Bruno de Almeida, homem trans, é estudante de psicologia
Reprodução/Instagram
Bruno de Almeida, homem trans, é estudante de psicologia


Tudo começou quando Bruno, influencer e homem trans , matriculou-se pela primeira vez na Pontifícia Universidade Católica (PUC) em 2013, no curso de publicidade, antes de retificar os documentos. Porém, naquela época, ele não deu seguimento nos estudos nesta área. Já em 2019, voltou a se matricular, desta vez no curso de psicologia. Como tinha feito uma matrícula anteriormente, Bruno, já retificado, atualizou os dados pessoais. Entre o segundo e terceiro período de faculdade, em 2020, ele começou a fazer estágio e passou a receber e-mails e mensagens da universidade com o nome morto (ou seja, usado antes da transição de gênero) de Bruno.

“Eu pensei: ‘Talvez não tenha atualizado, mas com o passar do tempo isso pode ser arrumado’”, contou ele ao iG Queer. “Fiquei tranquilo com isso, mas continuou acontecendo. Eu tinha esperança de que isso acabasse, então fui levando a situação. Nesta semana, chegou um novo e-mail se referindo a mim como Vanessa”. 

Bruno de Almeida
Reprodução/redes sociais

Felipe Kino, agente do influenciador, postou sobre o caso no LinkedIn

Bruno conta que uma amiga o incentivou a fazer algo sobre o ocorrido. Neste momento, a primeira ação de Bruno foi tirar uma foto do e-mail e publicar nos stories do Instagram, expondo a situação. Nisso, o agente do influenciador acabou postando a foto no LinkedIn e a publicação foi compartilhada e comentada por Bielo Pereira – pessoa trans não-binária (mais especificamente bigênero) influenciadora. 

Os amigos de Bruno sugeriram que ele marcasse o perfil da universidade, mas ele conta que acabou não acatando à ideia. “Eu fiquei com um sentimento de: ‘Poxa, será? Não precisa, só eu estou vendo, então está tudo bem’”, diz. “Ainda não fui reclamar formalmente, sequer sei como exatamente devo fazer isso. Fico pensando que ‘é só a parte de estágio, não tem problema’”. 

Ao ser questionado se o possível motivo de não ter feito uma queixa à universidade até então é o medo de sofrer algum tipo de represália, Bruno responde que não tem certeza. Ele ressalta que a PUC é uma universidade católica e que essa situação talvez possa gerar um burburinho. “Depois terão mais motivos para falar de mim", diz.

"Na faculdade, pelo menos até onde sei e conheço, sou a única pessoa trans, principalmente levando em consideração que é uma instituição elitizada. Fico apreensivo em reclamar, mas acho que chega um momento em que precisamos nos manifestar. Percebi que há certas coisas que eu deixo passar e não deveria. Faz dois anos que recebo e-mails da faculdade me chamando de Vanessa, e acho que só agora caí na real”, explica. 

O iG Queer questionou se, além desse caso mais recente, Bruno já vivenciou alguma outra situação de transfobia dentro da instituição. Ele conta que já teve a informação de uma professora do curso de direito que expressou falas de cunho transfóbico em sala de aula. 

“Ela disse: ‘Essas pessoas trans ficam achando que são mulheres, mas mulheres de verdade são as que têm útero ’. Alguns alunos reclamaram sobre o caso no perfil da faculdade, alegando que a professora é totalmente homofóbica e transfóbica. Mas, falando de mim, acho que é muito mascarado, talvez pelo fato de eu ter um perfil com bom número de seguidores e elas ficarem com medo de terem um desfecho ruim”, declara. “Porém, nós notamos. Vemos olhares. São pequenas coisas que apareceram e que eu percebi, mas deixei de lado. Pelo menos até agora”. 

De acordo com Bruno, é provável que justamente o acúmulo de pequenas ocorrências tenha feito com que ele expusesse a situação dos e-mails com nome morto, devido ao desgaste em ter que lidar de modo recorrente com a transfobia nas mais variadas formas. 

“Em um curso de psicologia há pessoas de todos os tipos. Ouvimos comentários variados, incluindo alegações racistas, por exemplo. Durante os debates, eu via minhas amigas negras se impondo para combater essas falas equivocadas, mas eu mesmo sempre deixava passar quando se tratava de uma questão transfóbica. Isso me fez perceber: ‘Caramba, eu sou minoria mas tenho que falar, independentemente de qualquer coisa’. Foi o estopim para que eu notasse que não estava reagindo pela minha causa”, conta. 

A importância do acompanhamento psicológico na luta contra transfobia

Bruno faz terapia e destaca que esse processo é muito importante principalmente para filtrar comentários transfóbicos que podem surgir tanto no dia a dia quanto nas redes sociais. Ele também comenta que tem grande passabilidade – ou seja, está bem próximo das expectativas estéticas e características ligadas ao que é lido socialmente como masculinidade –, e isso o priva de receber ataques mais diretos de pessoas que não lhe conhecem.

“Muitas pessoas às vezes nem imaginam que sou trans”, conta. “ Essa passabilidade me protege demais. Já tiveram casos de homens que têm falas muito preconceituosas me cumprimentarem e me abordarem normalmente, algo que, se soubessem que sou trans, não aconteceria. Recentemente, eu estava fazendo tatuagem e a tatuadora não percebeu que sou trans. Ela disse muitas coisas transfóbicas, tanto que eu até decidi fazer uma tatuagem como a da Linn da Quebrada e eternizei ‘Ele’ na testa. Foi como uma afronta à tatuadora”. 

Sobre o processo terapêutico, Bruno diz que “sem a terapia eu não saberia o que fazer”. De acordo com ele, um dos principais efeitos desse acompanhamento é não se deixar levar pelas adversidades que surgem no meio do caminho. 

“Os pensamentos são como pequenas vozes na nossa cabeça. Eles nos diminuem e prestam atenção em hate, dificuldades, relacionamentos que são difíceis de desenvolver, entre outras coisas. Precisamos saber que não podemos ceder a nada disso, então a terapia é a voz que me faz olhar para mim mesmo e me protege para não me sufocar com as situações do cotidiano”, pontua. 

O iG Queer questionou ainda o que levou Bruno a fazer psicologia. Ele conta que inicialmente tinha dito à família que queria cursar arquitetura, mas em uma sexta-feira à noite ele foi a um bar LGBTQIAP+ e conversou com algumas alunas de psicologia. “Em certo momento da conversa, eu perguntei: ‘Vocês falam sobre isso [comunidade LGBT e transgeneridade] na faculdade?’. Elas disseram que não, e que se caso falassem era de forma rasa. Eu pensei: ‘Caramba, só consegui encontrar um psicólogo que entende do tema em 2018’. Achei que se eu fizesse esse papel, poderia ajudar de alguma forma, afinal eu entendo sobre essa vivência. No dia seguinte, decidi fazer psicologia. Quero muito trabalhar como psicólogo do Ambulatório Trans de São Paulo, na área social, com as travestis e os homens trans”, conclui. 

Instituições que não respeitam o nome de pessoas trans: o que fazer?

Casos como os de Bruno não são isolados. Muitas pessoas trans têm o nome negligenciado tanto no âmbito acadêmico quanto em outras áreas sociais. Francisco Gomes Júnior , advogado Presidente da Associação de Defesa de Dados Pessoais e do Consumidor, ressalta a importância do respeito ao nome de indivíduos transgênero. 

“A sociedade precisa ter consciência de que o nome social para uma pessoa trans não é um apelido ou apenas uma questão legal. É uma questão de respeito com a pessoa, e não utilizar o nome social reiteradamente caracteriza transfobia. Discriminar alguém por sua orientação sexual ou identidade de gênero é, desde 2019, crime sujeito à pena de um a três anos de reclusão além de multa”, pontua. 

Sobre as políticas que permeiam a adoção do nome de pessoas trans em registros escolares e universitários, a advogada cível  Maria Claudia Trajano pontua quais são as determinações legais a serem seguidas por estas instituições. 

“Contamos com um repertório legal tanto em âmbito municipal, estadual e federal que determinam o respeito ao direito do transgênero, como a resolução Nº 12, de 2015, da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, que determina o reconhecimento e a adoção do nome social dos alunos em instituições de ensino. Essa medida aponta ainda que deve ser incluído nos formulários de matrícula o campo de nome social para que seja preenchido, se for o caso, além do direito de utilizar o banheiro correspondente ao gênero com o qual o indivíduo se identifica. Também há a garantia da emissão de documentos oficiais, como diploma e histórico escolar, que deem destaque ao nome social ou retificado do aluno. Em âmbito estadual, em São Paulo, temos a Lei 10.948/2001, que prevê punição desde advertência até suspensão ou cassação da licença estadual de funcionamento para o caso de desrespeito ao direito da pessoa trans”, elucida. 

Caso a instituição insista em não incluir o nome correto de alunos e alunas trans nos registros oficiais, há algumas medidas que podem ser tomadas em um primeiro momento. O advogado  Miguel Dante Machado apontou ao iG Queer algumas ações recomendadas para formalizar a queixa.

“O ideal é entrar em contato diretamente com a própria instituição, seja por e-mail, SAC ou notificação extrajudicial por meio de advogado, relatando o ocorrido e pedindo que a situação seja corrigida. O ideal é fazer isso de forma escrita para que não se perca posteriormente e fique de fato documentado, então vale tirar prints ou imprimir essa queixa para tê-la em mãos caso a instituição alegue que não foi avisada sobre o assunto”, explica ele. 

O especialista aponta ainda que, após formalizar a reclamação neste primeiro momento, também se pode recorrer ao boletim de ocorrência. “Basta procurar uma delegacia especializada para lavrar um B.O com a rubrica de ‘intolerância LGBTQIA+fóbica’. É bem importante realizar essa denúncia, seja por meio do boletim de ocorrência ou até pelo Disque 100. Após isso, a instituição estará sujeita às devidas punições e a pessoa trans pode procurar um advogado, seja particular ou por meio da Defensoria Pública, para promover uma ação de indenização por danos morais”, conclui. 

O iG Queer tentou contato com a PUC via e-mail, mas até o momento em que esta matéria foi veiculada não obteve resposta. O espaço para manifestação permanece aberto e este material será atualizado caso a reportagem tenha um retorno da universidade.

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