Para pessoas cercadas pela cisheteronormatividade, o HIV e a Aids são uma espécie de elefante na sala: sabe-se sobre eles, mas, por acreditarem que o assunto não é pertencente ali, se desinteressam. O resultado é uma visão que retrata o HIV pela visão do escárnio, do nojo e da punição, já que são assuntos que, há 40 anos, são entendidos como um vírus e uma doença exclusiva de homens gays.
O resultado em muitos casos é fazer do HIV uma piada de mau gosto ou um motivo para difamar a imagem de outra pessoa, seja ela de fato uma pessoa que vive com o vírus ou não. O ator Charlie Sheen e o cantor Leonardo são alguns dos famosos que fizeram piadas com HIV. No começo do ano, o rapper estadunidense Uncle Murda atacou Lil Nas X da mesma forma, dizendo que “Lil morreria de Aids” .
Mais recentemente, foi a vez do rapper Kanye West. Ele chamou atenção ao dizer para os seguidores do Instagram que o comediante Pete Davidson, atual namorado de Kim Kardashian, que é ex-esposa de Kanye, tem Aids. A equipe do rapper precisou se pronunciar afirmando que Kanye não tinha tido a intenção de ferir ninguém, mas o próprio rapper se justificou ao afirmar que fez a acusação porque queria “proteger sua família”.
O que todos esses atos têm em comum é a ridicularização do HIV, usada ou como insulto ou disfarçada de comédia. A parcela da população que ri desses tipos de comentários são homens cis hétero, que acreditam serem intocáveis pela infecção.
“Isso tem relação com o fato de que os heterossexuais acreditam ser imunes ou inatingíveis pelo vírus do HIV e têm a sensação de que isso nunca vai acontecer com eles. Será sempre algo do outro. Essa percepção se volta para uma narrativa do lado certo e puro e do lado errado e impuro – em que os homens gays seriam colocados”, afirma Marcio Albino, educador social e pessoa que vive com HIV.
Ignora-se o fato de que pessoas hétero também têm chances de, em algum momento da vida, receberem o diagnóstico. “Se parte desse pressuposto de ser ‘uma pessoa pura’ e, assim, se cria a ideia de que o HIV e a Aids são problemas gays. Mas os dados já estão mudando radicalmente. Em alguns países a infecção de HIV é muito maior em adolescentes heterossexuais”, diz o educador.
A “graça” no HIV
Na percepção do educador, mesmo com tratamentos que garantem a qualidade de vida de pessoas que vivem com HIV, situações como a de Kanye não chegam nem a ser uma piada de mau gosto ou ruim, mas apenas uma desumanização do outro e de associar uma sorologia com tragédia. Da mesma forma, é muito mais fácil zombar da Aids e do HIV quando parecem ser tópicos tão distantes.
“É ver alguém que perde seu valor e sua dignidade por alguma razão. Existe uma graça em rir da desumanidade do outro, como se fossem sub-humanos. É um fenômeno sociológico que se repete na história nos mais diversos grupos, que é capturado por piadas, pela cultura patriarcal, pela religião e por várias questões”, diz.
Albino descreve essa percepção como “HIV e Aids imaginária”. “Todos nós temos uma memória coletiva dos anos 1980 e 1990. É quase um arquétipo da Aids de vítimas, na maioria gays, e das mortes sem precedentes, além da indiferença do Estado e da sociedade em relação a essas mortes”, aponta.
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A tentativa por parte da sociedade, da mídia e do Estado de colocar a Aids e o HIV como “peste gay” e “punição divina” não só foi bem sucedida no momento em que a epidemia estava em seu pior pico, como foi herdada das gerações atuais. Ao contrário de causar comoção e preocupação, o vírus é observado (e celebrado, até) pela ótica da punição por conta da orientação sexual de alguém.
O resultado desta visão é a consolidação do estigma das vivências LGBTQIA+ e do preconceito. “É uma visão mesquinha do divino, uma série de estereótipos criados para apontar a homossexualidade como algo ruim”, indica Albino.
Para compreender a diferença como o imaginário popular encara o HIV em detrimento de outras doenças, vírus e infecções, o educador social cita o câncer. “Numa ocasião como essa, a comunidade inteira se junta para cuidar dessa pessoa. Isso se torna um trauma, uma tragédia. Gays nunca tiveram esse privilégio de ter o sofrimento ou a compaixão das outras pessoas”.
Combatendo a desinformação
O educador social aponta que existem muitas informações sobre o HIV e a Aids de fácil acesso e em grande volume. Além disso, muitos grupos, páginas na internet, perfis nas redes sociais e coletivos fazem o trabalho de combate à desinformação e de educação em relação aos temas.
Para ele, a educação é a maior chave para conseguir se livrar desses pensamentos que menosprezam e diminuem o HIV. Além disso, o autoconhecimento pode desmantelar as estruturas de pensamentos criados socialmente e que dão vazão para a ridicularização e a desumanização.
“O comportamento e as falas das pessoas preconceituosas são sintomas e consequências, não a causa do problema. Isso é normalizado por outros motivos e narrativas dominantes que vêm de antes. É preciso identificar de onde vem isso para combater a Aids imaginária”, reforça Albino.
A autoeducação deve ir além do HIV e da Aids, mas se estender para todas as ISTs. O educador inclui ainda o sexo em si como um tema que deve ser repensado e estudado de forma séria. “Deve-se fazer uma autopercepção quando a pessoa não entende nada sobre o HIV. Existem muitas notícias maravilhosas e avanços que significariam o mundo para todas as vítimas que perdemos nos anos 1980 e 1990 pela epidemia. São avanços científicos que poderiam ter salvado muito mais vidas, não fosse a indiferença do estado e da sociedade contra essas pessoas”, finaliza.
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