No Mês do Orgulho LGBTQIAP+ muito se é discutido sobre a necessidade de apoiar e de construir espaços seguros e de possibilidades para as pessoas da comunidade. Entretanto, ainda existe uma grande defasagem de direitos e oportunidades concedidos especialmente para um grupo específico da sigla.
Travestis, transsexuais, pessoas não-binárias e intersexuais subvertem ao comportamento cisgênero cunhado socialmente e, por isso, ocupam o lugar de marginalização e estigmatização.
Muitos desejam construir futuros, mas o que resta para essas pessoas é o cenário da prostituição porque estes corpos ainda não são vistos como adequados ao ambiente corporativo. Isso pode ser visto na prática, como apontam os dados da Associação Nacional de travestis e Transexuais (Antra), que indicam que 90% da população trans no Brasil tem a prostituição como única fonte de renda e possibilidade de subsistência .
Além disso, informações do Projeto Além do Arco-Íris/AfroReggae apontam que apenas 0,02% dessas pessoas estão na universidade, 72% não possuem o ensino médio e somente 56% concluíram o ensino fundamental. Pela falta de políticas públicas específicas para essa população, a sociedade civil tem se organizado cada vez mais para dar conta dessa desigualdade e oferecer possibilidades para que a população trans saia da marginalidade.
Porém, como contribuir para que essas narrativas não se repitam, mas criem-se outras, com mais oportunidades, capacitação e empregabilidade? Por sorte, há projetos e profissionais que atuam com o objetivo de atenuar as desigualdades e injustiças sociais que atuam sobre esses corpos dissidentes.
A Rede Capacitrans é um exemplo deste tipo de ação. A ativista trans e idealizadora do projeto, Andréa Brazil, 49, conta que a iniciativa tem sua origem nos anos 2000, quando montou seu primeiro salão de cabeleireiro para fugir das discriminações que sofria em ambientes formais de trabalho.
No espaço, ela começou a ensinar pessoas LGBTI+ a fazerem o cabelo e outras atividades do mundo da beleza. Entretanto, foi apenas em 2019 que a Capacitrans nasceu formalmente, após Andréa ter se capacitado e se especializado na área de empreendedorismo.
“A Capacitrans é um projeto de capacitação empreendedora para LGBTI+, com foco prioritário nas pessoas trans e travesti, pois são as mais excluídas de oportunidades no mercado e cooptadas sempre para as ruas e esquinas como imposição ”, explica a idealizadora.
Esse cenário é causado por diversos fatores, dentre eles a dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho. Além da falta de qualificação profissional causada pela exclusão social, familiar e escolar.
O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis, por outro lado, é o que mais consome pornografia com essa temática — criando uma instabilidade e insegurança para a vida desse grupo com estimativa de viver até os 35 anos.
Mesmo com os dados preocupantes, em menos de três anos o projeto conseguiu uma sede presencial em um casarão no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, com o apoio da Paróquia São Lucas e do Padre Luiz Coelho.
“[Eles] não se conformavam de ver que nenhuma religião apoiasse, de fato, pessoas trans com outras crenças, ou até nenhuma como eu. A maior beleza deles é nos apoiarem sem julgamentos ou tentarem nos ‘catequizar’. Isso nos emociona muito”, comenta.
Na criação do projeto, Andréa relembra que tinha o desejo de criar uma iniciativa que fosse liderada por uma travesti, pois assim faria com que essa população se sentisse mais acolhida e representada, servindo também como forma de inspirá-las a conquistarem seus protagonismos e autossustentabilidade: “Crescemos tanto em três anos, que atualmente empresas vêm atrás de nós para indicações de profissionais para o mercado de trabalho formal”, pontua.
“Já passaram mais de 200 pessoas por nossas capacitações nesses três anos em áreas de moda, imagem pessoal, empreendedorismo diversos e recentemente, até uma turma de audiovisual. Em média, conquistamos apoios, contratos e freelancers remunerados para cerca de 25% de ex-alunes. Inclusive alguns voltam como facilitadores com remuneração no projeto”, explica Andréa.
A conscientizadora digital e secretária suplente da Capacitrans, Lis Lemes, 25, é uma das ex-alunas do projeto e relata como a experiência foi transformadora em sua vida. Ela conheceu o projeto por meio das redes sociais, em 2019.
“Na época, eu estava começando a empreender para tentar ter algum tipo de renda, eu fazia ‘freelas’ em um restaurante na zona oeste do Rio de Janeiro, no Jardim Sulacap, considerado um bairro de classe média. Eu atuava como lavadora de pratos, só que eu não estava com vontade de continuar nesse espaço, justamente pelas pressões psicológicas que eu passava dentro do ambiente e outras mulheres também passavam, porque tinha uma predominância masculina, então resolvi sair”, conta Lis.
A ex-aluna diz que o projeto lhe ajudou a conquistar a independência, tanto de se reconhecer enquanto uma identidade transvestigênere, quanto financeira.
“A partir da Capacitans eu comecei a alçar outros voos e conheci outras pessoas que me possibilitaram ter, hoje, uma renda fixa e ter uma vida digna em relação a tudo que perpassa as vivências comuns de uma realidade que ainda atinge travestis e transsexuais aqui no Brasil. Por meio do projeto eu consigo subverter essa realidade”, diz.
“Os espaços de liderança ainda são comandados por pessoas cisgêneras e essas pessoas geralmente têm o mesmo perfil social, que são de pessoas brancas e homens. Então essa bolha não tem o conhecimento, não conseguem se familiarizar com os atravessamentos de uma pessoa trans ou travesti. E partindo disso, é necessário projetos semelhantes a Capacitrans. Mas também é preciso pensar em iniciativas que comecem a visar a vivência dessa pessoa já nos primeiros anos de escolaridade, garantindo com que essa identidade termine todas as fases da escolaridade, de maneira segura, e tenha a certeza de que ela vai ser inserida no mercado formal de trabalho e será respeitada, com os seus direitos garantidos, como prevê a Constituição”, finaliza.
Outra iniciativa que visa estabelecer dignidade para a vida de pessoas trans é o EducaTRANSforma . O fundador e CEO do projeto, Noah Scheffel, 35, teve a ideia em 2019, quando iniciou seu processo de transição de gênero. Antes disso, ele ocupava uma posição de liderança em um time de tecnologia dentro de uma empresa, mas foi percebendo que ao passo que se afirmava enquanto um homem trans, as violências foram aumentando e os privilégios diminuindo.
“Eu não suportava mais estar presente naquele espaço, passando por essas violências. Não ter um banheiro, por exemplo, no horário de trabalho. Toda essa carga psicológica exigida de mim, fez com que ficasse com depressão, e com isso uma ideação suicida, fazendo com que eu fosse para uma internação psiquiátrica. Nesse processo, eu prometi que saindo dessa internação eu pegaria esse local de acesso que eu consegui chegar, até então como uma pessoas cis, com o objetivo de ajudar a população trans que não conseguiu chegar de forma alguma nesses locais”, diz Scheffel.
O projeto forma turmas de pessoas trans capacitadas para trabalhar nas áreas de tecnologia e inovação. O idealizador explica que buscou apoio de empresas parceiras que ele mantinha contato na empresa anterior: “Eu fui acionando esses contatos para buscar por empresas que patrocinassem a existência do projeto e fizessem também essa ponte para a empregabilidade”.
Contudo, todas as empresas que ele abordava o questionavam: “O que é uma pessoa trans?”. Dessa forma Scheffel percebeu que não bastava só formar e capacitar as pessoas trans e as colocar no mercado, já que muito provavelmente elas viveriam as mesmas violências que ele tinha sofrido. Foi assim que além de criar o EducaTRANSforma, o empreendedor passou a dar consultorias sobre diversidade LGBTI+ para as organizações.
“A pauta trans não é prioridade das organizações quando elas vão fazer algum tipo de investimento em responsabilidade social, então a maior dificuldade é conseguir equilibrar empresas dispostas a contratar pessoas trans que tenham vagas acessíveis à realidade de desigualdade que a população tem hoje”, comenta o CEO.
O projeto já impactou mais de 600 pessoas com uma taxa de empregabilidade de 87% para aquelas que terminam o curso, porém nem sempre é fácil manter um diálogo assertivo com as empresas, assim como manter o projeto em andamento.
“Por mais que algumas empresas queiram contratar, elas sempre têm a expectativa de buscar pessoas formadas na faculdade, o que não é uma realidade para muitas pessoas trans. E a questão da sustentabilidade do projeto também é difícil porque ainda precisamos contar com profissionais voluntários e editais, o que acaba impedindo que o projeto se amplie mais, já que precisamos de recursos”, diz.
Uma pessoa que conseguiu subverter a estatística esperada para as pessoas trans e travestis, por meio do EducaTRANSforma, foi a DevOps e administradora de redes Melissa Carmo, 26. Ela entrou no projeto em 2021 e após conhecer a iniciativa pelas redes sociais. “Poder ter uma profissão, de ser quem eu sou. Sem o Educa não estaria aqui dando essa entrevista. Lá eu fiz amigos, criei laços e conheci pessoas grandiosas”, comenta.
A jovem ainda fala sobre a dificuldade do mercado formal de lidar com identidades além da cisgeneridade.
“Eles não estão preparados para lidar com várias questões ainda, como banheiros ou fazer treinamento com a equipe, porque não é só contratar, é fazer uma preparação interna primeiro. [...] Como eu atuo na área da tecnologia, percebo que eles estão tendo cuidado e preparando suas equipes para receber pessoas LGBTQIA+”, finaliza.
Sigla I no mercado de trabalho
O ativista e estudante de Administração de Empresas, João Marcus Leite, 25, expõe o outro lado do mercado de trabalho para a sigla I, de intersexo, da comunidade queer.
“Ser um homem intersexo e gay não é um problema para mim, mas infelizmente dentro de um ambiente corporativo muitos colaboradores, por falta de informação cometem erros compartilhando comentários preconceituosos que podem afetar a vida social de qualquer pessoa do meio LGBTQIA+, e já fui vítima desses ato no mercado de trabalho”, relembra.
“Uma pessoa intersexo tem um corpo diferente do padrão binário, isso quer dizer que para me enquadrar nesse universo que definimos como homem e mulher tive que passar por diversas cirurgias, para conseguir me adequar ao sexo masculino e, mesmo sendo vítima de vários processos cirúrgicos, não tive a autonomia de escolher o meu próprio gênero, porque para os médicos eu sempre fui um garoto, mas ninguém nunca me perguntou sobre como eu me sentia interiormente”, relata.
O estudante argumenta que mesmo tendo empresas que prezam pela inclusão social, ainda existem funcionários que não se conscientizam em respeitar o espaço pessoal de cada colega.
“Independentemente da orientação sexual e do meu sexo biológico, eu sou um profissional e estudei para isso, para ser reconhecido pela minha dedicação e meus resultados. Acredito que todos nós da comunidade somos capazes de conquistarmos a nossa independência no mercado de trabalho. Apenas precisamos de bons gestores que acreditem no nosso potencial para conseguirmos conquistar o nosso próprio êxito”, completa.
O estudo Diversidade, Representatividade & Percepção - Censo Multissetorial da Gestão Kairós mostra dados sobre a ausência de profissionais que pertencem aos grupos de diversidade nas empresas brasileiras, confirmando que ainda há um grande desafio para essas organizações brasileiras.
O estudo contou com a participação de 26.619 respondentes (líderes, não líderes, aprendizes e estagiários) de diversas empresas. Os dados mostram uma hegemonia de homens (68%), brancos (64%), heterossexuais (94,6%), cisgênero (99,6%) e sem deficiência (97,3%).
Já quando pesquisados os grupos minorizados, os dados obtidos apontam mulheres (32%), mulheres negras (8,9%), negros (33%), indígenas (0,9%), amarelos (2,5%), lésbicas, gays e bissexuais (LGB) com 6%, transgênero (T) com 0,4%, pessoas com deficiência (2,7%) e pessoas com 50 anos ou mais (5,2%).
A fundadora e CEO da Gestão Kairós – Consultoria de Sustentabilidade e Diversidade, Liliane Rocha, relembra o motivo que fez ela querer abrir sua empresa com foco em consultoria.
“Sendo mulher, negra e lésbica, dificilmente, por mais bem avaliada que eu fosse, por mais que eu tivesse uma excelente entrega e por mais que eu tivesse dentro dos critérios de performance de uma grande empresa, por uma conjuntura lgbtfóbica e racista estrutural da sociedade, dificilmente eu alçaria os mais altos patamares. Percebendo isso, eu me lanço em uma carreira solo no começo de 2015”, conta.
“O meu papel na vida das pessoas trans é assegurar que elas estejam inclusas no mercado de trabalho. E a primeira coisa que fazemos na Gestão Kairós para garantir essa inclusão é evidenciar essa ausência, porque as pessoas falam que têm nas empresas delas, que esse público já está dentro das empresas e a gente faz estudos para mostrar que não, que esse público não está. É um público que segue ausente por barreiras colocadas pela sociedade. Ter uma pessoa não significa que mudou, apenas estão usando ela como um símbolo”, critica.
“O olhar que a gente precisa ter para responsabilidade social, responsabilidade corporativa e diversidade deve ser exatamente o mesmo que ocorre para as outras áreas dentro de uma empresa, pois essa área também faz parte dela. Uma área intrínseca da existência de qualquer empresa e que, portanto, demanda a equipe alocada, orçamento alocado, plano de ações para que a empresa consiga atuar em sociedade fazendo a coisa certa do ponto de vista humano, do ponto de vista legal e, ainda, do ponto de vista de vantagem competitiva das empresas. É imprescindível que haja uma área de diversidade e responsabilidade social dentro das empresas”, argumenta a executiva.
O reconhecimento do nome social, banheiros e fazer com que a pessoa se sinta confortável no ambiente de trabalho são atitudes básicas que devem ser seguidas para receber um corpo transvestigênere no ambiente de trabalho.
“O ideal é que essa pessoa se sinta totalmente confortável para ser quem é, para trazer as suas contribuições, o seu olhar e o seu lugar de fala em sociedade para dentro da empresa, tendo igualdade, inclusive, de almejar uma carreira e assumir novos patamares”, defende Rocha.
“Fazer uma palestra, um workshop de diversidade, claro que, dependendo da empresa é muito desafiador, porque está às vezes se levando um tema que nunca foi levado antes. Mas a gente precisa de mais do que isso, informação precisa virar ação. Então mais do que ser contratada para fazer palestra que certamente todas as personalidades, influenciadores e empresários LGBTQIA+ mais são chamados neste mês do orgulho LGBT+. O que a gente quer é que as empresas contratem as pessoas LGBTQIA+, retenham pessoas LGBTQI+, promovam pessoas LGBTQI+, gerem um ambiente de segurança psicológica para essa parcela da população. E nesse sentido, ainda estamos caminhando”, julga.
“A única forma de fazer essa mudança em um curto período de tempo é por meio de ações afirmativas. Olhar a diversidade, querer trazê-la para dentro da empresa e realmente trazer. As empresas não podem continuar se apoiando na justificativa de que ainda estão no início da jornada, de que não têm informação ou de que não sabem como valorizar a diversidade, pois já passamos dessa fase. Agora, precisamos agir, e agir é trabalhoso e demanda tempo, mas é necessário começar hoje”, finaliza.
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