“Expurgo toda uma cultura de morte. Porque quero ser vida”. A frase faz parte do texto que dá o tom do espetáculo “Angu” que está em cartaz no Futuros – Arte e Tecnologia, no Rio de Janeiro, até o dia 17 de dezembro.
Escrita e dirigida por Rodrigo França, a peça encenada por Alexandre Paz e Orlando Caldeira, quebra estereótipos e apresenta histórias possíveis de pessoas negras gays.
O espetáculo conta seis histórias paralelas vivenciadas por pessoas negras gays – ou “bixas pretas”, como são chamadas —, e o objetivo é desafiar a visão social que tende a objetificar, coisificar, criminalizar e hiperssexualizar essas pessoas, além de denunciar as violências que afetam este grupo.
A montagem também homenageia e agradece ícones como Madame Satã, Gilberto França, o bailarino Reinaldo Pepê, Rolando Faria e Luiz Antônio (Queer Les Étoiles) e Jorge Laffond.
A ideia do espetáculo nasceu da vontade de falar sobre liberdade e sobre as pessoas que só desejam ser felizes, mas são impedidas porque a busca dessa felicidade tem a ver com a liberdade de ser o que se é. Em cena, personagens subvertem o esperado: a não performance do homem negro com a sua masculinidade ultra, megaviril e heteronormativa.
As seis histórias se dividem entre um sargento da Polícia Militar que honra a sua farda, mas tem a sua sexualidade como alvo de piadas para seus colegas; um jovem estudante de enfermagem que se deslumbra com a classe média branca e deseja ser por ela incluído, porém, é somente hiperssexualizado; o sonhador que fica diariamente sentado no banco da rodoviária e se envolve numa tarde de amor em um banheiro público; o menino encantado com o que dizem do seu tio Gilberto, um homem negro gay que desapareceu no mundo para fazer a sua arte longe da família homofóbica; Madame Satã – transformista que teve que largar a arte para viver à margem como malandro da Lapa; e uma homenagem ao Les Étoiles, icônica dupla queer negra brasileira que abriu as portas da Europa para a MPB.
O iG Queer conversou com Rodrigo França, diretor e roteirista de “Angu”, para entender mais sobre a peça. Abordando essas referências artísticas da negritude, a montagem realiza uma espécie de resgate da ancestralidade preta e gay. Se a plateia irá curiosa pelo nome apetitoso, não se sabe, mas o desejo de Rodrigo é que elas saiam modificadas pela sua receita cênica.
Confira a entrevista na íntegra:
iG Queer
— Quando surgiu o desejo de criar a peça?
Rodrigo França — "Através dos atores Alexandre Paz e Nina da Costa Reis. Foi a inquietude do Paz de falar artisticamente sobre a sua existência como um homem negro e gay e as suas questões sociais."
iG Queer — A peça surgiu como uma demanda interna de toda a equipe, já que a maioria é composta por pessoas negras e com sexualidades diversas?
Rodrigo França — "É uma equipe que já tem uma longa experiência, com trabalhos de excelência juntos. Somando com o desejo de fazer teatro contemporâneo que impute discussões relevantes. Quando a nossa vida pessoal é baseada na diversidade, o nosso trabalho tende a acompanhar. Sendo assim, o que almejamos artisticamente vai seguir esta tendência."
iG Queer — Qual é a importância de criar montagens que celebram os corpos negros afeminados, as "bixas pretas"?
Rodrigo França — "Humanizar quem normalmente é desumanizado socialmente. Levar uma temática como a nossa para o palco, principalmente em um teatro na zona sul do Rio, somando que o público que está na plateia também é de quem a sociedade não está acostumada a ver nestes espaços, é revolucionário. A arte é poderosa porque ela evidencia questões que normalmente não se discutem no cotidiano."
iG Queer — Montagens do tipo são escassas e geralmente são feitas com um teor de sexualização, sem abranger toda a subjetividade e identidade que uma pessoa negra carrega consigo, especialmente os negros gays. O que a peça traz de diferente nesse sentido?
Rodrigo França — "Ela é criada por profissionais que vivem o que falamos em cena. O tal 'lugar de fala' com responsabilidade. Não há caricatura e/ou estereótipos. Há muita sensibilidade e subjetividades naquilo que estamos nos propondo a fazer. O teatro pode ser um lugar de cura e o nosso foi no processo de criação e está sendo para quem assiste."
iG Queer — Em que formato o espetáculo é apresentado? E como as apresentações estão sendo direcionadas?
Rodrigo França — "Em formato de contos e documentário. Se mistura aquilo que é ficcional com histórias de personalidades importantes e a vida de cada ator. Este jogo dramático que é o molho do espetáculo. Quem está indo se diverte, mas se emociona."
iG Queer — Qual é a linha tênue entre a ficção e a realidade que a peça traz?
Rodrigo França — "Sensibilidade, para sensibilizar. Temos um pouco de cada personagem ali presente. O segredo do espetáculo 'Angu' é não saber o que é ficção ou não. Até porque os dilemas estão em nosso cotidiano. Mesmo que o espectador não seja uma bixa preta, em algum lugar vai se identificar. Nem que seja na opressão inconsciente."
"Há familiares que saem tocados, porque acreditavam que aquilo que faziam era amor e proteção, mas descobrem que era violento. Outros saem orgulhosos porque identificam potência na bixa preta que está ao seu lado."
iG Queer — O espetáculo traz histórias de seis personagens para retratar diversas vivências negras e gays. Como isso foi pensado e por quê?
Rodrigo França — "Precisava colocar algumas características que encontramos pela vida. Então, pensei por temáticas. Desde a bixa que sonha encontrar um grande amor até aquela que se sujeita a tudo para se sentir aceita pela branquitude. Mas também temos Madame Satã e Jorge Laffond que mostram as suas relevâncias e a necessidade de reverenciá-los."
iG Queer — "Angu" é alimento. O nome surgiu com o desejo de alimentar o espectador no final com histórias possíveis e humanizadoras para essas identidades negras e gays?
Rodrigo França — "Com certeza. É um alimento ancestral que está ligado ao sentido de irmandade. Negras escravizadas colocavam escondido carne debaixo do mingau de fubá, para dar sustância aos seus e suas. Arriscar a própria pele em prol da sua comunidade. O termo 'tem caroço neste angu' vem daí."
SERVIÇO
Data:
até 17 de dezembro de 2023
Apresentações:
quinta-feira a domingo às 20h
*
Dias 18 de novembro e 2, 9 e 16 de dezembro haverá sessões duplas às 17h e 20h
**
Dia 25 de novembro haverá uma sessão antecipada, às 17h
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Dia 8 de dezembro não haverá sessão
Onde:
Futuros – Arte e Tecnologia — Rua Dois de Dezembro, 63 – Flamengo, Rio de Janeiro
Ingressos:
R$ 30 a R$ 60; compre aqui
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