Na segunda reportagem da série “ TRANSformando o Esporte ”, três atletas trans narram seu desenvolvimento no esporte, em categorias profissionais e amadoras, e abordam como foi a trajetória para conseguir competir. A presença de atletas trans no cenário esportivo está diretamente relacionada a fatores externos e pessoais que impulsionam esses indivíduos de algum modo, ao mesmo tempo em que a transfobia e os obstáculos burocráticos e sociais têm impacto direto na caminhada dos atletas como um todo.
Sheilla Souza , por exemplo, é goleira profissional e a primeira jogadora trans do futebol feminino no país. Ela começou a ter contato com a modalidade por meio do pai, que a induzia a jogar porque, por ser um esporte atrelado ao que é lido socialmente como masculino, o contato com o meio a faria “ virar homem ”. Ela pegou gosto pela modalidade e continuou praticando até conseguir se profissionalizar.
“Eu pensei em desistir várias vezes. Tentei disputar o campeonato baiano pela Fundação Serrinha [cidade na Bahia] em 2019, mas não consegui porque os meus documentos estavam irregulares, não tinha atualizado ainda para o registro feminino. Até que fui chamada para uma live com o Desportiva Lusaca: eu, como a primeira atleta trans do futebol feminino, junto com uma outra atleta baiana que foi jogar fora do Brasil. O presidente do clube, Diego [Benevides], pediu para que eu entrasse em contato com ele depois da live e me fez o convite de integrar o elenco. Então foi por meio do Zaca [como o time é conhecido] que eu comecei a participar do futebol feminino”, conta.
Durante a trajetória, Sheilla chegou a receber comentários transfóbicos conforme a posição de pioneirismo dela se popularizou. Entre os principais ataques está a deslegitimação do corpo dela enquanto mulher trans e o questionamento da validade da presença dela em competições de alto rendimento atrelado à ideia de “vantagem”, que é difundida no meio por indivíduos que se posicionam contra a presença de pessoas transgênero em eventos esportivos oficiais.
“Ainda somos questionadas por sermos trans. Dizem que temos mais força do que uma mulher cis, que somos homens. Há muitos exemplos de atletas cis que são pegas no doping enquanto a Tiffany Abreu, que disputou muito bem na Superliga, além dos times em que atuou, não foi pega em nenhum exame de doping. São coisas que as pessoas têm que estudar mais a respeito para ter esse conhecimento. Tudo o que a gente faz não é apenas força, são habilidades ”, observa.
“Já li comentários de um homem que dizia: ‘Vou colocar um megahair, silicone e virar trans para ver se eu fico famosa’. Eu respondi à altura: ‘Eu sou uma pessoa trans, estou no esporte e sou goleira profissional – mas não porque eu sou trans e sim porque eu tenho talento’. Não adianta ser trans e não saber nem chutar uma bola porque nenhum clube vai me aceitar. Também há comentários que dizem que sou ‘um homem jogando no meio de mulher’. Isso não existe”, comenta a jogadora.
Sheilla aponta também que todas essas reações hostis vão na contramão da proposta do esporte como um todo, ou seja, excluem não apenas os atletas trans, mas o espírito de acolhimento da área em si. “Sempre digo que é preciso parar de reproduzir palavras desmotivadoras porque o esporte não é isso. O esporte é uma modalidade acolhedora não apenas para mim, que sou trans, mas para todas as pessoas. Eu escolhi o futebol porque eu tenho talento e eu gosto de jogar. Os olheiros me viram e me chamaram. Não é porque eu sou trans, tenho cabelo longo ou seios. Estou trilhando o caminho que uma mulher trilha”, declara ela.
Apesar dos obstáculos vigentes, Sheilla compartilha com o iG Queer um episódio que chegou ao conhecimento dela e que oferece uma luz de esperança na busca por um destino mais otimista para pessoas trans no esporte.
“Teve um um torneio amador de vôlei no Espírito Santo, se eu não me engano, no qual um clube se retirou da quadra porque tinha um atleta trans no time do Rio de Janeiro. Isso é uma coisa lamentável, que entristece. Para quem tem psicológico frágil, esse tipo de situação desestimula muito. Sempre digo que não é porque essas coisas acontecem que se deve desistir; continue, mostre que você está ali. A liga desse campeonato foi a favor da atleta trans, então o time que saiu da quadra foi desclassificado. Por que isso aconteceu? Se ela estava lá é porque a federação do vôlei aceitou, uma vez que ela estava dentro das normas que o campeonato pedia. Desde que a pessoa esteja liberada e regularizada dentro das regulamentações do campeonato, não sei por que o adversário exige alguma coisa”, aponta.
De acordo com a jogadora, além da transfobia, a própria estrutura e ação dos clubes, federações e órgãos reguladores abrem brechas que viabilizam a exclusão de atletas trans e impedem que essa população tenha acesso ao esporte de maneira geral. Além das questões burocráticas, não existe uma preocupação de olhar para esse atleta em sua totalidade, levando em consideração todas as demandas e especificações do público transgênero. Sobretudo, há também o descaso generalizado com atletas mulheres, sejam elas cis ou trans.
“Se a atleta é do gênero feminino, então não há motivos para ela não competir no feminino. Atualmente, o que mais dificulta são as competições, porque não tem um clube que olhe para atletas trans , é algo muito rotulado. Eles [os clubes] querem banir as chances dentro do esporte”, expõe.
Atualmente, Sheilla trabalha em um salão de beleza para garantir a renda, pois não está jogando ativamente em nenhum clube no momento. Ao ser questionada pelo iG Queer sobre o que levou a essa pausa na prática profissional, ela explica que foi o descaso do secretário de esportes da cidade de Serrinha, Adriano da Chapada (Solidariedade), que causou desconforto e indignação geral entre as atletas do futebol feminino.
“O secretário de esporte chegou a dizer que nós do futebol feminino não conseguimos trazer título nenhum e que não podemos ganhar um valor igual ao masculino. Ele nos colocou na competição por obrigação e não porque ele queria. Se nós desistíssemos, para ele estaria tudo bem, pois o próprio secretário não daria condição nenhuma para irmos ao treino. Cheguei a me recusar a participar de qualquer competição pela seleção oficial aqui da minha cidade”, narra Sheilla.
“Eu jogo em um time que se chama As Goleiras com muito orgulho, pois foi o que me manteve no futebol feminino. Agradeço muito à seleção oficial de Serrinha. Enquanto o secretário de esporte que está no poder atualmente continuar no cargo eu não disputarei pela seleção, porque foi revoltante e muito doloroso ouvir o que ele falou do futebol feminino aqui na nossa cidade, sabendo que existem várias atletas profissionais. Fico até com vergonha e receio em representar Serrinha porque a imagem dela está muito manchada”, explica.
Apesar da situação, Sheilla pontua que quer voltar a jogar profissionalmente e se mantém aberta a quaisquer propostas que possam surgir. “Esse é o meu objetivo esse ano, seja em qual clube for: na Bahia, Vitória Fluminense de Freitas, Fluminense do Rio, Flamengo, São Paulo. Se me convidarem para fazer uma avaliação, eu estarei lá pra dar o meu melhor, mas na minha cidade, não. Estou muito revoltada com isso. Estamos sendo perseguidas ”, desabafa.
Assim como Sheilla, Marcelo*, homem trans, pratica esporte desde antes da transição. No caso dele, a modalidade escolhida foi o jiu-jitsu, esporte no qual atualmente é treinador. Ele conta que o hábito esportivo o ajudou a se aproximar do corpo com o qual se sentia mais confortável.
“Comecei a praticar jiu-jitsu entre 2003 e 2004, de 11 para 12 anos. Desde os sete anos já falava para a minha mãe que ela tinha me feito errado e eu não sabia como me expressar, mas logo cedo reconheci que algo em mim era diferente. O esporte me ajudou a ficar mais próximo do corpo que eu desejava” , diz.
Após se descobrir trans, Marcelo deu uma pausa para retornar com todos os documentos retificados, o que, de acordo com ele, ajudou a evitar que sua identidade fosse invalidada ou que fossem impostos obstáculos burocráticos. Ele chegou a participar de algumas competições nas quais saiu como medalhista.
Marcelo conta que nunca chegou a enfrentar um episódio transfóbico de frente, mas reconhece que essa é uma exceção à regra e a posição que ocupa enquanto treina outros atletas também lhe oferece um espaço vantajoso nesse sentido. “Nunca tive uma situação dentro das competições no sentido de ser menosprezado ou de enfrentar preconceitos. Sei que não é a realidade da maioria, mas eu tenho um espaço bem legal dentro da minha academia e dou aula em outros lugares. Tenho alguns atletas que são campeões brasileiros e campeões sul-americanos, então consegui atingir outro nível de poder como professor”, declara.
Além do trabalho como treinador, Marcelo atua por meio das redes sociais atendendo outros atletas trans que entram em contato com ele para pedir conselhos ou conseguir desabafar sobre as mazelas do cotidiano. Ele conta ao iG Queer que se dedica em oferecer o máximo de suporte possível. “Tem muitas pessoas que me solicitam bastante no privado e eu respondo todo mundo que possui alguma questão, porque eu quero poder ajudar de alguma forma”, diz.
Contudo, o treinador destaca que também é vítima de duras críticas por parte da própria comunidade LGBTQIAP+, que cobra dele um posicionamento mais ativo e militante com relação à inclusão de pessoas trans no esporte. Quanto a isso, ele explica que a sua forma de lidar com essa pauta está atrelada à conscientização no cotidiano, em um trabalho dentro dos próprios espaços esportivos.
“Já fui muito atacado pela comunidade LGBTQI+, pois sempre me cobraram o fato de eu não colocar no meu perfil todas as conquistas que tive, sendo que a minha forma de brigar é sendo exatamente como eu sou. Querem que eu levante uma bandeira, mas prefiro começar a transformar o pensamento das pessoas no dia a dia . Por exemplo, se durante a minha aula for feito algum comentário machista ou homofóbico, é naquele momento que eu vou lidar com isso e questionar as pessoas por determinados comportamentos”, declara.
Marcelo também reconhece que a luta em prol dos direitos LGBT e a ocupação de espaço por parte dessa população é antiga e provém de um movimento que envolveu diferentes agentes da comunidade. Com base nisso, ele reitera o fato de que cada um enfrenta as barreiras com as armas que possui à disposição.
“Eu só tenho esse privilégio hoje porque alguém brigou lá atrás, e entendo isso, mas acredito que todos têm o direito de se posicionar de diferentes formas. Com as pessoas que me procuram eu converso sobre como ele se sente e até aconselho sobre questões de documentação, por exemplo. Falo sobre tudo que a pessoa estiver a fim e tento dar soluções práticas e simples que amenizem o sofrimento do dia a dia dela”, explica.
Danielle Nunes é atleta amadora de vôlei e ativista engajada na inclusão de pessoas transgênero no cenário esportivo nacional. A trajetória dela no esporte começou cedo, aos 12 anos. Na época, ela jogava handebol e tinha interesse em se profissionalizar, mas não conseguiu. “Por ser afeminada, eu não era chamada para fazer teste em clube ou para ganhar bolsas escolares, por exemplo. Talvez eu poderia ter estado em um time profissional e até ter chegado em uma seleção. Não cheguei e não participei por conta da LGBTIfobia”.
Ela passou 15 anos afastada da prática e tentou retornar depois de realizar a transição de gênero. Até onde se sabe, a atleta é a primeira pessoa trans a competir em times de handebol, mesmo entre os amadores. No entanto, ela afirma que não quer pleitear esse título, já que a volta dela às atividades foi marcada por momentos muito dolorosos.
“O time para o qual eu voltei tinha pessoas que me conheciam antes da transição. Todo mundo que estava ali tinha suas jornadas duplas e triplas. Eu insisti em continuar praticando, mas a comissão técnica me abordava sempre no masculino, me chamavam pelo meu nome de batismo. Comecei a não ter vontade de comparecer aos treinos, até que simplesmente decidi não ir mais”, explica.
No mesmo período, ela participou de peneiras para um time da ex-jogadora de handebol Aline Chicória, mas não passou devido à idade mais avançada. No entanto, ela afirma que a diferença de tom era gritante. “Fui superacolhida pelas meninas, que me convidaram para participar dos treinos”, conta Danielle, que aceitou o convite.
“Só que durante o treino eu caí quando fui marcar uma colega e a empurrei sem querer. Poderia ter a machucado. Naquele momento, vendo uma das técnicas gritar um palavrão e botar a mão na cabeça, me veio um iceberg nas costas. Em questão de segundos caiu a minha ficha e percebi que meu tempo tinha passado. Eu não continuei desenvolvendo minhas habilidades. Todo o talento que eu tinha no início da adolescência foi se perdendo ao longo do tempo”, se recorda.
Danielle também considera a transição de gênero com reposição hormonal um agravante. “Quando era adolescente, eu fazia gol a nove metros de distância. Quando voltei a praticar esporte, precisei usar mais a habilidade porque não tinha a mesma força e velocidade”.
A atleta conta que sua vontade de retornar ao esporte apareceu, principalmente, devido ao período conturbado pelo qual estava passando na vida pessoal e profissional. Ela estava em um trabalho em que era moralmente assediada e tentava sair de um relacionamento tóxico. “Naquela época, eu não fazia terapia no divã, era na quadra”, diz.
Impossibilitada de voltar ao handebol, Danielle recorreu ao vôlei e passou a jogar aos fins de semana em uma Vila Olímpica perto de onde mora atualmente, no Rio de Janeiro. “Procurei o vôlei em uma escolinha na praia e comecei a partir daí. Me mudei para Belo Horizonte, onde tinha uma escolinha para adultos, e passei a treinar com pessoas da minha idade ou um pouco mais novas do que eu. Fui aperfeiçoando e melhorando até conseguir entrar em um time na categoria feminina”. Atualmente, ela atua como ponteira.
Além da situação pela qual passou ao tentar retornar às quadras de handebol, Danielle afirma que não se deparou com outros ataques abertamente transfóbicos contra ela. A atleta narra que teve discussões com técnicos a respeito de jogo, mas que os desentendimentos eram relacionados ao desempenho durante a partida.
No entanto, a atleta analisa que, em comparação às colegas de time, ela é a que mais chama atenção do técnico quando erra na quadra. “Eu sou bastante disciplinada e cometo poucos erros. Meu time conta com algumas mulheres militares, então também pode envolver essa questão de hierarquia social que as protege. Mas com certeza sinto que sou mais cobrada”, pondera.
Assim como Sheilla, Danielle foi muito inspirada pela trajetória de Tiffany – tanto que ela chegou a recorrer à vereadora Marielle Franco para pedir que a jogadora de vôlei recebesse a medalha Chiquinha Gonzaga, honraria concedida pela Câmara do Rio a mulheres que se destacaram em causas humanitárias, culturais, artísticas e democráticas.
“Tiffany representava uma possibilidade maravilhosa, uma brecha para a gente poder escapar daquilo que a sociedade nos empurra, que é a prostituição. Saí da minha casa na Zona Oeste do Rio, atravessei a cidade e fui até o gabinete da Marielle pedir a honraria”, lembra. No entanto, não conseguiu pelo período de recesso e nem no mês seguinte, devido ao Carnaval. Em março daquele ano, Marielle Franco foi assassinada junto de Anderson Gomes, motorista da parlamentar .
Apesar de não ter conseguido articular a homenagem a Tiffany, o interesse serviu como estalo para que Danielle tentasse ingressar na política para criar uma mobilização quanto à causa dos atletas trans no Brasil. Ela passou a frequentar movimentos sociais, se filiou a um partido político e, assim, conseguiu uma oportunidade de tornar-se assessora parlamentar.
Em 2018, a atleta saiu candidata a deputada estadual, “mas sem recursos, sem nada”. “Eu levava essa pauta do esporte e cheguei a ouvir que isso não dá voto. Meio que não liguei e segui em frente. Recebi 640 votos, algo que hoje analiso como expressivo, já que sou de uma região onde a milícia predomina. Consegui fazer uma campanha e falar com as pessoas”, relembra.
No ano seguinte, ela deu mais um passo para se especializar: se mudou para Belo Horizonte para realizar uma pós-graduação em administração e marketing esportivo. No mesmo período, ela começou a conhecer diversos times amadores formados por pessoas LGBTQIA+, como o Bharbixas Esporte Clube e o Meninos Bons de Bola , um time de futebol formado apenas por homens trans.
A figura de Danielle passou a ganhar notoriedade e, atualmente, ela tenta jogar ainda mais luz sobre as complexidades que envolvem a inclusão de atletas trans no esporte, principalmente no cenário político. “Tivemos alguns avanços em 2020 elegendo candidaturas trans, mas a gente ainda mora em um país extremamente conservador; e em ano de eleição, até o campo progressista não toca em pautas de costume”, pontua.
“Se não fizermos nossa parte como cidadãos e não escolhermos nossos representantes, de repente, esse cenário pode ficar muito pior. Por isso, é preciso compreender como funciona a política, politizar os nossos e dizer que o que a gente odeia tem nome. A política é algo totalmente diferente e é para o bem comum. É isso que eu venho fazendo: desmistificando o que é política. E aí vou juntando um aqui, outro ali, até que acabo fortalecendo esse papo”, analisa.
*O nome desta fonte foi alterado para preservar sua identidade.
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