A palavra “capacitismo” ganhou popularidades nos Estados Unidos em meados dos anos 1980 para se referir aos tipos de violência e opressões que as pessoas com deficiência experimentam. No Brasil, o termo entrou em evidência com atraso e sequer, até o momento, atingiu altos níveis de discussão. Com a falta de uma abordagem contundente em diversos espaços sociais, falar sobre capacitismo acabou se tornando um dever (e uma missão) para diversas pessoas com deficiência na internet.
As redes sociais acabaram se tornando um espaço para promover conteúdos educativos e de conscientização sobre o tema para conseguir popularizar esse debate, e, consequentemente, tornar o capacitismo e as necessidades das pessoas com deficiência mais escutadas. O influenciador digital Ivan Baron, que ficou conhecido na internet como influenciador da inclusão, sentiu a necessidade de contribuir nesse sentido em 2018. “Comecei com a pretensão de ensinar o pessoal”, afirma ao iG Queer.
Dois anos depois, em 2020, a mesma necessidade atingiu o influenciador Deives Picáz, que explica que sempre pensa seus conteúdos de uma forma convidativa para que seus seguidores possam repensar padrões estruturais que excluem, difamam e ferem as pessoas com deficiência.
Deives e Ivan são dois dos principais influenciadores a abordarem o capacitismo nas redes sociais. Além de serem pessoas com deficiência (Ivan tem paralisia cerebral e Deives tem uma formação congênita atípica), ambos são pessoas LGBTQIA+ e passaram a fazer parte do Núcleo Jovem da Organização das Nações Unidas (ONU). Por seu trabalho, Ivan ainda recebeu uma indicação ao Prêmio Brasil Mais Inclusão, que destaca iniciativas de inclusão de pessoas com deficiência.
A forma como Deives e Ivan se propõem a abordar o assunto é descontraída, informativa e aponta que a deficiência nada mais é do que apenas uma das diversas características humanas possíveis – o que tem cativado diversos internautas que buscam aprender sobre o capacitismo e como erradicá-lo no dia a dia.
O alcance do conteúdo que produzem emociona a ambos. No entanto, eles afirmam que isso não se deve deixar enganar: o debate sobre capacitismo e as demandas de pessoas com deficiências não está avançando tanto quanto deveria.
“Nem mesmo dentro do ambiente virtual ele [o capacitismo] é amplamente visto e debatido, quem dirá fora das telas. Acredito que esse assunto ainda é tratado apenas por pessoas com deficiência ou alguém que tenha contato com esse público”, pondera Ivan. Deives compara ainda a diferença do alcance de conteúdos como o que ele faz com outros que não envolvem a comunidade PCD: “Se compararmos perfis que focam em fazer dancinhas, por exemplo, eles crescem muito mais rápido do que o meu, que é focado no ativismo”.
Ivan nota que muitas pessoas estão dispostas a aprender com humildades para mudar – e ressalta que “é por essa galera que a gente continua”. No entanto, o habitual continua sendo o contrário: que apontamentos feito por ele sejam vistos como “mimimi”.
“Ainda tem muita gente que, ao se referir sobre mim e ao meu trabalho, trata como ‘mimizento’, ‘problemático’ ou algo que seja desnecessário. As pessoas não estão prontas para mudança de comportamentos e, quando a gente cutuca, a reação da maioria é reagir ao contrário”, afirma.
Inclusão na comunidade LGBTQIA+ e outros movimentos sociais
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil conta com 45 milhões de pessoas com deficiência em sua população. O número é equivalente a 24% de brasileiros na atualidade. Entre esse percentual estão pessoas com deficiência LGBTQIA+, o que aponta para uma intersecção de demandas. Ao passo que a comunidade de pessoas com deficiência enxerga e respeita a comunidade LGBT, o caminho oposto não necessariamente acontece, segundo Deives. Pelo contrário: PCDs também acabam sendo excluídos e sofrendo preconceitos entre a população LGBT.
Ivan estende o exemplo: “As lutas se interseccionam, mas percebo que ainda é muito a gente por si mesmo. Existem PCDs que são mulheres pretas, indígenas, LGBTs… mas apesar desses fatores sociais, é cada um por si. Vejo pouquíssima inclusão do tema capacisitmo em movimentos LGBTQIA+, feministas, negros pelo fato de nós, pessoas com deficiência, sermos a 'menor minoria'. Por consequência, estamos em todos esses grupos”, ressalta. Na visão de Deives, os movimentos antirracistas de pessoas negras parecem ser os únicos a incluírem minimamente o capacitismo em seus diálogos.
No caso da comunidade LGBTQIA+, Deives vê que existe exclusão pelo fato de esta população ser muito ligada a determinados padrões estéticos. “Dentro da comunidade, são homens gays com corpo padrão que são visibilizados. Se você está fora disso, não tem voz. Com isso, somos invalidados”, aponta o influenciador.
Como exemplo prático, ele aponta as plataformas e aplicativos de relacionamentos LGBTQIA+, principalmente voltados para o público gay. “Sempre tem alguém que vai colocar na bio que não gosta de afeminados ou de pessoas gordas. Só que não colocam que não gostam de pessoas com deficiência para não pegar mal. Lá, somos encarados como pessoas com quem não dá para ter um relacionamento ou fetichizados: ou seja, querem ficar comigo por curiosidade por minha deficiência, não por quem eu sou”.
“Sempre me sinto na obrigação de avisar para a pessoa com quem estou conversando que sou uma pessoa com deficiência para ver se a pessoa vai continuar falando comigo ou se vai fugir. É algo triste porque é uma característica que tenho no meu corpo. Ninguém fala que tem uma mancha de nascença no braço esquerdo, então por que eu tenho que detalhar como se eu fosse prejudicar a outra pessoa de alguma maneira?”, continua.
Leia Também
Leia Também
Apesar de Deives reconhecer que essas atitudes não são generalizadas na comunidade, ele aponta que as “frutas podres” contribuem para que essa população fique indiferente quanto ao capacitismo ou à inclusão de pessoas com deficiência LGBTQIA+. “Tem muita gente que luta por uma causa e esquece das outras. Mas não. Se eu tenho uma dor e quero que ela seja respeitada, preciso ser oposição ao preconceito contra todas as pessoas”.
Por que falar sobre capacitismo importa?
A população com deficiência brasileira é, na maioria dos âmbitos, invisível. Um exemplo explícito disso é a falta (ou presença muito pequena) dessas pessoas no mercado de trabalho: apenas 1% das pessoas com deficiência ocupam vagas registradas e, geralmente, em áreas em que não é possível demonstrar o verdadeiro potencial de cada uma. O dado existe mesmo com a determinação da Lei nº 8.213/91, também conhecida como Lei de Cotas, que obriga a ocupação de PCDs em empresas.
Outros exemplos de exclusão estão na moda, na televisão, no cinema, na publicidade, na política e na educação: “Na minha turma de faculdade de publicidade e propaganda, na UFRGS, sou a única pessoa com deficiência. Não conheço meus colegas presencialmente, mas acredito que eu seja a única pessoa entre quarenta”, aponta Deives. “Eu nunca fui atendido por um médico com deficiência. Saio todos os dias e vou em locais em que preciso de atendimento e nunca sou atendido por pessoas com deficiência. Fico me perguntando onde estão elas”, questiona o influenciador.
Todas essas ausências são frutos de imagens criadas pelo capacitismo sobre pessoas com deficiência, que são infantilizadas ou romantizadas de forma negativa. Essas visões retiram a autonomia de PCDs e atrasam a inclusão social.
“A sociedade tem duas narrativas sobre nós: a do guerreiro, super-herói que merece palmas até porque passou a manteiga no pão; e o coitadinho digno de pena. Isso acaba prejudicando muito em todos os setores”, afirma Deives. “Assim como falamos em racismo estrutural, precisamos falar sobre as estruturas que atrapalham as pessoas com deficiência”, acrescenta.
Mesmo que a Lei Brasileira de Inclusão (nº 13.146/2016) criminalize ataques motivados pela deficiência física de um indivíduo, piadas preconceituosas e ridicularização de PCDs se mantém comum e até mesmo ovacionadas. Um caso recente foi o do comediante Léo Lins, que fez piada com pessoas surdas com Parkinson. Após Ivan chamar atenção do comediante, também foi atacado: “Se minha voz fosse desse jeito aí, acho que também preferia ser mudo”, rebateu o comediante.
“As pessoas fazem parte de um sistema preconceituoso que não está nem aí se está cometendo um crime ou não. Por isso é importante convidar as pessoas a aprenderem e falarem sobre o capacitismo. Conteúdos como os do Léo Lins e de pessoas influentes como ele acabam fazendo com que nós sejamos oprimidos e rotulados como pessoas chatas e vitimistas. Apenas estamos exigindo o respeito que qualquer pessoa merece”, desabafa Deives.
Uma prática que tanto ele como Ivan adotaram para conscientizar outras pessoas é apontar, de forma respeitosa, quando uma pessoa de grande destaque comete um ataque capacitista sem saber. “Aproveito muito da visibilidade dessas figuras públicas para propagar a mensagem contra o capacitismo”, explica Ivan, que garante que muitas delas dão retorno positivo.
Tanto Ivan como Deives apontam Juliette Freire, cantora e vencedora do “BBB 21”, como um símbolo de pessoa sem deficiência engajada na luta anticapacitista. Ela mesma já foi corrigida por Ivan. “Juliette sempre demonstrou interesse em aprender e em me ajudar a espalhar a mensagem. Pessoas como ela, com milhões de seguidores, são importantíssimas para nossa luta. Por que não convidá-las para somar em vez de só querer cancelar?”, questiona Ivan.
Deives tem esperança de que a discussão política acerca do capacitismo possa melhorar a depender dos resultados das eleições de 2022. Para ele, o atual governo de Jair Bolsonaro (PL) representa diversos retrocessos e consolidação de ideais e atitudes capacitistas. Como exemplo, o influenciador lembra do presidente empurrando seu intérprete de Libras porque “estava atrapalhando” e as afirmações de Milton Ribeiro, Ministro da Educação, sobre crianças com deficiência “atrapalhavam o aprendizado dos outros” estudantes.
“[O presidente Jair Bolsonaro] não tem o menor interesse. Se continuar do jeito que está, a gente não vai melhorar em nada, pode até piorar. Mas dependendo dos resultados que teremos nas eleições, pode ser que tenhamos um progresso”, afirma Deives, acrescentando que será necessário pressão por parte de movimentos sociais e da mídia: “Ninguém pensa em fazer políticas públicas ou implementar mudanças estruturais sem que um grupo as reivindique”.
Ivan acrescenta que é preciso que as pessoas com deficiência ganhem mais visibilidade. “Ainda somos muito apagados e por consequência somos tachados de ‘mimizentos’, já que ninguém sabe das nossas histórias e reais necessidades”, afirma o influenciador.
“A luta anticapacitista só vai ser de fato consolidada quando a gente não precisar mais falar sobre ela. Para muitos pode ser utopia, mas para mim é meta de vida. Capacitismo deve ser um assunto da sociedade, até porque esse é um preconceito criado por ela mesma, e não pelas pessoas sem deficiência”, finaliza Ivan.
Agora você pode acompanhar o iG Queer também no Telegram! Clique aqui para entrar no grupo .