Além do aspecto teatral, música e dança são elementos primordiais para a arte drag. A influência da dança é uma paixão para Thiago desde criança. Ele afirma que isso foi o que o ajudou a se sentir livre. “A dança me ajudou a me aceitar, a me amar e a me entender. Foi por ela e dentro da comunidade LGBT que vi que eu era mais um, não que eu era anormal”, diz.
Se apresentar como uma drag queen é sinônimo de empoderamento, explica. Thiago afirma que a montação é uma espécie de armadura que o preenche de um sentimento de que tudo é possível. “Você entra na boate sabendo que as pessoas vão olhar para você. Então você sorri porque é isso que quer devolver para as pessoas. Se apresentar como drag é uma sensação maravilhosa porque você sabe que as pessoas estão te olhando, que estão com fome de um show maravilhoso”.
O ato de assistir a um show de drag queens ou de drag kings também é um escape para LGBTs. “Quando você entra em uma boate você se solta, se sente em casa. E quando começa o show de drag todo mundo fica eufórico porque é o pico máximo da noite, da libertação de gênero”, afirma Thiago.
Além da performance
Para João, o poder de sua drag e de qualquer drag queen é ser capaz de mudar o ambiente e as pessoas ao seu redor. “Teve gente que só vi uma ou duas vezes há cinco anos e que ainda lembram da minha drag com carinho, pelas risadas que deram comigo, por algo que fiz ou falei. Além de palhaça, drag acaba sendo conselheira amorosa, amante, amiga de uma noite, astróloga e até terapeuta holística”.
“A drag não é meramente visual, ela é a vivência que agrega algo a você. É você estar toda semana com suas amigas vivendo o que é ser drag, interagindo com as pessoas”, complementa Don.
João deixou a faculdade de direito, um ex-namorado, as baladas de São Paulo e foi morar com a família em Registro, no interior, para trabalhar fazendo queijos artesanais. Mesmo longe da badalação da noite paulistana, nada impediu que a existência de Scarlett fosse possível. A drag ainda aparece quando ele decide testar novas maquiagens em casa, mas não só.
Antes da pandemia, ela organizava ou aparecia em festas drags na casa de amigos para incentivá-los a ir fundo nessa arte. “Quero criar uma pequena comunidade drag nessa cidade que não tem nem balada, cinema ou fast food”, diz. Mesmo no cenário calmo, Scarlett não foi embora e jamais irá. “Ela não é roupas, saltos ou perucas, e nem é apenas metade do que sou. Ela sou eu na íntegra, as partes que mais gosto e que aprendi a admirar em mim. Isso nunca vai deixar de existir”, explica.