“Eu não sabia o que senti porque isso era totalmente fora da minha realidade”. Essa foi a reação de Victor Liam, de 22 anos, ao receber o telefonema com a notícia de que havia passado no teste para estrelar sua primeira produção audiovisual.
Paulista, morador de Guarulhos, e ator trans, o jovem é a estrela da série do serviço de streaming Max “Da Ponte Pra Lá”, produção dirigida por Rodrigo Monte e que estreou na plataforma na última quinta-feira (4).
Em entrevista exclusiva ao iG Queer , o intérprete de Ícaro conta que o processo até conseguir o papel foi longo. Victor começou a vida como artista aos cinco anos, quando revelou a sua mãe que queria ser modelo. “Comecei, então, a desfilar em agências de bairro”, conta o artista.
O teatro entrou em sua vida alguns anos depois, após um conselho de uma professora. “Comecei no teatro porque eu tinha muito problema de vergonha. Minha professora me indicou a fazer teatro, porque eu não conversava com as pessoas, era muito difícil. Comecei a fazer teatro lá pelos meus sete anos”. A experiência foi catártica para o pequeno Victor, que pegou gosto pela atuação. Contudo, a experiência foi interrompida durante sua adolescência.
Uma pausa com data de validade
O período de adolescência de Victor não foi tão amplamente marcado pela arte como foi sua infância. O jovem tinha como prioridade sobreviver e conseguir se entender como homem trans.
Victor se entendeu trans aos 16 anos e revela um fato curioso sobre a escolha de seu nome social . “Minha mãe falava que o sonho dela era ter um menino e que ia colocar o nome dele de Victor. Quando eu me encontrei [como um homem trans], falei: ‘É mãe, o presente da senhora chegou. A senhora pediu um menino para Deus, e Deus te deu do jeitinho que a senhora pediu!’”, detalha ele acrescentando que foi uma amiga que lhe ajudou a decidir pelo nome.
A arte reencontrou o jovem quando ele acabara de completar 21 anos. Uma das produtoras do longa do Max viu o perfil de Victor no Instagram e o contatou para um teste. “Eu pensei: ‘Não 'tô' fazendo nada. Eu gosto de atuar. 'Tô' aqui de boa. Vamos lá, vai que dá alguma coisa!’”, pensou o ator quando viu a mensagem.
Durante todo o processo, ele se mantinha pessimista, achando que não conseguiria o papel que estava sendo disputado por outras duas pessoas, mas a aprovação veio. “Acho que, em toda minha vida até agora, essa foi a maior realização. Foi algo que eu nem sonhei que seria possível.”
A aprovação no teste levou o jovem a tomar decisões duras na sua vida para que o sonho se tornasse realidade. A primeira coisa era entrar de cabeça no projeto, o que significava pedir demissão de sua única fonte de renda. Na época, Victor trabalhava de repositor em um mercado de onde vinha seu sustento.
“Eu fiquei pensando por uns três dias. Pensava se eu realmente estava pronto para largar toda a minha estabilidade para algo que podia não dar certo. Nessa época, eu estava na minha pior fase. Eu estava mal, prestes a desistir de tudo”, revela o jovem ator.
O nascimento de Ícaro
A preparação para a série começou e Victor tinha que enfrentar novamente algumas questões que levava consigo desde criança. “Eu não tinha contato, então era tudo diferente para mim. Tudo foi super diferente, muito novo e eu tinha que me preparar antes para poder estar de cara com a câmera”, conta.
Contudo, com a ajuda dos colegas de cena e dos produtores de cast, Victor pôde ver Ícaro nascer a partir de suas próprias experiências.
“Eu me redescobri. Minha vida tinha muita ligação [com a do Ícaro]. Para poder gravar, eu tinha que passar por duas pontes, e para voltar era a mesma coisa. A questão da escolha do nome do Ícaro, que ele escolheu com a amiga dele e tudo mais, isso aconteceu realmente na minha vida”.
Sobre suas vivências, Victor afirma que colocou mais leveza e alegria para a construção de Ícaro. “Ele já tinha certeza do que queria, ele fazia a moda com que ele tinha. Eu olhava para o guarda-roupa dele, e dançava com guarda-roupa. Até quando ele era injustiçado, ele encontrava essa alegria, sabe? Eu acho que a alegria e o carisma desse cara são surreais”, afirma o ator.
Victor conta que teve suporte de toda a equipe, recebendo palavras de apoio quando achou que não conseguiria seguir em frente. Ele considera que um dos momentos mais importantes foi a gravação de uma cena com a atriz Mawusi Tulani, intérprete de Sônia, mãe de Ícaro, em um laboratório onde faziam uma dança que representava o nascimento do personagem.
“Nesse momento, ela me colocou no colo dela e falou para mim: ‘Eu aprendi uma coisa com meu pai e vou te passar. Eu quero que você repita comigo: 'Eu posso. Eu quero. Eu consigo. Esse mundo é bilhardário e eu mereço uma parte dele’. Eu nunca vou esquecer isso porque a gente às vezes se acha tão pequenininho perto de coisas tão grandes. A gente esquece que a gente é merecedor de tudo isso, independente[mente] de qualquer coisa!”
“O Ícaro traz força”
A vida e a representação de Ícaro em uma série de grande repercussão nacional como “Da Ponte Pra Lá” é de extrema importância. Victor diz que o personagem consegue trazer força para momentos que o espectador vai achar que ele não teria. Além disso, o ator considera que a experiência representa para ele "ser uma voz para que as pessoas se autodeclarem como são".
“A gente não está pedindo pra ser aceito por eles, sabe? Eu não quero que um cis fale para mim: ‘Tudo bem, você pode entrar na minha empresa porque eu aceito você do jeito que você é’. Não cara, eu sou igual a você e ainda, dependendo da situação, eu acho que eu consigo ser melhor que você!”
A esperança de Victor é que através de Ícaro, as pessoas se inspirem e consigam viver suas próprias identidades. O jovem finaliza mandando um recado para o seu eu de cinco anos, que o maior sonho era estar desfilando: “Você é foda. Você conseguiu ir além do imaginável e inimaginável. Você conseguiu! Você vai ser referência para muitas pessoas. Parabéns!”
“Da Ponte Pra Lá”
A série “Da Ponte Pra Lá” estreou na última quinta-feira (4) no Max, e os três primeiros episódios já estão disponíveis. A produção traz uma história sobre diferenças sociais e culturais de jovens da periferia e do centro das grandes cidades.
A série fala sobre paixão, amizade e luto, temas contextualizados entre dois mundos e divididos por um grande mistério: quem matou Ícaro? Estrelado por Gabz, Victor Liam e João Guilherme, a série de suspense segue o arco de investigação durante os sete episódios.