Thara Wells, María Helena e Maria Ísis
1. Acervo pessoal. 2/3. Reprodução/Instagram — 12.01.2024
Thara Wells, María Helena e Maria Ísis

Na última quarta-feira (10), ocorreu a posse dos conselheiros tutelares, profissionais responsáveis por garantir os direitos das crianças e dos adolescentes nos municípios brasileiros. Em todo o Brasil, apenas quatro mulheres  trans e travestis foram eleitas para a função em 2023, incluindo uma reeleição, segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). 

Thara Wells, de Sorocaba, São Paulo , foi reeleita com 685 votos, sendo a segunda mais votada nas eleições para o Conselho Tutelar da cidade paulista; Maria Ísis foi eleita na cidade de Uruçuca, na Bahia ; Natasha Cardoso, em Rio Grande, no Rio Grande do Sul ; e María Helena, na cidade de Serra, no Espírito Santo

Agora, todas elas terão uma atuação durante quatro anos, cumprindo mandato de 2024 a 2027, para atuar em prol das crianças e adolescentes, priorizando a efetivação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) nos assuntos sensíveis a esse grupo. 

A posse delas, no entanto, acontece como atos de resistência nos espaços de CTs (Conselhos Tutelares), visto que, em todas as regiões do país, há uma enorme presença de conservadores e fundamentalistas religiosos nos cargos.

Histórico conservador 

A partir da década de 1980, os membros das igrejas evangélicas começaram a se integrar às instituições governamentais para promover seus interesses. O Conselho Tutelar tornou-se, então, um campo de batalha ideológica para a implementação de políticas voltadas para a juventude e os direitos humanos.

A estratégia conservadora visa utilizar esses conselhos para impor à sociedade uma única visão conservadora de família, interferindo e restringindo experiências familiares que não se enquadram no modelo tradicional heteronormativo. Não à toa, esses grupos aparecem atrelados a denúncias de racismo, LGBTfobia ou intolerância religiosa. 

"A primeira coisa que me veio à cabeça quando me candidatei foi a existência de crianças e adolescentes trans . Eles são frequentemente negligenciados pela família e por instituições como escolas, religiões e serviços de saúde. Por isso, acredito que é extremamente importante olhar para a diversidade para mudar essa realidade e desmistificar a ideia de que pessoas LGBTQIAPN+ estão sempre associadas à pedofilia”, defende Thara. 

Para ela, abusos acontecem dentro das famílias brasileiras e são totalmente omitidos. “Senti a responsabilidade de ocupar esse lugar para trazer mudanças. Perguntei a mim mesma: 'Por que não ter uma pessoa trans que vai trazer uma perspectiva de diversidade?'. A ideia é tentar mudar a visão da sociedade e dos próprios conselheiros tutelares para essa realidade subnotificada.”


Dificuldades durante a campanha 

Agora empossadas, a campanha não foi um caminho fácil para as conselheiras, sobretudo porque muitas viraram alvos de ataques coordenados de conservadores para dificultar a aquisição de votos, usando a identidade de gênero delas como principal motivo. 

No caso de Thara, foi ainda mais violento. Ela teve sua moralidade questionada publicamente devido a uma realidade, de seu passado, que se impõe à vida de muitas mulher trans e travestis: a prostituição . Embora a educação tenha levado  a conselheira para outro caminho, sempre que pode ela fala sobre a problemática da prostituição na vida de mulheres trans e travestis. 

Os ataques iniciaram após Thara decidir se candidatar novamente, pois ela já era conselheira tutelar quando foi suplente e ficou empossada apenas seis meses, — o que não causou incômodo aos conservadores por ter sido feito de maneira mais reservada e sem campanha. No entanto, após iniciar a campanha para a nova gestão de 2024, ela virou alvo desse grupo. 

“Trabalhei nas ruas de Sorocaba por mais de 30 anos da minha vida, e nunca neguei isso a ninguém. Meu passado de vulnerabilidade e exclusão é publico e notório, pois falo dele em todas as minhas palestras. Fui denunciada no MP [Ministério Público], de modo anônimo, por não ter idoneidade moral para tal trabalho e fui diariamente atacada nas redes sociais”, lembra.

Hoje, ela é assistente social, mestranda nos Estudos da Condição Humana na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), foi cofundadora da Associação de Transgênero de Sorocaba e a primeira mulher trans eleita conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, entre 2018 e 2022. 

Maria Ísis, de Uruçuca, também relatou em suas redes socais que durante a campanha sofreu ataques devido sua identidade de gênero. Mas foi eleita com 568 votos. 

Mesmo com os ataques, elas não abandonaram a campanha. Agora, todas elas, inclusive María Helena, eleita com 315 votos, e Natasha Cardoso, com 268, querem trazer novos ares para os CTs, com foco na diversidade, acesso à educação, saúde e o combate às violências físicas, psicológicas, sexuais e de gênero das crianças e adolescentes.

Em 2016, Silvânia foi a primeira trans a ser conselheira tutelar 

Silvânia Sousa, conhecida como Silvânia Mãozinha, foi a primeira conselheira tutelar do Brasil, em 2016
Reprodução/Instagram — 12.01.2024
Silvânia Sousa, conhecida como Silvânia Mãozinha, foi a primeira conselheira tutelar do Brasil, em 2016

Apesar do predomínio ultraconservador nos Conselhos Tutelares, há vitórias que devem ser celebradas, como as das novas conselheiras. No Brasil, a primeira conselheira tutelar trans foi Silvânia Santos de Sousa, conhecida como Silvânia Mãozinha, em Aracaju (SE), no ano de 2016.

Ela foi conselheira por oito anos, saindo em 2023 para se tornar coordenadora de políticas públicas em defesa da população LGBTQIAPN+, da Secretaria de Estado da Assistência Social e Cidadania de Sergipe (Seasc). 

"Até então, eu não tinha noção de que estava sendo a primeira mulher trans a ocupar aquele espaço no Conselho Tutelar a nível nacional, mas sabia que em Sergipe, sim, e não foi algo fácil. Fui vítima de ameaças e discriminação de todos os tipos, tanto no processo de escolha, em que ouvi frases preconceituosas do tipo: 'Lugar de travesti é na rua se prostituindo e não cuidando de crianças', quanto após já ter sido eleita", conta ela, que divide outro exemplo da transfobia que viveu no período.

"Um rapaz foi até uma rádio local para questionar o pleito por eu ter sido eleita e disse que não deixaria sua filha ser atendida por uma travesti nem por um minuto."

Apesar dos obstáculos, ela pôde desenvolver um bom trabalho na garantia dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. “Tinha um olhar sensível para famílias vulneráveis de extrema pobreza, em situação de rua, negras, LGBTI+, PCD, independentemente do credo ou religiões, rompendo a invisibilidade e também com iniciativas de campanha ao combate do trabalho infantil, abuso e exploração sexual.”


Como resultado do seu trabalho, em 2018, ela foi reconhecida como cidadã sergipana e aracajuana pelos relevantes serviços prestados ao estado e à capital durante seu mandato no Conselho Tutelar, sendo também a primeira trans a receber este prêmio no estado nordestino. 

Conheça cada conselheira empossada em 2024: 

Thara Wells

Thara Wells foi eleita conselheira tutelar com 685 votos
Arquivo pessoal
Thara Wells foi eleita conselheira tutelar com 685 votos

Além de já ter sido suplente do Conselho Tutelar, Thara é também mestranda em Estudos da Condição Humana pela UFSCar e recebeu o título de cidadã emérita de Sorocaba.

Foi a primeira pessoa trans do município a integrar o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (2018-2022). Além disso, é a primeira mulher trans assistente social de Sorocaba, cofundadora da Associação de Transgênero do município. Desde a décade de 1990 atua na militância e ativismo LGBTQIAP+ , sobretudo com foco na comunidade trans e travesti. 

Maria Ísis 

María Ísis é empossada conselheira tutelar
Reprodução/Instagram — 12.01.2024
María Ísis é empossada conselheira tutelar

Empreendedora, repositora e palestrante. Empossada conselheira tutelar na cidade de Uruçuca, na Bahia.

María Helena

María Helena é empossada conselheira tutelar
Reprodução/Instagram — 12.01.2024
María Helena é empossada conselheira tutelar

Atua há mais de 10 anos em movimentos sociais na defesa dos direitos humanos e, em especial, das crianças e adolescentes em Serra, no Espírito Santo. É estudante de Serviço Social na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). 

Natasha Cardoso

Natasha Cardoso foi empossada conselheira tutelar
Reprodução/Instagram — 12.01.2024
Natasha Cardoso foi empossada conselheira tutelar

Profissional de enfermagem, foi a primeira mulher trans da América Latina a vencer o Miss Trans Global em 2022 e foi empossada conselheira tutelar na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul.

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