“Certa vez, conheci um cara em um app de relacionamento, combinei de encontra-lo em minha casa para tomarmos um vinho. Já no primeiro encontro, nos beijamos, contei que eu vivo com HIV e ele entrou em paranoia achando que eu ia transmitir o vírus para ele por beijo. Ele me agrediu com socos. Isso me marcou muito. A gente nem chegou a transar, só nos beijamos. Ele não tinha informação nenhuma do assunto e me bateu por conta disso.”
Lucas Raniel, de 30 anos, vive com o vírus do HIV há nove anos e sabe bem o que é ser excluído por ser fora dos padrões. O influenciador digital luta diariamente contra a sorofobia nas redes sociais e teve de aprender a lidar com a marginalização de pessoas que vivem com o vírus. Ele conta em entrevista ao iG Queer que não deixou de usar os aplicativos de relacionamento quando descobriu o HIV, mas percebeu que o preconceito está muito inserido dentro da comunidade LGBTQIA+ que exclui qualquer pessoa que esteja fora dos padrões magro, branco, cisgênero, másculo e com a saúde em dia.
“Em aplicativo eu sofro bastante preconceito. Já passei por sorofobia, tive algumas experiências como uma pessoa me chamar para trocar ideia e, em determinado ponto do papo, ela olha o meu perfil, vê que está lá escrito que vivo com HIV e levo um block, mesmo que eu esteja dizendo que sou indetectável”, lamenta.
Pessoas afeminadas ou que estão fora dos padrões de masculinidade são vítimas da exclusão e da marginalização dentro desses ambientes que deveriam acolher as pessoas LGBTQIA+. Herb Dantas, de 20 anos, é cisgênero, gay, preto, gordo, gosta de se expressar com maquiagens femininas e expõe suas criações nas redes sociais. O influenciador acredita que tudo que sai do padrão em um contexto geral se torna objeto de repulsa dentro desses apps.
“Além da dificuldade imensa para encontrar alguém para se relacionar sendo fora do padrão, muitas vezes essa repulsa dos outros é desnecessariamente verbalizada em ataques pessoais. Eu decidi me preservar deles [e evitar esses apps] por ver como pessoas próximas já se afetaram de maneiras absurdas pela toxidade desses apps e por já ter noção de como é pesado tentar se relacionar dentro da comunidade não sendo uma pessoa branca e magra”, explica.
Ele lembra que já tentou flertar com um garoto na web, mas foi rejeitado e isso criou um bloqueio interno que o deixou inseguro para novas tentativas. Hoje em dia, Herb tenta apenas ser recíproco quando vê interesse de outra pessoa. O influenciador afirma que essa não seria a maneira mais correta, mas salienta que quem está fora do padrão sabe bem de onde esse receio vem.
“Eu acho que é necessário construir uma visão de afeto para quem também é fora do padrão. A gente se prende muito em uma validação de uma parcela branca, magra, cis e normativa que nem faz sentido. Quando você consegue trabalhar teu olhar e tua mente para enxergar todos corpos como dignos de afeto e desejo, tu começa a se olhar de outra maneira também e isso muda tua forma de se relacionar, de amar e de receber amor”, descreve.
O psicólogo Alexander Bez, especialista em relacionamentos pela Universidade de Miami (UM), diz que há prejuízos intensos dentro da própria comunidade, podendo levar a pessoa reprimida e rejeitada a desenvolver transtornos depressivos, ansiosos e/ou alimentares. Isso compromete sua autoestima, principalmente quando ela já está abalada.
Ele afirma que, nesses casos, o melhor a se fazer é apontar o que geram essas exclusões, ou seja, apesar da sociedade ter uma evolução significativa em relação à comunidade LGBTQIA+, ainda há muito o que melhorar, não só nessa causa, mas em todas que há algum tipo de marginalização.
“Muitos membros querem ser mais ‘aceitos’ para que não haja uma dupla discriminação ao escolherem a pessoa para se relacionar. Pensar que será mais aceito por seu(sua) parceiro(a) estar dentro de um padrão de beleza estipulado pela sociedade é uma ideia delirante, mas funcional para quem tem esse tipo de delírio”, discorre. “Vale lembrar, no entanto, de que todo esse processo de julgamento pode ser consciente ou inconsciente. Uma vez que, pode existir, por exemplo, preconceito dentro da comunidade ou haver interesse socioeconômico ou até, só estar seguindo ideais implantados pela sociedade”, completa.
Uma pessoa que não esteja dentro dessa imagem “cis branca padrão” é julgada desde cedo. Quando se trata de pessoas PCDs, HIV+, trans e não-binários, o preconceito é muito maior, podendo se dar por falta de informação ou de empatia, já que esses grupos sempre foram colocados à margem. A sociedade sempre os colocou como menos e as pessoas LGBTQIA+ que estão mais próximas ao padrão tendem a seguir esse ideal preconceituoso ensinado.
“Independentemente disso, também existe um desejo inconsciente por parte das pessoas LGBTQIA+ de ter, ser e buscar a perfeição em seus relacionamentos e, consequentemente, exteriorizar essa (suposta) perfeição encontrada. Quando não conseguem se frustram e descontam no outro. Isso pode evoluir para uma questão obsessiva-compulsiva, para aqueles que necessitam dessa autoafirmação. Muitas das vezes, a pessoa quer provar a si mesma e para todos que pode ter uma relação perfeita, já que usualmente irá receber críticas de membros da própria comunidade”, discute Bez.
Da vida real para o on-line
A falta de proteção por conta das altas taxas de LGBTfobia e por sermos o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo, a comunidade tem preferido encontrar seus pares românticos nas redes sociais, mesmo que esses espaços não tenham foco em encontrar um relacionamento como Instagram, Facebook ou TikTok. Durante a pandemia, o Brasil viu saltar o uso de aplicativos de 30% para 400%, dependendo da região do país, segundo dados da Pew Research.
Já pegando um recorte das plataformas de namoro, de acordo com o Dating.co, houve um aumento de 82% global em março de 2020, quando as medidas de isolamento entraram em vigor em diversos países. O Scruff, aplicativo especializado no namoro entre pessoas LGBTQIA+, oferece um suporte humanizado para atender usuários e reforça a importância de denunciar qualquer tipo de assédio. Além disso, ele desenvolveu uma ferramenta de verificação de perfil, que dá segurança contra perfis fakes.
“Temos uma função de denunciar os perfis que cometem assédios, além de seguirmos rígidas diretrizes para instruir nossos usuários a respeitar as diferentes origens, experiências vividas, opiniões e crenças uns dos outros, por meio de uma política de tolerância zero em relação a conteúdo que promova ou tolere violência, ódio ou discriminação, com base em fatores como raça, etnia, deficiência, idade, identidade de gênero, status de HIV, nacionalidade ou religião”, declara Octavio Andrade, social media manager Brasil.
Já Karima Ben Abdelmalek, CEO e presidente do happn, que também oferece espaços para a comunidade LGBTQIA+, reforça sua política de tolerância zero para qualquer tipo de assédio, preconceito, discriminação e racismo e salienta que o app foi criado para ser um lugar seguro e feliz para criar conexões.
“As pessoas que se cadastram no happn se comprometem com nossos termos e condições e se houver alguma violação deste compromisso - relatada via aplicativo - nossa equipe investigará e banirá o responsável caso o mau comportamento seja confirmado”, declara. “O processo de denúncia é facilmente acessível a qualquer pessoa: antes do Crush, você pode denunciar alguém rolando o perfil e clicando na bandeira que aparece no canto superior direito da última tela. Se você já deu Crush com a pessoa, pode clicar nos três pontinhos no canto superior direito do perfil dela. Nossa equipe de suporte também pode ser contatada no site ou na seção de contato do nosso aplicativo”.
Lucas diz que sua primeira atitude ao perceber que uma pessoa está sendo preconceituosa é bloqueando imediatamente. O influenciador afirma que já se cansou um pouco de passar por essas situações, algumas vezes até tenta conversar, explicar, manda alguns links, mas isso demanda um momento para remexer em diversos traumas que já teve no passado e até mesmo uma paciência extra para explicar o que todo mundo já deveria saber.
“Acho que seria obrigatoriedade de toda a comunidade LGBT, principalmente homens gays cisgêneros, saberem tudo sobre HIV, de cabo a rabo, desde prevenção, tratamento, avanços, mas isso infelizmente ainda não acontece. Às vezes, eu tenho que palestrar dentro de aplicativo, mandar referências, conversar, mas infelizmente tem muitos gays que ainda estão nesse moralismo religioso, nesse medo que a mídia construiu em cima da doença. As pessoas não querem saber sobre prevenções combinadas, testagem, PrEP [Profilaxia Pré-Exposição], sobre camisinha... é muito complicado eu falar sobre isso sempre.”
Manter a autoestima elevada é sempre a primeira e melhor opção para combater o preconceito, segundo Herb. Ele acredita que cuidar de si mesmo e entender seu valor também sejam fundamentais para criar uma zona de proteção. Além disso, o maquiador destaca que é importante se envolver com aqueles que estejam abertos a enfrentar dificuldades e não sejam preconceituosos, já que todos são dignos de amor e respeito.
“Tentar compreender quais são (ou foram) os motivos de exclusão, pode diminuir a sensação de incômodo para a vítima. Além de servir de norte para aquela pessoa entender seu desrespeito com a comunidade que faz parte. É bem complicado falar em lição de moral, até porque são pessoas da mesma comunidade e são interesses pessoais, porém a verbalização deve ser inclinada à compreensão e nunca à agressividade.”
O happn, inclusive, deu algumas dicas para serem seguidas dentro do aplicativo para se blindar melhor dos comentários maldosos e da marginalização. Para começar a se relacionar, procure apenas quem tenha um selo de autenticidade da plataforma, que permite criar um ambiente mais seguro para que as pessoas iniciem a conversa com mais confiança um no outro.
“Conheça a/o Crush usando todos os recursos que o happn oferece, como chat, videochamadas e mensagens de voz. Ao conversar inicialmente pelo happn, você protege suas informações pessoais como número de telefone ou e-mail. Se você encontrar alguém que viole nossos Termos e Serviços, bloqueie e denuncie imediatamente”, recomenda.
“Essencialmente, procure aqueles que sintam-se atraídos pelas suas características/personalidade, sem fixações sociais e/ou econômicas ou físicas-visuais. Atendendo, em primeiro lugar, a demanda cerebral da sua preferência e identificação”, complementa o psicólogo Alexander Bez.