Estar em desacordo com as normas hétero-cis normativas fomentadas pela sociedade em todos os âmbitos sociais é uma das principais fontes de conflitos internos e externos de quem faz parte da comunidade LGBTQIAP+. Independentemente da idade e da fase da vida em que o indivíduo se descobre, a pressão para se encaixar no padrão exposto o atinge de maneira inevitável.
É dessa imposição que nasceu o termo “heterossexualidade compulsória”, definido pelo psicoterapeuta Adilon Harley como “uma ferramenta para tentar garantir a estrutura patriarcal de poder”. De acordo com ele, isso afeta diretamente as pessoas LGBTQIAP+, mas principalmente as mulheres cis, uma vez que essa heterossexualidade compulsória reafirma valores e comportamentos nocivos em qualquer relação humana. "Ela [heterossexualidade compulsória] é um instrumento de poder que cada vez mais perde o sentido e que está reativo justamente pela percepção coletiva da falência desse modelo”, afirma.
Em todos os lados, as referências recebidas pelos indivíduos em questão de gênero e sexualidade são sempre heterossexuais e cisgênero, vistos como a “ordem natural das coisas”. Nadar contra essa maré, por assim dizer, exige muito esforço e, na grande maioria das vezes, é um processo longo, como conta Hanna Vinagre, estudante de letras e mulher cis lésbica.
"Gostei de uma menina pela primeira vez aos 13 anos, ela era uma das minhas melhores amigas da época. Por ter vindo de uma criação católica, na minha cabeça o certo sempre foi conhecer um homem, casar e ter filhos, então me deparar com uma situação na qual eu não conseguia me interessar por nenhum garoto e seguia sentindo um ciúme ‘irracional’ pela minha melhor amiga foi confuso e difícil de perceber. A junção da influência católica, familiar e social resultou numa pressão que criei em mim mesma para me convencer de que era uma mulher heterossexual”, relata.
As influências externas, como os estereótipos de masculinidade e feminilidade e a reprodução de ideias como “homens gostam de mulheres” e “mulheres gostam de homens”, são alguns exemplos de como funciona a heterossexualidade compulsória: os indivíduos crescem recebendo referências hétero-cis, que são totalmente difundidas e naturalizadas em todos os meios, então o contato com qualquer aspecto que fuja desse padrão desencadeia um processo de autoconhecimento denso e complexo.
Jaqueline Bifano , psiquiatra da infância e adolescência, diz que pessoas LGBTQIAP+ costumam ter vários conflitos e “uma sensação de passar anos de vida tentando ser alguém que ‘não se é’, com um preconceito internalizado no próprio indivíduo que se traduz, muitas vezes, em adoecimento”. Ela acrescenta ainda que “existe um pressão para a cultura do cis-hétero que geram violência e os conflitos relacionados à aceitação familiar e social causam uma confusão emocional angustiante”.
Laura Arcanjo, mulher cis lésbica, estudante de jornalismo e estagiária de comunicação interna na Bridgestone Brasil, conta que desde muito nova se sentia atraída por mulheres e, na adolescência, devido à cobrança externa para que encontrasse um namorado, chegou a envolver-se com um amigo, ainda que não sentisse atração por ele.
“Eu aproveitei o sentimento de amizade que existia entre nós para tentar engatar uma relação romântica, mas não sentia vontade de beijá-lo ou de estar ao lado dele como casal”, explica. “Eu não era atraída por homens, porém não conseguia aceitar isso. Ficava sem saber o que fazer e hoje vejo como a heterossexualidade compulsória me obrigava a estar dentro de um padrão heteronormativo”.
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Adilon esclarece que a pressão para que os indivíduos estejam dentro da norma cis-hétero faz com que pessoas LGBTQIAP+ criem alguns mecanismos de defesa e desenvolvam o famoso processo de negação.
“Dois mecanismos de defesa muito comuns nesses casos são a repressão do sentimento ou a reprodução do comportamento combativo. Em ambos os casos, a pessoa experimentará uma angústia muito grande. A negação esconde o desejo reprimido que não pode ser revelado. Não há espaço para os desejos em uma sociedade patriarcal, eles são construídos ao redor da ideia da cis-heteronormatividade masculina. Entrar em contato com estes desejos ainda precocemente, transmite a ideia de defeito, doença, pecado. Quanto maior a possibilidade de negar, maior a chance de domar estes desejos”, pontua.
A psicóloga clínica Mônica Mafra ressalta ainda que são muitos os obstáculos que a população LGBT precisa enfrentar por ser quem é, então os conflitos internos e externos acabam potencializados.
“Imagine sentir-se discriminado, avaliado e alvo de piadas. Sofrer preconceitos provoca dor, medo e tristeza. Há uma violência dirigida às pessoas por causa da sexualidade e identidade de gênero delas, que pode ser psicológica e até física. A ferramenta que a heterossexualidade compulsória usa é a ideia de uma suposta ‘patologia da sexualidade’. Avalio que é uma forma de opressão, de controle e de exclusão”, diz.
Falta de representatividade
Quando Alex de Araújo Pereira, estudante, viu uma pessoa trans em TV aberta pela primeira vez, em 2017, se identificou com o personagem, mas não bastou para que se sentisse totalmente representado e compreendesse a identidade dele, mesmo que o reconhecimento da não conformidade com o gênero que lhe foi imposto ao nascimento existisse desde cedo.
“Eu não sei ao certo quando eu aceitei que isso era normal, mas desde que eu me lembro, quando tinha uns 12 anos, eu já tinha noção de que gostava de pessoas e não de gêneros, porém sempre me julgavam, como se aquilo fosse errado. Inclusive foi uma das razões para eu demorar a me descobrir não-binário”, explica.
Essa representatividade ainda precária e, em muitos âmbitos, praticamente inexistente, dá mais espaço para que a pressão da cis-hétero normatividade se intensifique e os indivíduos sejam distanciados das referências que mais se aproximam às próprias vivências. Para Hanna, a falta de representatividade resulta na falta de apoio durante a formação da identidade pessoal.
“Desde criança, nós assistimos a programas de televisão e lemos gibis e livros escolhendo como favoritos os personagens que se parecem conosco. Essa escolha, que pode parecer inocente, é na verdade algo que nos ajuda a moldar a nossa personalidade e vislumbrar possibilidades de existência. Então, sendo uma pessoa que cresceu com pouquíssimas referências, vejo como isso atrapalhou meu desenvolvimento como pessoa. Eu era uma menina descobrindo sentir atração por outras meninas, mas quem são essas pessoas que nunca vi antes?”, explica.
Laura conta que só conseguiu se entender melhor e iniciar um processo de autoaceitação quando entrou na faculdade, onde teve contato com outras pessoas da comunidade LGBT que também passavam por um processo de aceitação ou que já se aceitavam totalmente. Elas compartilhavam experiências, além de debates e palestras relacionadas ao tema.
“Representatividade é muito diferente de influência. Estar em contato com essas discussões mostra que as pautas LGBT não são um ‘bicho de sete cabeças’, nos ajuda a desmistificar muitos mitos e dão apoio no processo de aceitação. Eu não tinha tido contato com essas questões até então e ter conhecimento sobre a minha sexualidade e não ser capaz de me aceitar foi devastador. Conseguir falar sobre isso me ajudou muito e, após todos esse processo de autoaceitação, me sinto muito melhor comigo mesma.”
Adilon esclarece que a representatividade permite que pessoas LGBTQIAP+, além de terem maiores referências, possam sentir-se livres para vivenciar a sexualidade e a identidade delas, uma vez que o “se descobrir” torna-se muito mais natural quando já se tem contato com essas possibilidades.
“A representatividade diminui a sensação de ausência, permite que projeções positivas sejam realizadas e que os sentimentos e desejos tenham ressonância em algo que existe. Ela é responsável pela criação de uma nova consciência coletiva, pois não atinge apenas as pessoas LGBTQIAP+; ela reverbera nas estruturas sociais, permitindo questionamentos e a construção de um novo ser e estar no mundo”, conclui.