Série do iG Queer debate a inclusão de atletas trans no cenário esportivo nacional
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Série do iG Queer debate a inclusão de atletas trans no cenário esportivo nacional


Na terceira reportagem da série “TRANSformando o Esporte”, o iG Queer aborda as experiências de pessoas trans com a atividade física desde a infância. Por mais que o debate central sobre o assunto foque atualmente em atletas de alto rendimento e no cenário profissional, as exclusões, que começam muito cedo, podem também impactar a vida da comunidade trans não atleta. Só no Brasil, de acordo com a Universidade Estadual Paulista (Unesp), há cerca de 4 milhões de pessoas transgênero ou não binária.

Danielle Nunes, atleta amadora de vôlei, trans e ativista engajada na inclusão de pessoas transgênero no cenário esportivo nacional, afirma que a prática esportiva ao longo da infância e adolescência foram cruciais para o próprio desenvolvimento. Ela conta que, na infância, era um ponto fora da curva: a esportista foi aceita pela família desde criança e estudou em escolas particulares. Outro grande diferencial foi o caminho dela ter cruzado com o de profissionais da educação física que auxiliaram a integração no esporte.

Danielle cresceu jogando handebol e foi incentivada pelos professores que teve durante o período de desenvolvimento. “Tinham duas quadras, uma em que se jogava futebol e, em outra, o handebol. Eu jogava junto com outros dois meninos do mesmo período que eu. Minha terapia nunca foi no divã, sempre foi em quadra, correndo e podendo socializar. Não me tiraram isso”, conta. 

No entanto, ela reforça que isso não quer dizer que não era vítima de bullying homofóbico por parte de outros alunos. Anos mais tarde, por exemplo, ela lembra que não era convidada para frequentar a casa das colegas de turma, e atribui esse fato à LGBTIfobia. “Eu já era uma elfa do deserto, uma sereia da Mata Atlântica. Era algo que não era semelhante àquilo que era o padrão”, analisa.

Uma situação específica que se lembra foi quando, no primeiro ano do Ensino Médio, ela realizou a peneira para integrar o time de handebol da escola. Os testes eram mistos, e Dani lembra ter sido hostilizada em quadra. “Fui motivo de muita chacota, de riso e gargalhadas. Foi muito ruim”. 

No último dia de testes, ao chegar em quadra, viu o treinador do time (que também era diretor do colégio) esbravejando com os veteranos da equipe do outro lado. “Não entendi o que estava acontecendo, mas ele gritava com as pessoas. Enfim, comecei o treino e percebi a mudança de comportamento dos outros. Me chamou atenção porque conversaram comigo, me trataram melhor do que no dia anterior. Percebi que o ambiente ficou menos inóspito. Tinham alguns olhares e comentários de deboche, mas mais disfarçados”, narra.

Danielle Nunes é mulher trans, jogadora amadora de vôlei e engajada na discussão política acerca da inclusão de pessoas trans no esporte
Arquivo pessoal/Arte: Thiago Calil
Danielle Nunes é mulher trans, jogadora amadora de vôlei e engajada na discussão política acerca da inclusão de pessoas trans no esporte

No dia seguinte, no período das aulas, Danielle foi chamada pelo treinador – que exercia o cargo de diretor de dia e de treinador à noite. “Pensei: ‘Pronto, o que foi que eu fiz?’, sendo que eu não tinha feito nada”, lembra, aos risos. “Ele me chamou e disse que não tinha gostado da atitude das pessoas comigo e que tinha comunicado ali que a única vaga do time era minha. Se as pessoas quisessem jogar, teriam que me respeitar”. 

A peneira em que Danielle participou, bem como o “esporro” nos colegas de time, aconteceu no início dos anos 2000, um momento em que o debate sobre diversidade e inclusão era ainda menos presente no ambiente escolar e na sociedade em geral. “O treinador era um homem de meia idade, branco e da área da educação física, um meio superconservador. A atitude foi muito bacana e importante até para a permanência da minha vida. Eu poderia ter sofrido muito mais”.

O encontro com profissionais que auxiliaram na permanência de Danielle na quadra, no entanto, não fez com que os impactos depois da escola diminuíssem. A atleta afirma que foi extremamente prejudicada devido à identidade e expressão de gênero dissidente – um efeito que não sentiu sozinha. Ela narra, por exemplo, que chegou a participar de peneiras de clubes para conseguir bolsas estudantis, mas que não foi chamada para jogar porque era afeminada.

“Fui vendo que outras pessoas também tiveram dificuldade e, por serem LGBT, não conseguiram praticar o esporte que gostavam. Muitas meninas não conseguiram jogar bola. Muitos gays afeminados também não por conta de toda opressão do ambiente escolar. Eu, por ser fora da curva, ainda consegui habitar esse espaço”, relata.

Expulsão da quadra

Leonardo Morjan Britto Peçanha é professor de educação física licenciado e bacharel especialista em gênero e sexualidade, mestre em ciência da atividade física e doutorando em saúde coletiva. O pesquisador afirma que a discussão voltada à inclusão de atletas trans no esporte é tão exacerbada que deixa de lado outras frentes igualmente (ou até mais) importantes. “Não se olha para a criança dissidente, como a menina masculinizada e o menino afeminado. Essas pessoas são interrompidas de fazer educação física, independentemente se essa criança vier a ser uma pessoa LGBT ou não. A problemática não chega ali”, pontua o pesquisador.

Quando o corpo de uma criança se movimenta de maneira não esperada pela sociedade, cria-se preconceito e essa criança fica vulnerável a sofrer bullying homofóbico, seja pelos colegas ou pelos próprios profissionais da educação física. Peçanha abordou o assunto no trabalho de conclusão de curso da licenciatura e afirma que o tema foi aprofundado pelo pesquisador Rodrigo Silva Perfeito, no livro “Educação Física e o Bullying: A Desutilização da Inteligência".

“Qualquer pessoa LGBT, não só trans, que tinha uma expressão de gênero diferenciada passou por problemas nas aulas de educação física escolar. É uma atividade que demanda que o corpo esteja em movimento. Quando isso é feito de forma diferente do esperado, acarreta em bullying e negação”, explica Peçanha. 

“O mesmo acontece em outros segmentos, como a população negra, pessoas gordas ou muito magras e pessoas pobres e periféricas que podem passar por uma questão de vestimenta, por exemplo. São corpos cobrados e lidos como estranhos”, acrescenta.

A própria categorização de práticas esportivas por gênero, tão comum no ambiente escolar, impacta nesse processo. Ainda é comum encontrar instituições que não promovem atividades mistas ou que atribuem determinadas atividades a um grupo específico de pessoas. Por exemplo: o futebol é voltado para os meninos, enquanto o ballet é destinado às meninas.

“Essa é uma divisão desatualizada e que ainda estamos discutindo. Já não era mais para falarnos disso. As habilidades motoras que a criança tem ou venha a ter não têm nada a ver com a sexualidade ou identidade de gênero dela. Isso está ligado ao que ela absorveu enquanto criança fora da escola e leva para esse ambiente. É uma interação que ela tem com um determinado esporte ou prática corporal. A quadra é onde a criança, seja menina ou menino, vai pular, se soltar e colocar sua cultura corporal de movimento em prática para todo mundo ver. Isso incomoda quando não é uma manifestação esperada”, explica o pesquisador.

A deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL-SP), que acompanha as discussões acerca da inclusão de pessoas trans no esporte, afirma que a educação brasileira precisa avançar bastante com relação ao binarismo implementado na cultura tradicional. “As aulas de Educação Física, em sua maioria, ainda são sintomáticas quanto à exclusão de pessoas trans e LGBTs, o que denota uma ambiguidade: se destacam as produções acadêmicas que refletem sobre a necessidade de inclusão destas pessoas ao processo educacional voltado para o corpo".

Essas estruturas impactam para que alunos que não se encaixam nesses rótulos se afastem das quadras. O pesquisador conta que é comum que alunos optem por não realizar atividades físicas e preferem entregar trabalhos acadêmicos para ganhar pontos. Essa atitude tem como intuito uma autoproteção para que a criança se blinde de violências nas aulas de educação física.

“É comum vermos xingamentos como ‘viadinho’ para um menino afeminado, como se ser gay fosse algo ruim, ou inferiorizando mulheres. Esse é um problema que acarreta durante toda fase escolar, contribuindo para a expulsão da escola devido ao estranhamento desse corpo nesse espaço, que faz com que aquele jovem não queira mais estar ali. A LGBTIfobia que ocorre na educação física contribui para que pessoas trans não consigam concluir a educação básica, por exemplo”, explica Peçanha.

Impactos fora da quadra

Leonardo Peçanha é bacharel em educação física, especializado em gênero e sexualidade, mestre em ciência da atividade física e doutorando em saúde coletiva
Arquivo pessoal
Leonardo Peçanha é bacharel em educação física, especializado em gênero e sexualidade, mestre em ciência da atividade física e doutorando em saúde coletiva

Ele afirma que negar o acesso ao esporte à criança LGBTQIA+ é vetar a promoção à saúde dessa população. A endocrinologista Ana Paula Oliveira, especializada no tratamento de reposição hormonal de pessoas trans, concorda com a afirmação.

“Vemos muita relação de crianças, adolescentes e adultos trans com distúrbios psiquiátricos e sedentarismo, por exemplo. Quando a criança quer fazer um esporte e é privada daquilo por aquele esporte não ser considerado adequado para ela, pode-se descontar as frustrações em outras coisas e intensificar transtornos psicológicos, acarretando também em problemas físicos”, explica a endocrinologista.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que jovens entre 11 e 17 anos pratiquem em torno de uma hora de exercícios físicos diariamente. No entanto, um relatório divulgado pelo órgão em 2019 (última apuração) aponta que 84% dos adolescentes brasileiros praticam atividades físicas em um período muito menor do que o indicado. O percentual entre meninas é de 89% e entre meninos, 78% – a pesquisa não faz distinção entre jovens cisgênero e transgênero.

Peçanha acrescenta que a falta de atividades físicas na infância acarreta ainda em uma falta de autonomia do próprio corpo ao longo do tempo. “Um dos objetivos da educação física escolar é tornar a pessoa apta a perceber com o que se identifica e o que quer fazer como atividade física ao longo da vida. Isso não acontece porque existe esse sistema de violências que naturaliza a prática esportiva de forma negativa”, diz.

“É importante para o desenvolvimento da criança e do adolescente que ele corra, faça atividade física, esteja em interação com outras crianças e adolescentes. Quando a pessoa não passa por isso, ela terá um déficit nas questões motoras e corporais, que também precisam ser desenvolvidas na educação física escolar. Enquanto não se tem isso, fica uma lacuna na formação corporal”, continua o pesquisador.

Oliveira acrescenta que a prática de atividades físicas também pode ser aliada ao longo da vida de pessoas trans com relação à saúde mental. “É algo que precisa ser discutido. Temos que ter programas exclusivos de esporte e incentivar que essas crianças, sejam cis ou trans, sonhem em competir e disputar uma Olimpíada, se assim quiserem. É uma discussão que precisa ser uma política de saúde pública”, defende.

“O Estado deve garantir, e isso está na Constituição, o direito dos seres humanos de terem acesso à educação. A educação física faz parte das disciplinas e as pessoas deveriam ter acesso de forma humanizada, com equidade e de maneira respeitosa. Isso não vem acontecendo e tem impactado não só na questão social de impedir o acesso à educação formal, como também na questão corporal de cada indivíduo”, salienta Peçanha.

Acesso fora da escola não é para todas as pessoas

Existem outras estruturas de poder que impedem a participação esportiva desses jovens e dos que fazem parte de outros grupos dissidentes. Peçanha explica que o motivo para isso é o de o esporte (e a possibilidade da prática dele) não ser trabalhado com equidade, principalmente na área de desenvolvimento inicial do atleta. 

“Há essa ideia de que o esporte salva a vida das pessoas e vende-se uma imagem de que isso vai chegar em todo mundo. Não se inclui corpos dissidentes nessa salvação”, explica. O pesquisador aponta ainda que as questões de classe também esbarram de forma significativa nesse debate. “Para praticar, é necessário ter o mínimo de condições financeiras para, pelo menos, pagar a passagem para ir ao treino, ter uma boa alimentação, uniforme e alguém que treine aquela pessoa”, começa.

“Existem clubes nas periferias que revelam muitos atletas conhecidos, que são importantes, mas não é uma realidade para todo mundo. Muita gente treina sem comer ou não tem como pagar o ônibus. São questões sociais que não querem alterar, porque aí quem é favorecido vai deixar de ser. Não querem perder”, acrescenta.

No caso de atletas trans, a transfobia impacta nas estruturas de poder do esporte. Por mais que um número significativo das federações permitam que atletas compitam, essas instituições são cobradas ou mesmo boicotadas por incluírem essa população. “As pessoas desistem de competir com determinadas federações por aceitarem pessoas trans. Essas estruturas se movimentam para manter tudo como está e impedir que pessoas trans participem de competições oficiais, até mesmo no amador”.

Esperança nas novas gerações

Apesar dos passos lentos, Danielle percebe uma diferença justamente pelo assunto ser mais frequentemente debatido. “Hoje conseguimos ver um número muito maior de crianças trans sendo acolhidas pelos familiares”, diz. De outubro de 2020 a maio de 2021, por exemplo, o Hospital das Clínicas aponta que recebeu 129 famílias com adolescentes e crianças trans entre 3 e 17 anos no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS), o que já demonstra um crescimento de acolhimento das famílias. 

A atleta e ativista cita como exemplo a patinadora Maria Joaquina Cavalcanti Reikdal, atualmente com 14 anos. O acolhimento da família permitiu que a patinadora conseguisse se desenvolver desde a infância no esporte sem precisar esconder ou temer a própria identidade de gênero. Em 2019, ela conquistou a medalha de ouro no Campeonato Brasileiro de Patinação Artística no Gelo, na categoria advanced novice. 

No entanto, desde cedo, a patinadora precisou lidar com situações transfóbicas que tinham como intuito dificultar ou mesmo anular sua participação. No mesmo ano, quando competiu no Campeonato Brasileiro de Patinação Artística sobre Rodas, Maria foi impedida de realizar o reconhecimento de pista antes da competição. Além disso, membros da Federação de Patinagem do Paraná teriam proibido que a atleta usasse o banheiro no evento. Ela tinha 11 anos na época.

“O Gustavo Cavalcanti, treinador e um dos pais da Maria, diz que é ela quem dá força para ele, porque ela colocou na cabeça que quer competir e ninguém tira isso dela. Mas um pai ou mãe de uma criança trans vai querer que o filho sofra tanto assim? Claro que não. Precisamos pensar em lugares cada vez mais acolhedores para que essas crianças façam parte da vida da sociedade”, diz Danielle.

“É preciso naturalizar a presença de pessoas trans, assim como de negros, indígenas e LGBTs, em todos os meios sociais. Isso diz respeito ao direito à vida, não podendo ser negado em quaisquer situações”, acrescenta Malunguinho.

“A preocupação é muito em relação ao impedimento no alto rendimento, que gera discurso de ódio. Se realmente há preocupação, por que não se problematizam as questões de educação física escolar com crianças e adolescentes LGBT? Essa é a faixa etária em que as pessoas estão se descobrindo, se entendendo e manifestando suas identidades. Como isso vai ser recebido na aula de educação física? Com LGBTIfobia?”, questiona Peçanha.

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