Constante medo e tensão causam reações psicológicas exacerbadas e abrem brecha para patologias
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Constante medo e tensão causam reações psicológicas exacerbadas e abrem brecha para patologias


De acordo com o último relatório do Observatórios de Mortes e Violência LGBTI+ no Brasil , em 2021 o número de mortes de pessoas LGBTQIAP+ cresceu 33% em relação a 2020 , sendo a maior parte causada por homicídio (82,91%) e suicídio (8,23%). No mesmo ano, o Brasil registrou uma morte LGBT a cada 27 horas.

Tais dados apontam a emergência sob a qual essa parcela da população vive dia após dia, mediante o risco de integrar as estatísticas – mais um dos vários obstáculos para quem faz parte de uma ou mais letras da sigla. 

Tendo em vista o cenário inegavelmente violento, pode-se colocar em foco de que modo tais dados assombram o cotidiano de pessoas LGBT e de que forma elas podem lidar com tais ameaças de modo a não comprometer a saúde mental. Antes de tudo, é importante entender como essa realidade é processada neurologicamente, e quem explica sobre isso ao iG Queer é Ana Tomazelli, psicanalista e idealizadora do  IPEFEM (Instituto de Pesquisa de Estudos do Feminino e das Existências Múltiplas).

“Toda confirmação de algo com dados objetivos entrega, para nós, a 'certeza' de que aquilo existe, de que é real. Por exemplo: se temos uma boa posição no Índice de Desenvolvimento Humano, se reduzimos a taxa de pessoas na linha da pobreza ou se melhoramos os números de pessoas alfabetizadas, o que fazemos? Comemoramos”, começa ela. “Na contramão disso, se temos números e evidências de maior violência direcionadas a determinadas populações e baixíssima expectativa de vida, qual é a certeza que se constrói diante de nós? A de que estamos sob risco constante e de que a nossa vida não é merecedora de ser protegida – nem pelo Estado, nem pelas pessoas à nossa volta, mesmo aquelas que, em teoria, possuem algum afeto por nós”, aponta. 

A especialista explica ainda que, devido ao risco constante, o cérebro cria métodos de defesa em massa que podem desencadear alguns transtornos. "Se eu viver sob risco de ter a minha existência atravessada ou até mesmo extinta vou viver em constante postura vigilante e alerta. Com isso, o meu corpo vai produzir hormônios de atenção e stress, pois preciso estar sempre pronta a lutar ou fugir, sem contar o fato de que eu posso, simplesmente, paralisar. Se o meu corpo vive nesse estado de tensão, automaticamente a minha mente também não descansa e não relaxa, sem espaço para eu me concentrar ou me dedicar a outros assuntos e atividades cotidianas e profissionais, por exemplo”

“Ora, se eu sou monopolizada por pensamentos de medo e meu corpo está sempre contraído e pronto pra me defender, qual é a qualidade da minha saúde mental? Precária, no mínimo, com alto potencial de desenvolver patologias sérias como transtornos ansiosos e depressivos”, esclarece. 

As consequências dessa apreensão exacerbada podem ser percebidas, por exemplo, na forma como as pessoas LGBTQIAP+ se limitam dentro da própria rotina, uma vez que que a homotransfobia pode se manifestar em quaisquer ambientes e de diferentes maneiras – vê-se pela quantidade de pautas e vertentes que são amplamente discutidas dentro da comunidade. Maira Andrade Carvalho é porta-voz do  IISP (Instituto Internacional de Segurança Psicológica) e explica um pouco sobre isso. 

“O medo é uma reação de proteção de um indivíduo perante a algum risco iminente. Ele desencadeia uma série de reações, entre elas a paralisação. Pessoas que fazem parte da comunidade LGBTQIA+ possuem diversos medos, como de sofrer violências físicas, de não serem aceitas por pessoas queridas, de terem oportunidades negadas, entre outros, e, infelizmente, esse medo constante pode fazer com que essas mesmas pessoas se limitem em ser quem realmente são para se encaixarem em uma sociedade cis-hetero normativa”, declara. 

A psicóloga Samara Morais acrescenta ainda que os sinais de sofrimento emocional em pessoas LGBT podem se desenvolver desde a infância, época em que muitos membros da comunidade começam a notar não conformidade com as normas cis-hétero vigentes e impostas. Ela destaca ainda como o próprio meio da psicologia ainda não é totalmente seguro para essa população.

“Muitas pessoas LGBT começam a perceber na infância alguns traços de personalidade diferentes das crianças com quem convive. Essa violência é enraizada em nossa sociedade e pode ser vivida desde muito cedo, até mesmo pelos próprios pais. A consequência dessa e de outras agressões pode se refletir no adoecimento psicológico e por muitas vezes o isolamento social, já que é muito comum o preconceito nos ambientes familiares e de trabalho. Até mesmo para buscar ajuda profissional, muitas vezes as pessoas LGBT têm algum receio ou já sofreram algum tipo de violência, tornando ainda mais difícil o acesso e o cuidado dessa essa população”, diz. 

A psicóloga  Deise Cristina Gomes também destaca que esse comportamento recluso pode se estender para a fase adulta. “[As violências] podem limitar pessoas LGBT do ponto de vista psicossocial. Muitos deixam de frequentar locais públicos e decidem polir seu direito de ir e vir, além de não frequentar festas de famílias. Tudo isso pelo medo do julgamento e do ódio”, diz. 

Ainda sobre as violências em si e a forma como se manifestam, Ana Tomazelli destaca que elas não se limitam apenas aos ataques diretos. “Não podemos perder de vista que a violência não é só sobre uma ofensa explícita, uma agressão física ou algo declarado: a violência está na piada, naquele convite para sair com o grupo de trabalho que não chega nunca, na atividade profissional que não é confiada a você”, elenca. 

“Tudo isso é sobre pertencimento. A violência, seja ela de qual tipo for, é uma mensagem muito poderosa de exclusão, de não merecimento, de inferioridade a partir de um parâmetro dado anteriormente. E muitas feridas de rejeição e abandono são revividas a partir desses gatilhos, provocando uma resposta emocional forte e capaz de tirar a nossa liberdade como um todo”, destaca a especialista. 

O fardo da intolerância

Steves Andrei Lima é gay e Orientador Sócio Educativo do  Centro de Acolhida Especial Casarão Brasil – iniciativa que acolhe mulheres trans em situação de vulnerabilidade. Ao iG Queer, ele conta que o simples ato de sair de casa pode se transformar em um episódio de “tensão e angústia”. “Saímos sem saber se iremos deparar com uma pessoa intolerante LGBTfóbica em nosso caminho que irá nos violentar física e psicologicamente simplesmente por sermos quem somos”, declara. 

Ao ser questionado sobre como lida no dia a dia com as altas estatísticas violência, Steves explica que vive um dia de cada vez. “Me fortifico nos exemplos de resistência e resiliência tão presentes em minha comunidade. Sabemos que também é preciso ser exemplo desta força aos que estão chegando, sobretudo com a certeza que para cada número desta estatística outros milhões se levantam para mudar esse triste momento”. 

De acordo com ele, a maior parte das violências que já sofreu foram de cunho verbal e psicológico, embora já tenha se envolvido em confrontos corporais também. Ele explica que quando essas manifestações partem do seio familiar as feridas são ainda mais difíceis de curar. 

“O ataque físico eu pude revidar, porém as agressões psicológicas deixam cicatrizes profundas e quando vem de dentro da família é muito mais difícil de lidar porque temos que aprender a conviver elas. Ao exemplo daquelas cicatrizes no corpo, que doem com a mudança do clima, as cicatrizes causadas por uma fala, um olhar ou um gesto sempre irão doer até com uma respiração mais profunda sem a devida atenção”, aponta. 

O iG Queer também conversou com Dora Figueiredo , mulher  bissexual e influenciadora que, por meio das redes sociais, debate assuntos como estilo de vida, direitos LGBTQIAP+ e pautas correlatas ao movimento body positive. Ela conta que sempre que se depara com notíciais ou estatísticas relacionadas às violências causadas por LGBTfobia, ela pensa principalmente em como isso afeta as pessoas ao seu redor. Ela também ressalta que o acompanhamento terapêutico é fundamental para conseguir conviver com essa realidade.

“Fico imaginando que poderia ser eu, um amigo meu ou tantas pessoas que conheço. É muito duro ter medo de estar feliz com quem você gosta, de ir a um date ou sair de mãos dadas; é realmente muito triste. A melhor forma de lidar com isso é a terapia, cuidar da nossa mente porque apenas com saúde mental conseguiremos enfrentar isso. Faço acompanhamento psicológico desde os nove anos de idade e acho muito importante, porque quando você faz terapia consegue se entender e se aceitar melhor. É difícil viver em um mundo que te rejeita, mas rejeitar a si mesmo é pior ainda”, diz. 

A influenciadora também comenta que os números alarmantes não podem paralisar a comunidade de continuar a lutar. “Apesar da violência contra pessoas LGBTQIAP+, nós precisamos continuar vivendo. Só o fato de estarmos vivos já é um ato de resistência”. Ao ser questionada sobre quais violências ela mais sofre, Dora Figueiredo ressalta, principalmente, a bifobia. 

“Eu passei e ainda passo por muita invisibilização. As pessoas falam que minha sexualidade não é válida. Ao ver delas, você tem que escolher ‘uma coisa ou outra’, não tem como ser bi ou pan. Nós demoramos para nos entender, então é complicado tentar compreender o que está sentindo e pessoas de fora tentando saber mais de você do que você mesmo e imporem: ‘Você tem que entender que você é lésbica’ ou ‘você tem que entender que você é hétero’. Como alguém pode tentar definir a sexualidade dos outros? Não tem como eu não me sentir afetada. Não consigo me sentir pertencente”, explica. 

Dora também destaca que a possibilidade de sofrer violência interfere diretamente em algumas decisões da vida dela, especialmente quando se trata de lazer. “Eu sempre penso em que lugar eu estou indo, quem vai comigo, como vou permanecer lá etc. Nos privamos de muita coisa por ter medo, mesmo que o ideal fosse que nós conseguíssemos lutar para existir em qualquer lugar do mundo”. 

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