O termo fetichismo vem etimologicamente da palavra “feitiço” e, segundo a sexóloga Luciane Cabral, “é a adoração, desejo ou excitação por algum objeto, vestimenta, parte do corpo ou prática sexual específica que foge do padrão socialmente repercutido como ‘normal’. É a partir deste ponto que o indivíduo consegue atingir prazer e satisfação no sexo”. Tendo em vista que o termo abarca um conceito que pode se destrinchar em várias possibilidades distintas, vale citar alguns exemplos mais comuns que fazem parte do imaginário social, principalmente por já terem sido representados no cinema, como é o caso do filme “Cinquenta Tons de Cinza”, por exemplo.
“Um dos mais conhecidos é o BDSM ”, salienta a sexóloga. “[A prática] inclui bondage – restrição física durante o ato –, disciplina, masoquismo, dominação e submissão. Além dessa vertente, há o desejo por quem usa roupas de couro ou de vinil, voyeurismo – quem gosta de assistir outras pessoas durante o ato sexual –, exibicionismo – aqueles que sentem prazer em serem assistidos –, fetiche por pés, entre outros. É um mundo vasto de possibilidades”.
Partindo desse ponto, vale ressaltar que a relação das práticas fetichistas com a comunidade LGBT vem justamente do fato de que a hétero-cis normatividade joga aqueles que fogem deste padrão para a margem, ao mesmo tempo em que cria tabus e conceitos equivocados em torno de práticas sexuais que não se enquadram no ideal de sexo promovido pela estrutura patriarcal que liga a relação sexual diretamente à procriação, e não à exploração do prazer individual. Para Luciane Cabral, é preciso que estas amarras sejam desfeitas.
“Hoje, por meio das tecnologias, conseguimos encontrar muitas informações boas sobre o assunto, além do fato de que as redes sociais possibilitam que pessoas com fetiches em comum se conectem e estejam presentes nos mesmos grupos em busca do que lhes dá prazer. Porém, o que ainda não existe é a cultura de consumir essas informações”, explica ela.
“Por uma questão social, as pessoas não têm o hábito de ir atrás desse conhecimento acerca da sexualidade. Isso precisa ser desconstruído para que os indivíduos vivenciem os próprios desejos de maneira mais satisfatória e plena, potencializando os prazeres e consequentemente sentindo-se mais felizes”, aponta.
Ao mesmo tempo, a especialista chama a atenção para o fato de que, mesmo que haja informações boas sobre o assunto, nem todas são confiáveis: “Existem muitas ideias distorcidas. Os fetiches não estão ligados a transtornos mentais, por exemplo, e todas as práticas devem ser realizadas de maneira consensual entre pessoas maiores de idade, sem envolver animais ou qualquer ilegalidade. Tudo que estiver dentro destes parâmetros é válido”.
Cabral também destaca que uma vez que a prática seja de comum acordo a todos os envolvidos, que atenda aos desejos de forma segura e dentro da legalidade, os fetiches têm consequências bastante positivas: “Ter algum fetiche que ativa o seu repertório sexual contribui para o desejo, ou seja, essa prática ou recurso específico possibilita que a pessoa entre em contato com o que desencadeia maior satisfação e prazer”.
Viver a libertação por meio do fetichismo
Heitor Werneck é um homem gay e fetichista, responsável pela criação da festa Luxúria , em São Paulo, um evento voltado para a exploração e prática dos fetiches. Ele conta ao iG Queer que o público majoritário da festa são justamente aqueles que rompem com a barreira de gênero para estabelecer envolvimento sexual.
“É um ambiente muito bissexual”, aponta. “É mais comum vermos pessoas cuja atração sexual não depende de gênero. Inclusive, eu não acho que o meio LGBT é livre sexualmente. Muitas pessoas são extremamente reprimidas, especialmente homens gays. O sexo no meio gay é difundido de uma forma semelhante ao coito, à rapidez do ato, à pouca exploração do corpo e coloca o protagonismo na penetração ou apenas no pênis e no ânus, que são apenas mais uma parte do corpo que pode ser explorada, mas existem muitas outras possibilidades”, explica ele.
Werneck continua ao dizer que o fetichismo possibilita que os pontos de prazer sejam melhor explorados e que cada um tenha a liberdade de descobrir o que gosta e o que não gosta, o que causa mais excitação e o que faz sentido dentro das próprias fantasias, ao invés de encarar o sexo de uma maneira “mecânica”.
“É importante entender que na vagina existe um clitóris e que dentro de um ânus pode existir uma próstata. Eu não sou passivo, mas gosto de estimular minha próstata, por exemplo. A questão é desconstruir esses rótulos e heranças heteronormativas a respeito do sexo”, diz. “Eu me objetifico porque eu quero que as pessoas me usem como meio de obter prazer. Eu gosto disso. Muitas vezes eu vejo as pessoas assistindo a uma sessão e dizendo: ‘Nossa, mas deve estar doendo e machucando’. Porém é justamente isso que a pessoa envolvida na cena quer. É o que faz ela sentir prazer. Existe muito julgamento sobre isso sendo que tudo é consensual e parte do princípio da exploração saudável dos desejos”.
Um ponto levantado por Heitor que detém grande polêmica com relação ao fetichismo são práticas como age play – “jogo de idade” –, no qual um dos envolvidos finge ter uma idade diferente, normalmente inferior, agindo e se vestindo com elementos que remetem uma figura infantil, e o pet play, no qual um dos indivíduos assume a imagem de um animal . É bastante comum que tais práticas sejam relacionadas à pedofilia e zoofilia, respectivamente, mas Heitor reforça que não é esse o caso.
“São pessoas usando roupas com cheiro de criança, por exemplo, e outros assumindo o papel de ‘papai’ ou ‘mamãe’. Não há crianças envolvidas, nem a vontade de abordar menores de idade. A prática é consensual e voltada para adultos, tendo em vista a canalização de desejos que envolvem o ato de cuidar e ser cuidado. O mesmo ocorre com o pet play. A quantidade de pessoas que se vestem de cachorro e outros animais é muito alta, mas não há o envolvimento de animais reais, tampouco a vontade de tal. Não tem nada a ver com zoofilia ou pedofilia”, discorre.
Heitor acrescenta ainda que a proposta do fetichismo é justamente incentivar que as vontades sejam expressas e colocadas em prática, bem como a exploração dos desejos pessoais, definição de limites e quais práticas potencializam o prazer durante o ato sexual em si. A questão envolve, além de muito autoconhecimento, o questionamento da cultura cis-hétero imposta. “O moralismo é muito grande no Brasil e dentro da própria comunidade LGBT”, observa ele. “O fetichismo vem justamente para quebrar isso”.
Nathália Rodrigues , musicista, influenciadora e mulher trans, confidencia ao iG Queer que explorar os próprios fetiches lhe permitiu ser muito mais livre. Ela explica que começou a dar ouvidos aos desejos logo no começo da transição.
“Conforme percebi as mudanças no meu corpo, senti vontade de tentar coisas novas e me desvendar. Acho que junto com o fetichismo vêm as descobertas porque, no meu caso, por exemplo, eu estava tomando hormônio e me sentindo melhor comigo mesma, o que fez surgir o impulso de fazer coisas que eu nunca tinha feito antes”, explica. “Explorar esse lado ajudou muito minha autoestima e autoconfiança, pois o medo foi embora. Eu disse a mim mesma que não seria reprimida por conta do que a sociedade pensa. Como pessoa trans, eu já seria julgada de qualquer jeito, então eu não liguei para isso e fui adiante”.
Ela reforça que muitas pessoas, em especial homens cis-hétero, possuem uma visão distorcida do fetichismo e abordam a questão de maneira equivocada. “Todo fetiche que você coloca em prática envolve um diálogo com a pessoa ou as pessoas envolvidas para estabelecer limites. É tudo previamente combinado, nada vai ser feito sem consentimento, mas muita gente não consegue enxergar isso e tira conclusões totalmente fora da realidade”.
A ideia de sexo como um ato restrito à penetração, na visão de Nathália, reflete muitas das limitações que a estrutura cis-hétero e patriarcal impõe e que continuam fortalecendo os tabus ao redor do tema. “Muitos homens cis têm vontade de fazer sexo anal, por exemplo, mas o machismo e o medo do que os outros pensariam os impede”, aponta. “É sobre respeitar as próprias vontades, por isso tudo que sempre fui atrás de tudo que me despertava interesse”.
Paloma Ramos de Araujo também é uma mulher trans e entrou em contato com o fetichismo recentemente. De acordo com ela, sempre foi algo totalmente natural dentro de si, mas que até então permanecia inexplorado.
“Nós não começamos a praticar o fetiche, ele já está dentro de nós desde o início. Levei um tempo para descobrir isso e reconhecer que as práticas que me atraíam faziam parte do BDSM e que a arte do prazer em si envolve tanto o corpo quanto a imaginação”, explica. “O fetichismo, além de me proporcionar maior satisfação, me permite ter um outro olhar sobre o corpo da pessoa que está comigo, pois as descobertas são constantes e a cada momento é possível sentir uma coisa nova”.
Para Paloma, a visão rasa que muitas pessoas possuem do fetichismo os leva a crer que são relações desrespeitosas, quando a realidade é totalmente diferente. “Muitos não consideram alguns fetiches como sexo, especialmente quando não há penetração, ou acham que é falta de respeito o que um dominador faz com um submisso, por exemplo, mas é o contrário: nós respeitamos demais os sub’s e buscamos a satisfação mútua”.
De acordo com ela, é bastante possível que alguém que critica o fetichismo tenha fetiches bem evidentes e não enxergue isso, o que leva à importância de se conhecer, se informar e dar atenção ao próprio prazer e ao que ele pede.
“Às vezes o simples ato de tocar-se sozinho ou com um brinquedo, ter outras pessoas participando ou gostar de observar e ser observado é um fetiche, mas as pessoas não reconhecem. Por isso é importante ter conhecimento sobre o assunto e respeitar cada vez mais o corpo dos outros e ver os parceiros como corpos a serem explorados que possuem os próprios desejos e merecem se sentir bem também”, conclui.
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