À primeira vista, o ballroom
é apenas um movimento urbano que reúne a comunidade LGBTQIAPN+
para uma série de competições que avaliam a performance artística das competidoras e dos competidores.
As habilidades avaliadas podem ser montar maquiagens, figurinos, cantar, dançar e performar diante de uma plateia. Criado na década de 60, nos Estados Unidos
, por uma negra travesti, o ballroom é muito mais que isso.
As competições permitem o fortalecimento da comunidade queer por meio do acolhimento, criam ambientes que incentivam a criatividade e a liberdade fora das amarras de uma sociedade heteronormativa, além de reforçarem ideais de união, luta e resistência por onde passam.
O ballroom indígena, único no Brasil, não foge à regra. Realizado pela primeira vez em Brasília , no mês de abril do ano passado, e promovido pela Casa de Onijá em parceria com o coletivo Tybyra, o evento aconteceu em meio ao 19º Acampamento Terra Livre que teve como pauta a urgência da demarcação de terras indígenas além de discutir os direitos da população indígena LGBTQIAPN+.
Em novembro, o Coletivo Manauara Miriã Mahsã, em parceria com a Casa Jabutt, ambos de
Manaus (AM)
, decidiram realizar um evento dedicado ao ballroom na cidade, batizado de Espírito Ancestral.
Pedro Tukano, coordenador do Coletivo Miriã Mahsã, entende que a cultura indígena enriquece o ballroom já existente no Brasil e no mundo.
“É um momento em que eles [indígenas e negros] enriquecem muito mais o cenário ballroom com culturas locais, com culturas de pessoas negras brasileiras e pessoas indígenas brasileiras”, conta.
Essa mistura, que deu origem ao baile Espírito Ancestral, é entendida por Caní Jackson, mãe da casa Jabutt, a partir de sua drag, Harmonya, de forma semelhante. “A gente entende que pessoas indígenas também podem ter contribuído para a cena ballroom logo no seu início, né?”, diz ela.
“A gente também vê, aqui no Norte, como essa tecnologia ancestral feita para a comunidade, [pode] ser um espaço seguro para nossa existência, para promover a cultura do nosso povo e para fazer arte.”
Manaus e o contexto urbano
O surgimento da ballroom indígena em Manaus também não é por acaso. A capital do Amazonas , dentre seus 2 milhões de habitantes, tem mais de 70 mil indígenas, o que a torna o município brasileiro com a maior quantidade de indígenas do país.
Mesmo assim, Pedro Tukano, que é da etnia Yepá-Mahsã, ainda considera que há um longo caminho para a conscientização de pessoas não-indígenas sobre a realidade dos indígenas no país.
“É uma imaginação tão burra, a do brasileiro não-indígena, que vê a nossa existência apenas num espaço em que eles acham que a gente deve ficar [nos territórios demarcados] e ignoram totalmente todos os outros contextos de violência que fazem a gente sair dos nossos territórios e ir para o contexto urbano, e buscar espaços que a gente possa se sentir seguro para celebrar, enquanto indígena e enquanto LGBT”, conta.
Ele também considera a casa Jabutt, e outras casas de ballroom geridas por pessoas negras e indígenas que possam surgir a partir dela, um lugar seguro para o indígena LGBTQIAPN+ que vive essas violências diárias.
“Deve existir algum indígena LGBT+ dentro do contexto urbano que tem acabado de chegar e que está se sentindo sozinho nesse imenso território de concreto. A ballroom indígena, assim como o Coletivo Miriã Mahsã, a gente acredita [que são] espaços em que essa pessoa se sinta em coletividade, se sinta segura para expressar quem ela é sem ser violentada e repreendida.”
Caní avalia os eventos ballroom como um importante espaço de diálogo, que aproxima a comunidade indígena também de uma perspectiva queer, apesar do tempo que levou para que ambas as culturas se cruzassem.
“Essa demora é efeito de um processo civilizatório violento e de extermínio para com os povos indígenas, o que reforça ainda mais a importância desses eventos estarem acontecendo a partir da comunidade ballroom, que é um espaço possível de desenvolver arte, cultura queer, LGBT+ e principalmente dos povos originários”, diz.
Ressignificando na prática
O baile Espírito Ancestral é pioneiro também na ressignificação da linguagem da cultura ballroom. Enquanto todos os desfiles, mesmo os brasileiros, são realizados com o uso de termos em inglês, o Espírito Ancestral adaptou toda a linguagem do evento para termos em português que remetem à cultura indígena.
Categorias como “baby vogue”, “face”, “runway”, “hand performance” ou “lipsync”, no baile, foram chamadas, por exemplo, de “Rosto Ancestral: Face do Sol”, “Rainha Tecelã: Categoria de Artesanato”, “Caminhos da Floresta: Categoria de Caminhada”, “Moda Ancestral”, “Mãos de Pororoca: Performance das Mãos” e “Dublagem: Boca de Jambú”.
Para Caní, essa mudança é necessária e representa uma demanda de parte da comunidade ballroom. “Às vezes isso [a língua] pode gerar um afastamento das pessoas que não têm acesso ao inglês”, afirma.
A matriarca da Casa Jabutt também entende que a linguagem pode ser uma ferramenta que aproxima a cultura ballroom da cultura indígena, em vez de elitizar e sugerir o ballroom apenas a um determinado grupo de pessoas.
“Quanto mais a gente protagonizar, visibilizar e dar espaço para essas pessoas [negros, indígenas], mais a gente vai combater essas violências estruturais, esses estereótipos, essas formas de violência, para a gente continuar resistindo e combatendo esse processo de colonização que perdura até hoje”, finaliza.
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