Grávido, Roberto Bete e a mulher, Érika
Reprodução/Instagram/roberto_bete
Grávido, Roberto Bete e a mulher, Érika

Sou de uma família de cinco filhos e tive uma criação machista, meu pai era aquele patriarca, que só parou de tentar ter filho homem quando minha mãe engravidou do meu irmão. Nunca gostei de nada feminino, que meu corpo fosse feminino, cabelo, roupas, sempre quis parecer o mais andrógena possível. Por volta dos 14 anos me descobri como lésbica e passei a viver essa identidade. Ainda assim, não era uma coisa na qual eu me encaixava de verdade.

Não sabia que existia transexualidade. Só aos 22 anos, já casado com uma mulher, vi o Tarso Brant (ator e modelo transgênero) na TV e descobri que existia homens trans. Sabia das travestis, mas pensava que era só um homem que se veste de mulher, não sabia que existia essa questão da transição de gênero.

Comecei, então, a me comunicar com outros rapazes trans e aí caiu a ficha, vi que tinha essa possibilidade, que eu poderia me transformar realmente em um homem. Iniciei minha transição. Tomava hormônios indicados por um professor na academia. Sei que não é aconselhável, mas naquele momento não havia tanta informação e visibilidade. Até que descobri um hospital que cuida de transexualidade. Esperei por um ano a vaga para o atendimento no hospital. Comecei a fazer exames, tomar hormônios na quantidade certa, tive acompanhamento psicológico, psiquiátrico e endócrino.

Meu físico e meu interior começaram a mudar. O hormônio mexe muito com a questão emocional. O início da transição deixa você bem instável, nervoso. Fui querendo viver outras coisas, frequentar outros lugares. A transição trouxe conflitos para o meu relacionamento e a gente acabou se separando.

Depois de três anos consegui a mastectomia, que era o que eu mais desejava. Mesmo antes da cirurgia, já estava contente com meu corpo, tinha barba, aparência bem passável, ninguém mais me confundia. Essa questão da passabilidade, não é o que todos buscam, mas a maioria sim, porque é quando a gente se camufla do preconceito e da violência.

Fui virgem até os 27 anos, porque não deixava ninguém encostar em mim. Achava meu corpo feminino. Não queria ter a sensação que estava sendo uma mulher na relação. Depois da mastectomia, conheci uma menina trans e com ela perdi a virgindade. Fiquei um mês pensando sobre o que tinha acontecido, tentando digerir, por um lado foi bom, por outro foi transgressor. Depois a gente voltou a se falar, foi rolando e fui descontruindo aos poucos a questão sexual. Aí fui entender que meu corpo é um corpo trans, não é cis. Eu tenho vagina, útero, tive que me abrir e aceitar que minhas formas de prazer são essas.

Em 2019 conheci a Érika, uma mulher trans. Ela tinha o desejo de ser mãe e passamos a discutir a questão de eu engravidar. No começo eu me sentia bem ofendido: queria ser pai, mas não queria gerar o filho, isso nunca passou pela minha cabeça. Ela me ajudou a desconstruir essa questão que ter filho é coisa de mulher, que homem não engravida, me mostrou que tudo bem eu gerar porque, afinal, eu tenho útero.

Antes de começarmos a namorar, ficamos por um ano e meio, porque eu ainda estava num processo de descoberta, tinha acabado de conhecer meu corpo, saber o que era um orgasmo. Queria viver tudo que não tinha vivido. Depois eu sosseguei e quando pensava em um porto seguro, uma família, só pensava nela. Então, começamos a fazer o planejamento do filho. Eu queria com 35 anos, mas ela me convenceu a tentar antes porque já tenho muito tempo de hormônioterapia.

Nós paramos de tomar hormônio. Demorou bastante para meu útero voltar a funcionar, ter ciclo menstrual. Continuei com barba cheia e pelo, mas voltei a ter disforia com meu corpo, via gorduras que começaram a se localizar em lugares que eu considero feminino. Essa fase foi bem ruim, aconteceu muita coisa, abandonei o trabalho, tive depressão. Fiquei mais quieto, mais triste, minha libido caiu. A Érika ficou ao meu lado o tempo inteiro, mas os efeitos colaterais também começaram a aparecer para ela. Os pelos voltaram a crescer, a pele ficou mais grossa, a testosterona voltou com muita força e ela é muito marcante no nosso organismo. O tempo sem hormônio deixou a gente baqueado.

Quando veio a gravidez foi um susto porque nossa relação estava em crise e já tínhamos até desistido. Demorou um tempo para acreditar. Depois começamos a entender que era isso o que queríamos, que o conflito havia sido provocado pelo hormônio e não por algo nossa relação.

Durante a gestação, comecei a me tratar com terapias, mais voltadas para um lado espiritual. Passei a tentar entender que essa dualidade entre masculino e feminino está em todos os corpos, e tudo bem. Na hora de parir vou precisar da minha força feminina, vou precisar das minhas ancestrais femininas. Não posso ficar renegando isso porque causa um desequilíbrio. Acolhi, aceitei, sei que é uma fase. Esse caminho vai trazer o Noah para os meus braços, então parei de olhar para as coisas pequenas. Foi uma experiencia maravilhosa, mas não quero novamente.

Quem não me conhece não sabe que eu estou grávido, acha que eu sou um homem barrigudo. Já fui até à praia. Acho que pensaram: “essa barriga não é dele, deve ser uma doença”. Quando vou fazer um exame, o profissional que está lá vai saber que não é barriga de chopp, mas fui sempre bem atendido, me senti até privilegiado. Tive um atendimento maravilhoso pelo SUS.

A Érika vai amamentar o Noah. Começou o tratamento com três meses de gestação e está lactando. Ela está mais ansiosa do que eu para o nascimento. Quero muito vê-la cuidar do bebê, viver essa família que estou construindo.

Após 40 dias do parto, posso voltar a tomar meus hormônios. Quero voltar para academia, voltar a trabalhar minha rotina, minha vida ativa, sexual. Voltar para ser eu, me sentir vivo, vibrante. Vivo a ansiedade não só para conhecer o Noah, mas para voltar a ser eu.

Mas estou feliz. Hoje consigo olhar para esse processo com mais ternura. A gente nunca vai se arrepender de viver isso. Eu tinha medo e agora não tenho mais. Como pai, só quero que o Noah que seja o mais livre possível. Quero que ele seja quem nasceu para ser. Vou apoiar tudo, a gente só quer que ele seja feliz, que viva os sonhos dele.

(N.R.: Noah nasceu dia 10 de maio, de parto normal. É um bebê lindo, saudável, com pai e mãe encantados)

Roberto, Érika e o filho Noah
Reprodução/Instagram/roberto_bete
Roberto, Érika e o filho Noah


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