A psicanalista Clara Fernandes afirma que pessoas LGBT+ vivem lutos desde cedo, como por exemplo do afastamento da família por LGBTfobia. Este cenário faz com que elas superem o luto da perda de um parceiro de forma mais rápida que pessoas hétero, segundo a psicóloga Bárbara Meneses.
Pexels/ Foto descolorida pelo iG Queer
A psicanalista Clara Fernandes afirma que pessoas LGBT+ vivem lutos desde cedo, como por exemplo do afastamento da família por LGBTfobia. Este cenário faz com que elas superem o luto da perda de um parceiro de forma mais rápida que pessoas hétero, segundo a psicóloga Bárbara Meneses.

O dermatologista Thales Bretas, 34, perdeu o marido, o comediante Paulo Gustavo, em maio de 2021, em decorrência de complicações da Covid-19. O Brasil todo sentiu e acompanhou o luto do médico, que também é pai dos gêmeos Romeu e Gael, de três anos, que teve com o ator com a ajuda de uma  barriga solidária.

O amor entre os dois era nítido e o casal, muito pelo carisma de Paulo Gustavo, conseguiu enfrentar as barreiras da LGBTfobia institucionalizada na sociedade brasileira e viveu sua relação de forma plena e pública. Pouco mais de um ano após a morte do comediante, Thales assumiu um relacionamento com o cantor Silva , 34, em setembro do ano passado, durante o festival Rock in Rio.

O que deveria ser um motivo de celebração pública e uma manifestação de superação do luto foi recebido pelas pessoas, especialmente nas redes sociais, como uma questão negativa.

A maior parte dos comentários manifestavam reprovação pela “rápida” volta de Thales à vida amorosa , algo que pode ter minado este novo relacionamento e os dois anunciaram o término no dia 12 de janeiro. Mas, será que de fato existe um tempo certo para que uma pessoa que tenha perdido o parceiro afetivo superar o luto da morte? Para as psicólogas Bárbara Meneses e Clara Fernandes a resposta é "não".

“Existem as fases do luto, mas a experiência é subjetiva. Cada um vive esse período de luto de uma forma. Inclusive as fases se alternam muito e o tempo de cada fase é completamente diferente. Cada um vivencia isso de uma forma distinta. O luto não tem um período exato. ‘Ah, você vai ficar dois anos de luto, seis meses de luto’, não existe isso”, afirma Bárbara, que atua há 19 anos no Centro de Referência LGBT+ da Prefeitura de Campinas, em São Paulo.

“O primeiro ano é mais difícil, porque é o ‘primeiro tudo’ sem a pessoa. Primeiro Dia dos Namorados, primeiro Natal, primeiro Ano Novo, primeiro aniversário... são todas essas datas comemorativas que marcam o relacionamento sem aquela pessoa”, acrescenta a profissional.

Já Clara, que se identifica como uma pessoa bissexual não binária e atua no campo da psicanálise, o luto pode ser definido como um “processo de lidar com a própria transitoriedade da vida e com a percepção de que as coisas passam”.

“As fases do luto, como negação e raiva, por exemplo, são um conceito que simplifica um processo que é muito subjetivo. Muitas vezes as pessoas nem conseguem entrar no luto, o que Freud chamava de ‘melancolia’, que é uma experiência constante de vazio e de perda”, explica a profissional que na sequência desenvolve melhor o conceito freudiano.

“A melancolia é uma forma de contornar o luto. Ao invés de a pessoa entender que perdeu aquele ‘objeto’ [o parceiro de relacionamento, no caso], a pessoa coloca esse ‘objeto’ para dentro de si e passa a conviver com aquele ‘objeto’ que está perdido, mas ao mesmo tempo está dentro da pessoa, e continua vivendo com ela. É um processo de autoagressão e de autodepreciação”, afirma.

A psicanalista corrobora com a afirmação de Bárbara e também acredita que não existe prazo para a superação do luto “até porque na psicanálise trabalhamos com o tempo do inconsciente e não com o cronológico”. Contudo, a profissional explica que é possível identificar quando o luto está se tornando negativo para a pessoa, o que ela associa ao conceito de melancolia.

“Quando o luto não acontece, de fato, como um processo de luto, mas sim de melancolia, é possível identificar que está se tornando um problema. Quando a ausência da pessoa que se foi é muito forte, e a pessoa que fica não consegue atravessar esse espaço de ausência, não consegue construir algo a partir da perda, isso se torna um problema. Conseguimos avaliar isso a partir da própria fala do paciente”, afirma.

Bárbara desenvolve a questão e traz exemplos práticos de quando o luto começa a se tornar “um problema”. Para a psicóloga, que também atua como terapeuta sexual , o primeiro sinal é quando a pessoa “não consegue retomar as atividades básicas que antes para ela eram importantes”.

“Além de ficar mais recolhida e introspectiva, a pessoa começa a abandonar questões de higiene, não consegue mais voltar ao trabalho, sair com os amigos. Ela basicamente não consegue retomar a vida”, explica a profissional, que aponta mais uma questão de alerta sobre um possível luto prolongado: manter o quarto e os pertences do parceiro intactos.

“Isso é uma coisa muito ruim porque a pessoa viva fica presa naquele momento, nas lembranças que o quarto proporciona. É como se ele aguardasse o retorno do parceiro que se foi a qualquer momento. Depois de um tempo, orientamos que a pessoa mude o quarto. Não precisa ser em seguida ao ocorrido, apesar de algumas pessoas preferirem desmontar o quarto logo após a morte”, explica Bárbara, que também reforça a importância de pedir ajuda de pessoas de confiança para esta tarefa difícil.

“Não precisa necessariamente se desfazer de tudo de uma vez, a pessoa em luto pode ir mudando os móveis de lugar, doando alguns itens, ir ressignificando o espaço”, diz.

O luto nas relações LGBTQIAPN+

A psicóloga Bárbara Meneses defende que é importante trabalhar o desapego aos itens relacionados ao parceiro que morreu.
Pexels
A psicóloga Bárbara Meneses defende que é importante trabalhar o desapego aos itens relacionados ao parceiro que morreu.


As psicólogas são unânimes ao afirmarem que o luto para pessoas LGBT+ é mais intenso, e isso se justifica por uma série de fatores. Para Bárbara Meneses, além de mais intenso, esse luto é mais curto, uma vez que casais heteroafetivos respondem mais às expectativas sociais.

“O casal hétero se preocupa mais com o julgamento da sociedade e segue mais padrões. A pessoa LGBT+, geralmente, consegue refazer a vida de uma forma mais rápida porque já não segue os mesmos padrões sociais, uma vez que muitas dessas pessoas, inclusive, não têm nem suas relações afetivas validadas socialmente devido à LGBTfobia”, afirma.

A profissional observa que o luto da perda de um parceiro é mais profundo para pessoas LGBT+ porque a sensação que fica é que a pessoa não vai conseguir encontrar outro parceiro na vida, uma vez que as relações LGBTafetivas são mais marginalizadas na sociedade. Ela aborda ainda outro ponto referente às pessoas queer.

“Outro ponto é que a população LGBT+ desenvolve algo que a população hétero talvez não alcance, que é a resiliência. A população LGBT+ tem que se refazer o tempo todo. Todos os problemas que a população hétero passa, a população LGBT+ também passa, mas esta vive situações de violência que a outra não precisa lidar”, afirma.

A psicanalista Clara Fernandes aprofunda o debate e traz uma perspectiva maior sobre o luto de pessoas LGBT+. Para a profissional, a comunidade queer passa por muitos lutos ao longo da vida.

“A comunidade trans , por exemplo, vive o luto de um ideal de corpo e um ideal de comportamento. A família das pessoas LGBT+ também passam por um luto que é sobre um ideal social sobre essas pessoas”, afirma.

“Por exemplo, a questão de fazer o chá de revelação do sexo do bebê, que já traz uma expectativa sobre o gênero da criança. Toda essa experiência cria na família um ideal que depois, se a criança se revelar não binária, trans , ou seja, ser parte da comunidade LGBT+, essa família vai ter que lidar com o luto de um ideal de uma criança hétero cis normativa. E muitas vezes esse luto da família faz com os laços com o indivíduo LGBT+ se rompam, o que se torna, muitas vezes, o primeiro luto da vida dessa pessoa”, explica Clara.

Para a profissional, a saída é encontrar apoio na comunidade LGBT+, que representa uma segunda família para a pessoa queer, porque a família e até mesmo a religiosidade podem representar fatores de risco para a recuperação do luto.

“A comunidade em si representa um papel muito importante em momentos como estes porque são a ‘família escolhida’, a que acolhe, a rede de apoio que ajuda nestes momentos de exclusão. Outras pessoas da comunidade precisam abraçar a pessoa em luto”, afirma Clara.

Thales e Silva

Thales Bretas, ex-marido de Paulo Gustavo, viveu um relacionamento com o cantor Silva entre setembro de 2022 e janeiro de 2023.
Reprodução/Instagram - 10.01.2023
Thales Bretas, ex-marido de Paulo Gustavo, viveu um relacionamento com o cantor Silva entre setembro de 2022 e janeiro de 2023.



Desde a manifestação pública sobre o relacionamento, Thales e Silva foram superdiscretos e abordaram pouco a relação de forma pública. Em 12 de janeiro deste ano, as assessorias de ambos informaram que o relacionamento havia chegado ao fim, quatro meses após o romance vir a público.

Para a psicóloga Bárbara Meneses, a pressão pública sobre a relação se deu muito pelo fato de Paulo Gustavo ser uma pessoa muito querida. Na avaliação da profissional, independentemente do tempo que o dermatologista demorasse para viver uma nova relação, o julgamento das pessoas seria negativo porque elas enxergariam o novo relacionamento como “um apagamento da existência do Paulo Gustavo e da relação dele com Bretas como casal”.

“As pessoas ficam presas nisso, nessa imagem desse casal, e isso não acontece apenas com pessoas famosas. As pessoas julgam como se o Thales, neste caso, não sofresse mais pela perda do Paulo Gustavo, como se estivesse apagando a saudade dele, o que em hipótese alguma é verdade. Eu tenho certeza que o Thales vai demorar muito para esquecer o Paulo Gustavo. Porém, a vida tem que seguir”, afirma.

Para Clara, as pessoas colocaram seus próprios tempos psíquicos, “o tempo que elas processariam o luto”, em uma outra pessoa, da qual elas não sabem muitas coisas. “O acesso que temos às pessoas famosas é um acesso à imagem, não é um acesso à pessoa. É uma forma de projeção”, afirma.

Bárbara acrescenta que outro complicador são os filhos de Thales com Paulo Gustavo, uma vez que, para as pessoas, fica sempre a dúvida de qual lugar o novo parceiro vai ocupar na dinâmica da família.

“O Silva vai ser o pai dos meninos? Vai ser o padrasto? Qual será a relação dele com os meninos? Qual será a relação dele com a família? As pessoas ficam com a impressão de que esse novo namorado vai substituir a pessoa que se foi, mas é preciso entender que não”, diz.

Para concluir, a psicóloga afirma que o mais importante é viver o luto de forma plena e no momento que ele ocorre para evitar problemas de desequilíbrio da  saúde mental.

“A pessoa precisa de um tempo para chorar, para se recolher, para ficar mais introspectiva, para sentir mesmo todas as sensações, porque se ela não as sente na hora do luto, isso volta em algum outro momento e fica mais em desacordo, em desequilíbrio. As emoções do luto, de tristeza, de raiva, de não se conformar com a situação, principalmente se foi uma morte repentina como em um acidente, um assassinato, algo do tipo, ficam potencializadas e elas precisam ser vividas. Uma das formas de adoecer é não viver o sentimento naquele momento”, finaliza.

Agora você pode acompanhar o iG Queer também no Telegram! Clique aqui para entrar no grupo.  Siga também o  perfil geral do Portal iG.

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!