Kley Hudson, 24, nascida e criada no bairro Engenho da Rainha, na zona norte do Rio de Janeiro , foi a primeira professora negra e travesti da Escola Livre de Dança da Maré (ELDM), localizada no Centro de Artes da Maré (CAM), na capital fluminense. Ela foi professora temporária em uma oficina que ocorreu no mês de outubro de 2022.
A jornada de Kley no mundo do balé começou aos 11 anos, de forma inesperada, enquanto frequentava aulas de natação na Vila Olímpica do Complexo do Alemão. Naquela época, seu corpo ainda era percebido como masculino, mas a visão das meninas saindo do balé despertou nela uma curiosidade.
"Todas as manhãs de quarta-feira eu me trocava no vestiário e ia para a beira da piscina esperar o professor. E quando eu chegava lá, me preparava, colocava minha touca, meus protetores e ficava observando as meninas da ginástica rítmica, da ginástica olímpica e do balé passarem arrumadas com seus coques muito bem feitos, com gel, todas com as posturas lá em cima andando em sincronia e isso me encantou", relembra Kley.
Um dia, ela decidiu segui-las e descobriu que havia três salas para as meninas de cada modalidade: balé, ginástica rítmica e ginástica olímpica. "Lembro que fiquei no cantinho observando de longe. Quando a aula acabou, eu voltei para casa muito feliz, com uma energia muito grande, radiante e querendo reproduzir tudo que os meus olhos captaram naquela aula."
Na quarta-feira seguinte ela retornou à Vila Olímpica, mas dessa vez não para fazer natação, e sim para ir direto à sala de dança. Passados alguns meses, Kley continuou frequentando as aulas, contudo sem contar para a mãe sobre a mudança.
"No final, haveria uma apresentação, e nessa mesma apresentação haveria um conjunto de apresentações de outros núcleos desportivos da Vila Olímpica, em que a natação também teria que participar. Minha mãe chega, troco de roupa, faço a competição de natação, saio em 2ª lugar, me troco correndo novamente e digo para minha mãe: 'Tenho que te contar uma coisa, eu também sei dançar'", recorda.
"Sabe dançar o quê? O que você dança?", perguntou a mãe de Kley logo na sequência. A bailarina, então, levou a mãe até o pátio onde estavam muitas outras pessoas. Colocou ela sentada e fez a mãe a assistir dançar pela primeira vez.
Tempos depois, a bailarina conseguiu uma bolsa em uma escola de dança local e começou a aprender diversas técnicas de dança; e não apenas do balé, e por três anos foi se desenvolvendo. Ela também foi aluna da Escola Livre de Dança da Maré, onde cursou formação intensiva em dança, antes de se tornar professora do local.
Na trajetória dela, o estudo de danças clássicas e modernas foi bastante relevante e se expandiu para diversos outros espaços, inclusive realizando residências de dança. Até que, em 2019, ela começa a fazer aula também no Theatro Municipal de São Paulo , mas ainda enquanto um corpo percebido como masculino.
"Eu fui com a cara e com a coragem, com medo e com muito desejo. Chegando lá, cidade grande, prédios altos. Adentro uma sala gigante, com pianista, coisa de filme. Havia um espelho enorme, ponta a ponta, coisa que aqui na minha favela não tinha”, conta.
"E eu faço um questionamento muito rápido. Pois quando eu percebo, e olho ao meu redor, há apenas corpos masculinos ou que performavam masculinidade dentro daquela sala. E eu ficava com uma aflição aguardando a qualquer momento, uma única figura feminina entrar aquele espaço. E não aconteceu", completa.
Com essa reflexão, Kley notou a meritocracia, o machismo e o racismo. "No balé, o homem sempre tem que ser a base de sustentação para o outro, e a mulher sempre tem que ser leve, como uma pena, para voar."
Ela nunca almejou ser a base, sempre quis voar. Preparar-se, maquiar-se, vestir uma meia-calça, mas era proibida. Sempre foi colocada para dançar com os homens. Até que a pandemia chega, tudo se aperta, o desejo se intensifica e ela retorna ao Rio de Janeiro.
Ao chegar, uma de suas antigas professoras informa que há uma audição aberta para o Conservatório Brasileiro de Dança. Kley é aceita na escola e permanece lá até a sua formação. Quando a gestão da escola muda, ela sai. No entanto, sai como uma bailarina profissional, com DRT, e começa a dar aulas. Agora, já se identificando com uma travesti.
"Eu fico muito feliz, porque a partir desse registro profissional eu consigo começar a dançar com outras companhias, consigo trabalhar com outras pessoas de forma profissional e consigo dar aula. E aí eu começo a perceber como que o meu corpo impactava dentro das salas de aula.”
Entre suas influências, há as amigas dançarinas, mas ela destaca a bailarina Márcia Dailyn, que é a primeira bailarina trans do tradicional Theatro Municipal de São Paulo, onde Kley também foi aluna.
A falta de representatividade trans ou travesti
“Eu nunca observei e nunca tive a honra e o prazer de ter uma professora trans ou travesti em nenhuma modalidade, do balé à dança afro. Encontrava apenas enquanto alunas, e é bonito ver outros corpos como o meu fazendo dança. Mas mesmo assim, o espaço de professora ainda é difícil.”
Pela falta de representatividade trans, quando estudante, Kley buscava essa identificação em outros lugares, como na cor da pele, observando bailarinas e bailarinos negras. Inclusive, teve Ingrid Silva, que pintava as sapatilhas com base de maquiagem para que ficassem no mesmo tom de sua pele, como inspiração.
“A gente precisa de corpas trans dentro de salas, ministrando aulas, seja do que for, negras, então…”. Para ela, o balé tradicional ainda tenta homogeneizar as pessoas.
“As bailarinas precisam ter os mesmos biotipos, não podem ter seios e usam sapatilhas salmões e meia-calças brancas para parecerem todas iguais. Todas as bailarinas estão com o tutu da mesma cor, sem nenhuma bailarina negra. Se a bailarina é negra, usa-se pancake nela”, detalha Kley.
“Os teatros foram criados com o palco embaixo e as plateias para cima, para que o público não reconheça quem é quem [entre as bailarinas] e de longe achar que todas são iguais — o famoso corpo de baile. Na verdade, o corpo de baile é composto por diversas pessoas com muitas diversidades, mas o balé faz de tudo para igualar, igualar no sentido de estereótipo. De ser todo mundo igual, parecido, idêntico”, critica a professora.
O balé que abraça o novo
“Esse antigo balé é racista. Mas o balé de hoje, o balé que ensino, tem negras, tem gordas, tem mulheres peitudas, tem homens, tem gays, tem travestis, tem drag queens , tem lésbicas , tem pessoas com deficiência. É ser meia-calça, é descalço, é pé no chão. Tudo isso, com a mesma técnica.”
Além de dar aulas, Kley também pratica muitas danças e faz diversos espetáculos. “No Brasil não tem como se viver de balé. Vive-se de dança, mas não de balé. É muito mais fácil o mercado de trabalho contratar para dançar muitas coisas do que convidar para dançar apenas o balé.”
Para ela, é de extrema importância seu corpo ocupar estes espaços, principalmente por ser locais em que identidades dissidentes são negligenciadas.
“A primeira sensação é de vitória. É um avanço. E depois, de abertura de caminhos para aqueles que virão em seguida. Isso é muito satisfatório, é muito importante ser esse corpo presente, ocupando espaços que a sociedade burguesa e elitista diz que não se pode estar, principalmente dentro de teatros. A dança me levou a todos esses grandes palcos, com grandes holofotes.”
Kley anseia por um balé que seja preto, descentralizado e transcentrado. No entanto, ela ressalta que o balé já evoluiu bastante. Ser uma pessoa travesti, que deu aulas em uma escola, no Centro de Artes da Maré, sob a direção de uma coreógrafa mundialmente renomada, Lia Rodrigues, "é um sinal de grande potência, riqueza, fé e Axé."
"O balé tem que estar dentro das escolas, o balé tem que estar dentro da favela, não nos grandes teatros, não na Europa, não na Rússia. O balé tem que estar para todos, todas e todes. Porque o meu balé é inclusão", finaliza.
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