Acervo pessoal
"Quero que a informação chegue ao maior número de pessoas vivendo com HIV para que tenham vontade de viver”, diz David Oliveira

Fazer com que a população geral compreenda a frase “O HIV não é uma sentença de morte” é um dos principais desafios atuais de pessoas que vivem com HIV, ativistas e organizações que querem desestigmatizar o vírus. Além de tornar o diagnóstico mais desesperador para quem descobre a sorologia positiva, essa visão reforça a construção de uma imagem desatualizada sobre o HIV; além de acrescentar uma carga pesada e punitiva que torna o debate amedrontador.

Quando o comunicador digital David Oliveira descobriu que é uma pessoa que vive com HIV, em 2017, ele decidiu que queria tentar inverter essa lógica. Logo no início do diagnóstico, ele decidiu criar o projeto Doses de Vida. A iniciativa nasceu da vontade de amparar pessoas que receberam o diagnóstico e motivar a busca de tratamento. Por conta da pandemia, o Doses de Vida se estendeu para as redes sociais e já ajudou mais de 500 pessoas em todo o mundo.

Em paralelo ao amparo, David compartilha ali, além de suas experiências como uma pessoa que vive com HIV, uma parte bem específica do seu dia a dia: o uso dos antirretrovirais, medicamentos usados nos tratamentos contra o vírus. Daí é que vem o nome do projeto. Afinal, as Doses de Vida são uma referência aos próprios medicamentos.

“A gente sabe que tomar qualquer tipo de medicamento não é legal e todo mundo conhece alguém que toma algum remédio controlado, independente do motivo. Quando a gente pega o remédio na mão, a gente associa não a cura nem a saúde, mas a doença em si. Eu mentalizava coisas positivas para poder ingerir aquilo. Mentalizava vida”, explica o comunicador ao iG Queer.

Por experiência própria, David sabe que os momentos após o diagnósticos podem ser dolorosos, tanto pelo desamparo como pela imagem ainda presente de que o HIV vai consequentemente levar à Aids e, assim, se tornar letal e irreversível – algo que, com o avanço da medicina e os atuais medicamentos, não é mais verdade.

Ele se lembra especificamente do momento em que a ideia do projeto brotou nele. Certa vez, em que esperava para realizar a primeira consulta com um nutricionista pós diagnóstico, conheceu um rapaz que estava esperando para realizar o teste de HIV. “A gente conversou e tentei acolhê-lo de uma forma bem leiga. Quando ele saiu da sala e recebeu o resultado, ele me pediu um abraço”, lembra.

David refletiu e percebeu que, no caso dele, o abraço fez falta e o susto, como de costume, foi grande. Iniciativas como a que ele tem atualmente, capazes de estender a mão também para pessoas recém diagnosticadas, eram difíceis de encontrar – ao contrário dos dias de hoje em que, apesar de se falar muito pouco sobre HIV, é possível encontrar ativistas, comunicadores e pessoas públicas capazes de abordar a questão.

Depois disso, quase todos os dias da semana David estava no Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP (CRT), localizado na Rua Santa Cruz, na capital paulista, para oferecer esse abraço e palavras de encorajamento a pessoas que acabaram de receber o resultado do teste ou que estavam em tratamento. No entanto, isso precisou ser interrompido quando a pandemia do novo coronavírus estourou no Brasil: além das medidas restritivas impostas para toda sociedade, pessoas que vivem com HIV eram, naquele momento, consideradas como um grupo de alto risco, por ser um vírus que fragiliza o sistema imunológico.

“Eu já publicava no meu Instagram fotos e vídeos das minhas doses com palavras positivas, com músicas ou em trechos de livros, por exemplo. Até que, na pandemia, um rapaz de Manaus me falou: ‘Tá na hora de criar um grupo de WhatsApp, né?’. Fiz na hora. O grupo existe há dois anos”, conta David. O grupo em si é voltado para pessoas que vivem com HIV, mas o perfil no Instagram chamou atenção de mais pessoas que fazem uso de medicamentos controlados para tratar outros diagnósticos.

O V do HIV pode ser de Vida

A forma como o HIV é retratado por David é transformadora por acrescentar a vivacidade e a longevidade para mostrar que esses fatores também estão atrelados à uma vida com HIV. O resultado dessa proposta é um olhar único e poético sobre o diagnóstico e seu dia a dia.

Pílulas colocadas junto de gravuras, folhas e poesias. Pílulas tomadas com café, suco, pão e vinho, ao ar livre ou no escritório. Doses tomadas sozinho, com companhia de amigos do WhatsApp ou até de Padre Júlio Lancelotti. Músicas de melodias calmas cantadas por Silva, Anitta, Criolo e Liniker embalam alguns desses momentos em breves stories ou em postagens do feed. Dessa proposta surgiu até Dina, um pé de feijão que cresceu em um frasco de lamivudina.

Para David, é assim que o HIV é: cercado de poesia, por mais que, ele reconhece, possa parecer estranho relacionar as duas coisas. “O HIV é regado a muitos delírios criativos. Dentro desse artivismo [mistura das palavras arte e ativismo] a gente vai ter Caio Fernando Abreu, Renato Russo, Cazuza… São pessoas que estão tentando entender o que dizer e ver beleza. Pode ser poesia dramática, melancólica ou de humor, mas para mim é uma boa poesia da vida”, afirma o comunicador, que emenda que o motivo disso é a percepção sobre a vida das pessoas com HIV: “A gente é sensível aos detalhes da vida, ficamos mais sensível a tudo”.

O comunicador afirma que esses artistas acabam se tornando não só grandes referências, como pessoas muito importantes e presentes durante a trajetória. Em 4 de abril no ano passado, data em que Cazuza completaria 63 anos, David tomou suas doses de vida mentalizando o cantor. “Pensei: ‘Que bom seria se o Cazuza estivesse vivo hoje para eu poder tomar uma dose de vida com ele’”.

David não esconde a felicidade quando seu projeto é lido como poético, já que mais do que um post para alimentar as redes sociais, o que é postado ali é, simplesmente, a vida dele. “Quando a gente fala de HIV, a gente sempre ouve um familiar falando que conhece alguém que morreu de Aids. Associam que eu estou com Aids, a doença aparece muito nos assuntos domésticos. Quando a gente coloca a nossa cara a tapa, temos que falar que o HIV existe, trazer algo bom disso. Algo poético, algo doce, para mostrar que pode ser leve também”, declara.

O papel do amparo

Ao contrário da maioria dos casos de pessoas que vivem com HIV, David teve o apoio da família, de amizades e da igreja. O comunicador é cristão, e afirma que, “por mais louco que isso possa parecer”, o acolhimento também veio da comunidade religiosa. “Falo que o lugar em que mais tenho protagonismo de pauta é a comunidade de fé. É muito difícil entrar em espaços religiosos e falar sobre o HIV porque envolve diversos tabus, envolvendo a sexualidade. Rafael, meu pastor e amigo, incentiva o meu protagonismo nos projetos. Há espaços para falar sobre isso em que me sinto seguro”. Mesmo assim, reconhece que essa comunidade é muito pequena.

David também conta que não demorou muito tempo para ter informações e se engajar na luta de prevenção e conscientização ao HIV. Duas semanas após o diagnóstico, ele se viu no grupo de encontros “Juventudes: fortalecendo nossos laços”, em que outra chave para seu ativismo e tratamento foi virada.

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"Me inscrevi. Fui pensando que era um encontro entre pares, que seriam pessoas com HIV conversando entre si. Não era nada disso, era um encontro entre ONGs, onde fui muito abraçado. Foi aí que comecei a conhecer outras experiências". Para ele, todo esse apoio foi determinante para fazer o projeto acontecer e, mais ainda, compreender a multiplicidade da vida com HIV.

Impacto no tratamento

A psicóloga Andrea Ferola Navarro Manhas, orientadora do Projeto Crescer especializada em luto, perdas e psicologia hospitalar, explica que a reação ao receber um diagnóstico inesperado de doença de difícil tratamento ou sem cura (neste último caso, se inclui o HIV) é similar ao do luto da morte de um ente querido ou de uma separação. Se passa por estágios da negação, isolamento, raiva (acompanhada de culpa e frustração), negociação, depressão e aceitação.

A especialista afirma que a fase da negociação, em que se começa a entender as consequências daquele diagnóstico (como as etapas de tratamento, por exemplo), é uma das mais determinantes e é o momento em que a depressão, sintoma comum nesses casos, pode ou não se manifestar. Essa depressão, quando ocorre, tem níveis que variam de pessoa para pessoa, a depender das reações e do sentir dela própria.

"Isso esbarra em uma questão de preparação emocional ou psicológica. Quem está mais preparado geralmente aceita de uma forma melhor e consegue fazer as adaptações necessárias de acordo com o diagnóstico recebido", afirma Andrea. “Quando o ser humano tem um alto valor próprio, uma maturidade psicológica e um autoconhecimento, ele consegue passar por todas as etapas da vida, seja com diagnóstico ou não”, acrescenta.

A especialista explica que pessoas que pendem para um estilo de vida mais positivo e que seguem um ritmo tranquilo podem acabar encarando o diagnóstico de uma forma melhor. No entanto, ela reforça que isso não deve ser confundido com uma romantização da doença, que pode resultar em uma positividade tóxica. São situações e reações diferentes. A aceitação do diagnóstico é algo que tem mais a ver com o fato do autocuidado e do zelo com a própria saúde e bem-estar diante da situação – segundo ela, é onde o projeto de David se encaixa.

"Nós não estamos romantizando problemas ou tendo distorções da realidade. Estamos enxergando a situação pelo que ela é de fato. Qualquer pessoa pode morrer de um resfriado ou de um câncer, por exemplo. Esse impacto negativo vai aparecer mais em pessoas negativistas que pensam que essas doenças estão fora da realidade ou tentam camuflá-las", explicita.

A reação das pessoas ao redor, principalmente o apoio e encorajamento, também é muito importante. A psicóloga explica, por exemplo, que algumas equipes hospitalares recebem orientação para falar com o paciente de forma motivadora e que faça a pessoa compreender que "existe vida nos nossos dias, não dias nas nossas vidas".

Essa naturalização das doenças ajuda a pessoa a compreender quais são suas dores e limitações e que, mesmo assim, é possível ter uma vida saudável e longeva com uma doença crônica (categoria em que o HIV passou a ser colocado após o avanço dos tratamentos). A troca de conhecimentos entre pessoas que enfrentam a mesma situação também é frutífera. "É o processo de crescimento interior. Quando uma pessoa aceita, se respeita e conhece alguém em uma situação delicada, aquela pessoa sabe que pode ajudar. Não é só pela troca do que fazer para melhorar, mas pela bagagem, por aprendizados anteriores. Isso alimenta a alma, a vida e eterniza nossos saberes, nossa existência e nossa vivência", pondera.

Viver com vontade

David Oliveira segura antirretrovirais
Acervo pessoal

"Eu mentalizava coisas positivas para poder ingerir aquilo", diz David sobre o tratamento com antirretrovirais

O Doses de Vida ganhou notoriedade também por trazer essa conexão entre diversas pessoas para trocar conhecimento – uma conexão que engloba não só brasileiros, mas pessoas de países africanos e europeus, por exemplo. Em 2021, o trabalho feito por David foi premiado com o Prêmio José Araújo Lima Filho de ativismo e direitos humanos.

Apesar de sentir falta da experiência no CRT, o comunicador afirma que a Internet adicionou hibridismo e teve a chance de conectar pessoas que estão em regiões mais isoladas, que podem não ter qualquer tipo de auxílio próximo. “Pense em uma travesti no interior do Rio Grande do Sul, um estado super conservador, que descobre a soropositividade. De lá, ela tem que viajar para outra cidade para buscar remédio, porque onde ela mora não tem um postinho especializado. Imagina a solidão dessa mulher. Essas condições colocam as pessoas em mais vulnerabilidade, em mais armários e calabouços”. Por isso, para ele, o grupo se tornou uma grande família.

Ele próprio sentiu falta dessa rede de informações e conexões no início do tratamento, e passou por diversas situações em que não sabia como recorrer, desde falta de medicamentos até médicos que faltam na consulta e desamparam o paciente. Agora que tem mais informações, ele nota que, apesar de o Brasil ter sido considerado referência no tratamento ao HIV até pouquíssimo tempo, a informação não chega para todas as pessoas. O resultado é a desinformação que ainda impera na população geral.

“Ainda tenho que falar que beijo na boca não passa HIV e outras coisas óbvias que aprendi há cinco anos”, começa. “Só se fala em HIV em duas épocas: Carnaval e as duas primeiras semanas de dezembro. As redes sociais não entregam conteúdos sobre HIV. É bizarro pensar o quanto ainda é tabu falar sobre isso”.

O comunicador cita ainda as dificuldades provenientes dos impactos políticos e sociais. Ele cita os projetos de lei que visam barrar a educação sexual em escolas e iniciativas para não aprovar (e condenar) essas possíveis leis. As políticas de tratamento do Brasil, consideradas bem estruturadas mundo afora, foram prejudicadas durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL) . “O nosso trabalho hoje é itinerante para informar o maior número de pessoas possível sobre essa vivência”.

Para David, fazer com que as pessoas entendam que o HIV não é uma sentença de morte é seu maior sonho. “Acredito na cura e na evolução da ciência, mas antes da cura precisamos curar o preconceito e o estigma. O pedo não é da sorologia, mas das pessoas que vivem com HIV. Acho que minha principal missão neste mundo é falar sobre as minhas doses de vida e impactar as pessoas me cuidando. Quero que a informação chegue ao maior número de pessoas vivendo com HIV para que tenham vontade de viver”, conclui.

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