Juan Guiã e Pedro Fernandes são artistas com deficência e fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+
1. Montagem iG Queer/2.Morgana Narjara/3. Matheus Teles
Juan Guiã e Pedro Fernandes são artistas com deficência e fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+

Ser um  indivíduo LGBT+ e PcD no Brasil é algo pouco discutido e traz diversas dificuldades para quem vive essa realidade diariamente. Embora haja uma crescente atuação desses grupos nas redes sociais, sobretudo criadores de conteúdo , os artistas e a grande parte desse grupo ainda são poucos amparados ou reconhecidos.

Alguns exemplos de criadores de conteúdo PcD como Ivan Baron, Mariana Torquato, Pequena Lo, Hawk, Leandrinha Du Art  e Eduardo Victor enfrentam não somente a falta de espaço dentro deste mercado disputado, mas também precisam encarar de frente o capacitismo, que é o preconceito contra pessoas com deficiência.

Um levantamento do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, apontou que 8,4% da população brasileira acima de dois anos (representando 17,3 milhões de pessoas), tem algum tipo de deficiência. O censo de 2010 também mostrou que há mais de 45 milhões de pessoas com algum grau de deficiência no país. Entretanto, menos de 1% de PcD estão empregados no Brasil, segundo os dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais).

Além disso, o Brasil, pelo quarto ano consecutivo, é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+, como evidencia o relatório produzido pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, de 2022. Diante desse panorama desfavorável, encontrar artistas da comunidade e PCDs é uma tarefa difícil porque a cultura no país vem sofrendo com o descaso do governo federal e as verbas públicas de incentivo não chegam ao destino certo.

Juan Guiã em um fundo, roupas e maquiagem vermelha
Morgana Narjara

Juan Guiã

O recifense Juan Guiã é um multiartista, que transita pela música, dança, teatro, performance e videoarte, e se identifica como pessoa não binária e pansexual.

Em sua arte, ele traz suas vivências por meio da música, como cantor e compositor, resgatando referências sonoras regionais pernambucanas e trazendo a batida eletrônica com a organicidade da percussão criando um pop atual e originalmente brasileiro.

A deficiência dele surgiu aos oito anos, após sofrer um acidente durante uma brincadeira com seu primo, envolvendo bombas caseiras. “Fui ajeitar a bomba e ela explodiu no meu rosto. Perdi uma estimativa de 60% de audição do ouvido esquerdo e mais de 50% da visão do olho do mesmo lado”, conta.

Já a arte entrou na sua vida aos 14 anos, quando começou a dançar, onde pôde atuar nas maiores companhias de dança contemporânea de Recife e até conquistar prêmios. Além disso, ele já esteve em companhias de teatro do Rio de Janeiro, resultando em sua participação na novela “Malhação”, em 2015, em que interpretava o personagem Zé Ernesto.

Ele diz que, só mais recentemente, vem refletindo sobre como o seu corpo e sua arte se relacionam com as questões da sua deficiência auditiva e visual. “Nunca abordei diretamente em um trabalho artístico esse tema. Mas, é algo que exige sempre uma demanda interna quando faço shows”.

“Eu tenho muita dificuldade de ouvir apenas com caixas de retorno externo, e sempre tento cantar com os fones de ouvido In-Ear [fones intra-auriculares que permite uma vedação de som maior], para conseguir cantar escutando as bases, instrumentos e minha própria voz com mais precisão. E, às vezes, isso se torna impossível em alguns eventos, visto que esse tipo de equipamento é caro e nem toda produção que contrata o show os disponibiliza: o que torna as apresentações muitas vezes um grande desafio”, adiciona.

Por conta de seu trabalho ser bastante performático e ter muita dança, ele não usa óculos em cena, e também não consegue utilizar lentes de contato, porque seus olhos ficaram sensíveis com o acidente. Isso faz com que ele não consiga enxergar o público enquanto se apresenta. “Os shows são bem sensíveis e sensoriais, foco muito mais no sentir, tanto para mim, quanto para passar essa sensação para o público”.

Além disto, Juan e sua mãe Regina Guimarães Freitas estão à frente do Instituto Transviver, projeto focado para a comunidade LGBTQI+, que nasceu após a mãe do cantor desejar se envolver mais com as pautas da comunidade queer, como resultado das discussões que o artista trazia em suas redes sociais.

“Ela se juntou ao meu movimento e começamos a nos engajarmos juntos, por isso nasceu o instituto Transviver. Minha mãe hoje é presidente e desenvolvemos há sete anos projetos de formação, acolhimento, empregabilidade, acesso à arte, cultura e esportes. Durante o período da pandemia entregamos em torno de 15 toneladas de alimentos no Recife, na região metropolitana e em 10 municípios do interior de Pernambuco”, conta.

Além disso, fundaram também o primeiro time de homens trans de futsal do Norte e Nordeste, o Transviver Futebol Clube.

Pedro Fernandes em sua cadeira de rodas
Matheus Teles

Pedro Fernandes

Já o carioca, Pedro Fernandes é um ator formado e produtor cultural, um homem cis e gay, detalha que a arte entrou em sua trajetória a partir do teatro na escola e, mais tarde, estudou em cursos livres de atuação. Atualmente, ele participa de grupos de teatro e até já fundou a sua própria companhia.

Pedro nasceu com paralisia cerebral, com a parte cognitiva preservada, o que faz com que apenas sua parte motora seja afetada. Aos 14 anos ele começa a utilizar cadeira de rodas por causa do teatro. Por isso, a arte dele não é separada da deficiência, pois reconhece que ela faz parte de seu corpo.

“Quando sou contratado para fazer um papel, muitas vezes ela [a deficiência] ainda é abordada, mas não necessariamente ela tem que ser abordada. Eu, enquanto artista, quero chegar em um mundo ideal em que a minha deficiência não fosse sempre abordada. Mas, é muito difícil separar isso, porque ainda há muito capacitismo. As pessoas veem primeiro a deficiência e depois o artista, e deveria ser o oposto”, reflete.

A importância da data

O Brasil comemora nesta quarta-feira (21) o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, oficializada em 2005 pela Lei nº 11.133, e os dois artistas defendem a importância dessa data porque ela gera debate e movimento, mas ainda é preciso de mais avanços.

“O país ainda tem uma enorme desigualdade em relação às oportunidades para nós pessoas com deficiência. Esse dia nacional vem para reforçar a existência dos nossos corpos. Entretanto, a data não deve ser lembrada somente no dia 21 de setembro, ela tem que ser lembrada diariamente, pois os nossos corpos precisam ser naturalizados”, argumenta Pedro.

“O Brasil precisa avançar cada vez mais na pauta, ainda mais com o desmonte que vivemos nos últimos quatro anos. É só refletir um pouco sobre como é a vida dos artistas e PcD brasileiros hoje em dia, para enxergar a urgência de se alavancar o tema”, completa Juan.

Além disso, Pedro também pontua que é preciso que essa discussão seja mais abrangente dentro da sociedade, para que haja uma visão mais plural para lidar com as diferenças de cada pessoa PcD, pensando também nos recortes de raça, gênero e classe. “São recortes diferentes, por isso, é muito importante naturalizarmos essa discussão”.

Processo de descoberta

Para Juan, em seu processo de descoberta enquanto uma pessoa queer, não havia nenhuma rede de apoio entre artistas, PcD e LGBTQIA+ “Era, e ainda é, um recorte bem invisível, tanto que nem eu mesmo refletia sobre minha própria condição”.

“Quando eu me assumi, fiz isso de maneira muito solitária porque não achava ninguém parecido comigo. Mas, eu consegui achar muita resistência depois. De maneira geral, eu ainda vejo que há muita falta de informação e muito capacitismo, fazendo com que muitas pessoas não se relacionem com PcD”.

Falta de representatividade e preparo da sociedade

Há uma enorme falta de representatividade, pouco debate e preparo para que as pessoas com deficiência sejam respeitadas, implicando em um desgaste gigantesco e uma invisibilidade sobre o tema, e ambos concordam.

“Nas contratações, as pessoas não levam a sério a importância da necessidade de equipamentos e estrutura para executar meu trabalho precisamente. No cotidiano, afeta meus relacionamentos pessoais e sociais, já que não escuto direito, e isso atrapalha na comunicação”, conta Juan Guiã.

“Eu ainda vejo, por exemplo, principalmente no audiovisual e na televisão, de uma forma geral, que ainda é muito pequeno esse espaço para nós. Tem muitos atores sem deficiências interpretando papéis de PcD, e isso é muito errado, porque você entra em um local de fala que não é o seu”, defende Pedro.

Embora formado, o ator não consegue sobreviver da sua arte, precisando buscar outras profissões para conseguir se manter. Pedro também tem formação em Marketing, é estudante de Serviço Social e pós-graduado em Gestão Pública.

Apesar de ser difícil e precisar de mais avanços, há projetos que buscam trazer visibilidade para os indivíduos PcD, como no caso do Vale PCD, criado por Priscila Siqueira, mulher cis, bissexual, psicóloga e pessoa com deficiência física.

O Vale PCD nasceu em 2020, com o objetivo de trazer visibilidade e representatividade para a pauta das pessoas com deficiência LGBTQIA+. Ele é o primeiro coletivo nacional com esse objetivo. “Começamos como um espaço de mapeamento de lugares acessíveis e hoje temos serviços de psicoterapia, empregabilidade e acessibilidade em eventos, tudo voltado tanto para as pessoas com deficiência, quanto pessoas LGBTQIA+ sem deficiência”, explica Priscila.

A psicóloga também enfatiza que é preciso mostrar que pessoas com deficiência são diversas e estão presentes em todos os recortes sociais e em todas as minorias. “Com o Vale, queremos reivindicar o nosso espaço e mostrar cada vez mais as nossas potencialidades e interseccionalidades”, exalta.

Desde 2015, há a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, que visa assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, visando a inclusão social e cidadania plena.

Todavia, Pedro pontua que ela não é eficaz. “Temos a LBI que não é cumprida, tanto em empresas privadas, quanto públicas e também no meio artístico. É o que deveria ser cumprido, mas essa igualdade e proporção de oportunidades não existem. Por mais que tenhamos leis e políticas públicas, ainda são muito desiguais e ineficazes. Há falta de oportunidades e a sociedade ainda não está preparada para nossos corpos”, fecha o ator.

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** Julio Cesar Ferreira é estudante de Jornalismo na PUC-SP. Venceu o 13.º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão com a pauta “Brasil sob a fumaça da desinformação”. Em seus interesses estão Diretos Humanos, Cultura, Moda, Política, Cultura Pop e Entretenimento. Enquanto estagiário no iG, já passou pelas editorias de Último Segundo/Saúde, Delas/Receitas, e atualmente está em Queer/Pet/Turismo.

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