Às noites de segunda-feira, a zona oeste de São Paulo vira o destino de para receber 50 pessoas que formam o Coral Câmara LGBTQIA+ Brasil – considerado o único coral LGBT em atuação atualmente na América Latina. Das oito da noite até às nove e quarenta e cinco, o teatro do Espaço Ao Cubo é preenchido por um ensaio de muitas vozes, acordes de piano, aquecimento vocal e muito riso ao longo do processo.
A configuração de pessoas enfileiradas com pastas pretas na mão é substituída por cadeiras posicionadas em semicírculo em cima do palco italiano. As vozes do coro são formadas por um leque expansivo que vai do homem gay até a mulher trans. As vozes são direcionadas ao centro, onde ficam posicionados Ettore Veríssimo, maestro e idealizador do coral, e Gabriel Fabbri, maestro assistente, arranjador e pianista.
Basta alguns minutos de ensaio para perceber que a rigidez que sustenta a imagem do que é um coral no imaginário popular cai por terra. As barreiras entre o que é feminino e o que é masculino não existem, e as vozes têm liberdade para se expressarem independente de gênero. O tom de cada um (ou naipe, para usar o termo técnico) é o que importa para que as apresentações funcionem.
“Sempre tive vontade de contribuir de alguma maneira para a comunidade LGBT, porque a gente tem dificuldade de acesso e formação. Tenho esperança de que dessa forma possamos contribuir com o país. O coral ensina muito; não só musicalmente, mas mostra para a comunidade uma forma de se conhecer melhor”, afirma Ettore, resumindo as intenções que teve ao criar o coral.
Gabriel afirma essa reformulação de estrutura como algo que é, ao mesmo tempo, legal e desafiador. “É um grande desafio fazer com que essas pessoas se sintam possíveis dentro de um ambiente seguro, principalmente travestis e trans, que são pessoas muito marginalizadas e hostilizadas – dentro até do próprio meio. Nosso primeiro cuidado é que essas pessoas sejam inseridas de forma organizada e que não haja preconceito entre os meios”, acrescenta o pianista.
Para Péricles Martins, coralista e diretor cênico do Coral Câmara LGBTQIA+ Brasil, não é que o formato habitual do coral deva ser menosprezado; mas buscar novas configurações e possibilidades de formações pode cumprir um importante papel subversivo. “Sinto que a configuração habitual é muito quadradinha. A gente tem que entender o que é essa diversidade que a gente fala tanto. É uma proposta para que a subversão esteja presente ao ocuparmos espaços públicos”, indica.
O acolhimento é o pilar mais importante para que o coral possa funcionar. Para participar não é preciso pagar, ter formação musical ou experiência prévia com canto – o mesmo vale para quem quer assistir, já que todos os ensaios são abertos e gratuitos. Quem quer ser um coralista basta preencher um formulário online e comparecer ao ensaio. Só esse ano, 120 inscrições foram recebidas. A facilidade não atrai somente pessoas LGBTQIA+ de todas as idades, mas também pessoas heterossexuais e mesmo de outros países – Péricles fala de um casal suíço que vem ao Brasil anualmente e sempre reserva um tempo para participar dos ensaios.
O Coral Câmara LGBTQIA+ Brasil foi fundado por Ettore em 2017 com apoio da Câmara do Comércio de São Paulo – órgão que é homenageado no nome do grupo. A proposta não só foi bem aceita pelo órgão, mas fez a diferença para que o coral pudesse ter uma estrutura ao longo desses cinco anos: apesar de não destinar verbas públicas, a Câmara ajudou a viabilizar materiais de trabalho e espaços para os ensaios; além de auxiliar na organização e na inscrição do grupo para apresentações.
Desde então, a sede dos ensaios passou por diversas casas, como o SP Escola de Teatro, o Museu da Diversidade e, atualmente, o Espaço Ao Cubo, situado no número 1010 da Rua Brigadeiro Galvão, a algumas quadras do Memorial da América Latina. De lá para cá, o grupo se apresentou no metrô, em diversas paradas LGBTQIA+ no Brasil (incluindo edições virtuais durante a pandemia), festivais mundiais online e eventos com relevância social e política – um exemplo foi a Global Pride de 2020.
“Há um alcance mundial do nosso coral. Estamos inclusive negociando parcerias para conseguir realizar apresentações remotas e gravar vídeos com corais LGBTQIA+ da Espanha e dos Estados Unidos”, diz Ettore.
O título de único coral em atividade na América Latina passou a ser utilizado após a falta de resultados em busca de corais que atendessem prioritariamente o público LGBTQIA+. “Fomos pesquisar e não encontramos outro em São Paulo. Vimos um coral gay em Florianópolis, mas o site não estava atualizado, então não devem estar na ativa. Talvez exista um em Buenos Aires, mas realmente não tem nada específico como o nosso”, explica Péricles. “Não encontramos nenhum registro com o nome LGBT ou suas variáveis. A gente precisa dar nome a isso”, acrescenta Ettore.
Depois de dois anos de suspensões de atividades presenciais devido à pandemia do novo coronavírus, os ensaios presenciais voltaram a acontecer em abril de 2022. A cantora e atriz Vanessa Rodrigues, coralista desde o primeiro dia do coral e atualmente diretora de movimento do grupo, afirma que o fluxo de pessoas novas é sempre grande. “Dos que estão aqui, acho que em torno de dez pessoas estão no projeto há mais tempo”, conta à reportagem. “Tem o que chamamos de visitante: pessoas que aparecem uma vez, cantam, não aparecem mais e acabam voltando depois de três meses”, acrescenta Péricles. “Alguns momentos da vida acabam trazendo muitas dessas pessoas de volta”, coloca Vanessa.
De letrinha para letrinha
Todas as pessoas envolvidas na organização do coral são voluntárias e afirmam que, por mais que um dos objetivos centrais do coral seja a expressão artística, o grupo também é um projeto social de extrema importância. “Percebo que a comunidade LGBT é muito separada. Cada letra vive na sua bolha. Pessoas trans não tinham contato com gays e lésbicas, por exemplo. É uma das grandes possibilidades que o coral tem de integrar esses grupos e ver todo mundo interagindo e vivendo junto”, explica Ettore.
O maestro destaca a grande adesão do público LGBTQIA+ com mais de cinquenta anos, que conta com poucas opções de espaços para frequentar em que se sintam em segurança. "Tínhamos um coralista, o Marquito, que faleceu durante a pandemia e falava que o gay da terceira idade tem poucas opções de contato social. Ele dizia que amava ir ao coral para ter contato com todas as idades. Ele se sentia aceito e se sentia emocionalmente confortável para participar".
Péricles fala sobre a diversidade do Coral de Câmara LGBTQIA+ com brilho nos olhos. "O meu percurso como homem gay envolvia amizades com outros homens gays. No coral consigo efetivamente ter um diálogo com outras pessoas da comunidade. Às vezes ficamos muito no preconceito, e aqui dentro não tem isso. Essa diversidade e essa troca me cativaram. A ideia é ser um lugar de acolhimento", diz.
“Ao longo da minha vida, principalmente na adolescência, a gente era associado aos guetos e às perseguições. Não tinha lugares específicos para a gente ir. Hoje vemos que existem espaços onde essas pessoas podem se sentir bem e compartilhar suas narrativas”, acrescenta o diretor cênico
O tradutor Paulo Araújo, 33, é coralista do projeto há quatro anos. Descobriu o coral, segundo ele, na sorte. “Já participei de outros corais, sempre gostei muito de canto. Por coincidência, em um momento em que queria voltar a estudar, recebi um anúncio do Facebook”, lembra.
De acordo com ele, essa pluralidade o cativou para permanecer no projeto. “Tive oportunidade de conviver e ter amizade com pessoas que também são da nossa comunidade que eu não teria, como pessoas mais próximas da faixa etária dos meus pais e pessoas trans. Quis ter essa troca para não ficar só no ‘GGG’ da bandeira. Isso foi muito enriquecedor”, explica. “Estar aqui foi algo que saiu do lugar de aprender a melhorar a minha voz e se tornou um encorajamento para utilizarmos nossas vozes para representar a gente mesmo. Cada um brilha do jeito que pode brilhar”, acrescenta.
A coralista Ada Luz explica que o primeiro contato com o coral foi por meio de uma amiga que fazia parte do grupo. A primeira apresentação que viu foi em uma Parada do Orgulho LGBTQIA+, no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo. “Assisti aquilo e senti uma energia tão boa. Todo mundo cantando ‘Born This Way’, da Lady Gaga, um repertório impecável. No mesmo dia me informei sobre os ensaios", conta.
A intenção inicial era só a de assistir; agora, todas as segundas, ela cruza a cidade a partir do extremo leste para ensaiar. "A primeira vez que participei foi uma felicidade enorme. As pessoas são muito receptivas e se aprende muito sobre o respeito à diferença”, conta.
O ator Marcio Francisco Marchetti, 45, também conheceu o coral por meio de uma amiga. Ele participou de outros corais para se desenvolver como artista. "Quando soube que aqui era um coral LGBT, nem imaginava que existia. Perguntei para a minha amiga: 'Não acredito, tem? Então esse é o coral que eu tenho que ir'", diz aos risos.
Além de conseguir desenvolver o canto, ele afirma que a presença ali foi importante para criar novos laços. “Acho que muitas vezes a gente perde a referência de família [dentro da comunidade]. A minha família mora no interior e nem tudo eu posso conversar com ela. Ter um espaço onde a gente possa se expandir e poder conversar é muito importante”, pensa.
“Ao participar do coral comecei a ver a beleza de ser abraçada de várias formas, tanto na questão da diversidade quanto na questão da arte, de ver pessoas que não eram artistas que foram se descobrindo assim ou foram se encontrando dentro da arte mesmo sem intenção de trabalhar com isso. Ver as pessoas entrando em contato com a arte pela primeira vez despertou muito em mim e na minha bagagem como atriz para entender como isso agrega e como o que faço tem importância”, pondera Vanessa.
Pertencimento
Gabriel afirma que há uma grande dificuldade mundial para conseguir quebrar com as estruturas da música que existem há tantos anos. “A mesma estrutura é feita desde, mais ou menos, o século 12. Isso não muda de um ano para o outro, é um trabalho de formiguinha. O mais difícil é quebrar a sonoridade que um arranjador tem na cabeça. Temos o trabalho de fazer com que essas vozes que soam diferentes sejam divididas de outra forma”, explica.
"Tentamos sair desse lugar binário para que não seja algo constrangedor, mas ao mesmo tempo estamos em processo de formação, buscando nomenclaturas... É claro que a gente se equivoca às vezes, mas estamos disponíveis a ouvir", acrescenta Péricles.
Gabriel cita a Broadway como uma das entidades artísticas que têm tentado se adaptar para incorporar talentos trans, queer e pessoas não binárias nos espetáculos. Com o trabalho feito no Coral Câmara LGBTQIA+ Brasil, Gabriel acredita que há passos importantes sendo dados para abrir portas para que as outras gerações possam trabalhar de forma mais tranquila.
"A gente não escolhe a voz que tem, nascemos com ela. A gente sabe da dificuldade que a comunidade trans tem para pertencer. Temos a cultura de não dar rótulos porque se não, não vamos atender as pessoas. Se eu coloco uma mulher trans com uma voz mais grave junto do coro masculino, por exemplo, eu estou a agredindo, e o que eu preciso fazer é acolher", enfatiza Ettore.
Na prática, essas preocupações fazem toda diferença para quem é coralista. Alicia Fernandes, 26, trabalha com eventos de negócios e descobriu o coral na internet. Ela chegou a participar de outros corais no ensino médio, em 2012, e na época da faculdade. Alicia sempre se identificou como soprano mas, na época da escola, ainda não tinha passado pela transição de gênero.
“Eu já tinha uma voz bem aguda e bem característica de soprano, mas a professora tentou me encaixar com os meninos, nos naipes tenor e baixo; mas eu claramente não me encaixava nem se eu forçasse minha voz, não tinha para onde correr. Quando ela viu que não ia conseguir, me colocou com as contraltos”, lembra. Ela conta ainda que na época também precisou enfrentar comentários negativos por parte de outros colegas e precisou se encaixar no tom mais grave: “Ficavam zoando a minha voz”.
Agora, ela sente que o acompanhamento de Ettore permite que ela expresse da forma como se identifica, entre as sopranos. “O maestro vai muito na vibe de como cada um quer usar a própria voz independentemente de gênero”, afirma. Ela também cita que a falta de competição é um ponto alto, já que o processo é muito mais colaborativo. “O lado social é ótimo para expandir as amizades, mas o que mais me motiva a vir toda semana é poder me expressar artisticamente. Não tem essa de um naipe ser melhor que o outro”.
Marcio Francisco teve a mesma sensação. Ele chegou a integrar o Coro Luther King, mas estar em um coral LGBTQIA+ foi como “se sentir em casa”. “No coral geral você fica menos a vontade porque não tem o grau de intimidade com as outras pessoas. A própria organização de vozes torna tudo mais inclusivo. O coral ainda é uma estrutura muito arcaica, e aqui não. Se vê uma abertura enorme. É brilhante”, elogia.
Por ter sido coralista, Vanessa afirma que precisa se preocupar com diversas frentes ao pensar a coreografia do grupo – mais do que talvez precisasse refletir ao trabalhar com grupos mistos ou não direcionados ao público LGBTQIA+. “Preciso pensar em mais frentes para que a reverberação dentro do coral seja positiva e todo mundo se sinta respeitado. Quero ter certeza de que exista conforto e que ninguém se sinta agredido ou exposto no mau sentido”, explica.
Péricles afirma que seu trabalho como diretor cênico é pensar menos nas apresentações e mais no desenvolvimento de cada coralista. “Trabalho com aquecimento, jogos de integração e trouxe estudos de mesa para que entendam o que vão cantar. Transformamos a música em texto teatral e abordamos o contexto dela, o que ela significa, para que isso seja levado para as intenções e para o corpo. A intenção com esse processo também é agregar todo mundo”.
Repertório de milhões
A escolha do repertório também é outro pilar importante para a identidade do projeto. “A Queda”, de Gloria Groove, “Pro Dia Nascer Feliz”, do Barão Vermelho, e "Panis et Circencis", gravada pelos Mutantes e escrita pela dupla Gil e Caetano, são algumas das obras ensaiadas pelo grupo para o espetáculo que será apresentado no segundo semestre deste ano. "A gente tem repertório para se divertir, mas também tem pra falar das questões da nossa comunidade", diz Paulo.
Augusto Tiburtius, 52, se define como "da turma dos veteranos" do coral, já que ele faz parte do grupo desde a segunda semana de existência. Para ele, o repertório é um dos principais pontos altos. Entre as canções que ele cantou ao lado do grupo estão versões brasileira de músicas de "Rent" (ou "Tempos de Amor"), um prestigiado musical da Broadway que retrata a comunidade LGBTQIA+ e a Aids, e "This Is Me", do filme "O Rei do Show" que, como Augusto define, "fala sobre os excluídos da sociedade". As duas músicas se tornaram carro chefes do repertório do coral.
"Fizemos também uma segunda versão muito forte de 'Não Recomendado', em que a gente parava no meio para falar os números de mortos por transfobia e homofobia do ano anterior da apresentação", lembra o coralista. "Todo repertório do coral sempre teve uma base muito forte em cima das mensagens para representar nossas letrinhas", afirma.
Ele também reforça o cuidado do maestro para harmonizar o coro: "Ettore sempre foi muito cuidadoso na composição dos grupos e encaixou as pessoas dentro das vozes de acordo com o tom, não com a identidade de gênero. Isso sempre foi um grande abraço para todo mundo e é o que nos mantém juntos".
Gabriel afirma que é bastante importante incorporar obras de artistas LGBTQIA+ ao trabalho, mas considera que também é interessante incluir músicas feitas em outros contextos e por artistas fora da comunidade. “Nossa ideia é também mostrar que as pessoas LGBT não vivem apenas nessa bolha e abrir o leque. Vivemos em uma sociedade que pode ser muito mais chocante cantar ‘Roda Vida’, de Chico Buarque, do que ‘A Queda’, da Gloria Groove”, afirma.
Ato político
Em 2022, o Coral Câmara LGBTQIA+ Brasil foi um dos projetos contemplados pelo ProAC. É a segunda vez que o grupo consegue o fomento cultural. A verba deve ser destinada para a compra de figurinos, transporte e materiais. Para Ettore, ser contemplado pelo projeto neste momento é algo de importância simbólica.
"Estamos em tempos em que a cultura está perdendo muito e passando por muitos desmontes. É um dinheiro destinado para algo tão importante quanto a educação e a segurança pública. É um marco ter um grupo LGBT fomentado, levando cultura e levando arte para a nossa cidade, não só para a comunidade, e é importante para mostrar não só a resistência do coral, mas que somos capazes de criar conteúdo de qualidade", afirma.
“Somos um coral político por si só, não tem como não ser. Estamos em um momento complicadíssimo da história da gente que se a gente piscar, a gente volta para 1964. Vemos a história se repetir de forma cíclica”, diz Gabriel.
“O fato de estarmos ocupando esse espaço já é um ato político porque a ideia é entender esses corpos, e não formatá-los. Me motiva como artista e como indivíduo social saber que a gente está fazendo história, mesmo que seja de pouquinho. Não é qualquer coisa. Estamos aqui para que as próximas gerações possam explorar mais", acrescenta Péricles.
As expectativas para o futuro do coral são inúmeras. Péricles quer que o grupo se profissionalize. Gabriel espera uma nacionalização e celebra a existência de um lugar em que “as pessoas podem se encontrar em um ambiente seguro para ser quem são”. Um objetivo em comum entre coralistas e pessoas que trabalham na organização é fomentar o surgimento de outros corais. Gostaria que fossemos uma inspiração. Se tivesse um coral LGBT por esquina seria incrível”, diz Vanessa.
As apresentações online que o grupo fez na pandemia podem ter facilitado esse processo. “Pode ser que alguém em Singapura ou no Vietnã esteja vendo, se identifique e por algum motivo comece, seja o estopim e reflita sobre o que pode fazer para mudar o mundo. A gente nunca sabe quem está assistindo”, reflete Gabriel.
Ettore reforça que essa é uma responsabilidade grande, mas prazerosa. "Estamos criando uma história muito bonita. A expectativa é poder divulgar mais o coral e levá-lo para fora. Por sermos o único grupo da América Latina, precisamos mostrar que podemos vencer barreiras e dificuldades financeiras, que a comunidade precisa se fortalecer e que devemos persistir nisso para levar nossa bandeira", diz o maestro.