Amara Moira é uma das grandes referências brasileiras de ativismo feminista e da comunidade travesti brasileira. A escritora é conhecida por seus escritos teóricos e literários sobre a realidade de pessoas trans no país, e se embasa, principalmente, em suas próprias experiências.
Entre seus relatos e memórias, é muito presente a prostituição, ocupação a qual mais de 90% da população trans recorre em detrimento da falta de oportunidades no mercado de trabalho . Esse é o pano de fundo de seu terceiro livro, “Neca”, publicado pela editora Sexo da Palavra e que está em pré-venda .
O livro reúne um monólogo e 20 poemas que fazem um retrato da população travesti por meio da admiração e das vivências de Amara. Diferente das experiências relatadas em seu primeiro livro, “E Se Eu Fosse Pura” (Hoo Editora), “Neca” se divide entre seus próprios relatos e sua visão sobre outras travestis.
Em meio a fantasias sexuais e experiências de travestis, a escritora tece um cenário que escancara a realidade das trabalhadoras sexuais no país. Amara explica que a sociedade até hoje entende o ofício como luxuoso, quando a verdade é o completo oposto.
“A prostituição em que estão inseridas as travestis é precária, mal remunerada e coloca nossos corpos em risco. Se fosse uma prostituição que paga R$ 300 por hora, a gente comprava nossa cidadania”, afirma.
Amara explica que existem mecanismos de Estado e culturais que continuam a perpetuar a criminalização e marginalização das trabalhadoras sexuais, intensificando tanto os estigmas sobre o assunto quanto a vulnerabilidade destas trabalhadoras. Apesar de não ser mais na prostituição, Amara é uma das expoentes do putativismo, que cobra por direitos para trabalhadoras sexuais e regulamentação dos espaços de trabalho e das profissionais.
Enquanto isso não acontece, Amara explica que a prostituição será um tema recorrente abordado por ela. “Eu quero que a prostituição seja um tema presente na minha obra inteira e nas daqueles que vão escrever mais para frente. Se eu estou aqui hoje é porque lá atrás, gerações de travestis pagaram esse preço. A prostituição é uma trincheira numa guerra travada contra nós. Construímos essa trincheira de resistência, mas é da guerra que estamos falando”, diz.
Para falar sobre essas preocupações, Amara relata situações comuns para as travestis nesta linha de trabalho, como clientes que se recusam a usar o preservativo até os que procuram não olhar para os seus olhos, apenas para o órgão genital.
“As pessoas têm pouca intimidade e contato com o que se vive quando se é travesti. Os poemas ajudam um pouco a perceber que o monólogo não exagera em absolutamente nada. São coisas concretas e muito recorrentes na cultura travesti”, afirma a escritora. A mesma sociedade que Amara satiriza em seu monólogo é a mesma que ela convida para ver a realidade pelos olhos de uma travesti.
Antes da transição
Os escritos foram feitos em um espaço de tempo de 15 anos. Alguns dos poemas foram realizados antes da transição de gênero da autora. “Em alguns desses textos eu ainda não me entendia como trans, mas eu já tinha me relacionado com pessoas trans e travestis e refletia sobre isso nos poemas”, diz Amara ao iG Queer.
Quando lê o que produziu lá trás, a escritora vê que seus textos refletem uma maneira de ser, de sentir e de se expressar muito diferentes da que tem agora; porém com a mesma ironia e deboche para falar, por exemplo, sobre parte da clientela destratava a ela e suas companheiras.
No geral, seus textos antes da transição falavam de seu amor pelas travestis. “Era uma exaltação daquela figura que, para mim, significava algo transgressor. Eu não estava pronta para me ver como uma travesti, então projetava isso sobre essas pessoas com quem me relacionava”, afirma.
Por outro lado, ela reconhece que alguns termos e descrições podem causar espanto, já que algumas palavras usadas não são mais tão aceitáveis assim no mundo atual. A escritora até pensou em revisar as expressões para acompanhar as mudanças cunhadas pela militância, mas deixou para lá.
“Alguns poemas tocam em coisas muito delicadas que quis manter como registro de um percurso da história. Quis meter algumas coisas incômodas mesmo”, diz. Alguns desses momentos, ela explica, são descrições ao órgão genital, por exemplo, algo que hoje é irrelevante para a comunidade trans.
Além da temporalidade, Amara achou importante manter essas falas como reflexo de sua maneira de pensar antes da transição de gênero. “Depois que você passa a se entender como travesti, vive essa objetificação do seu corpo e sobre seu sexo e começa a pensar nas coisas de uma forma um pouco diferente”, afirma.
Por mais que algumas falas possam ser consideradas “problemáticas” nos dias de hoje, elas foram muito importantes nos anos 2000. “Esses poemas foram escritos em 2005, uma época em que não existiam poemas como esses pensando a realidade travesti”, afirma. Esse fato torna importante a discussão e a visibilidade desses textos.
Falar em segredo
Para incorporar a diversidade das vivências trans e travestis do Brasil e do mundo, Amara usa dialetos empregados em todas as regiões do país e em países europeus como França, Espanha e Itália, locais no exterior onde a comunidade está mais presente.
No entanto, o pajubá é quem ganha o maior espaço entre as páginas. O dialeto surgido do iorubá, dentro das religiões de matriz africana e incorporado pelas comunidades travestis da migração, é o que concebe o dialeto da comunidade T no Brasil. “No iorubá, pajubá significa segredo. Então quando a gente fala ‘vamos falar em pajubá’, significa 'vamos falar sem que ninguém mais entenda’. Nós estamos perdendo a noção do que essa palavra significa”, explica.
Essa mistura de dialetos, idiomas e expressões no monólogo tem como objetivo retratar, com o máximo de detalhes possíveis, a multiplicidade das histórias de pessoas trans e travestis.
“Só nessa mistura eu já conto uma história. Quero que as pessoas se deem conta de que a gente é poliglota. Aprendemos um monte de idiomas. O que vocês estão aí penando para aprender, a gente fala tranquilamente”. Dessa maneira, Amara explica que é possível mostrar a força, a complexidade e a riqueza dos saberes de travestis.
A princípio, a leitura pode parecer confusa e muito mais difícil do que parece para quem não está habituado com o vocabulário — algo que, para Amara, é um ótimo sinal. Por meio da estranheza, ela instiga que leitores reconheçam que não sabem do que o monólogo se trata e se permitam a ir atrás das informações para compreender a comunidade.
“Quero abrir brechas na sociedade para que nossos saberes sejam legitimados, reconhecidos e que a gente possa ocupar a sociedade. O estranhamento é bom justamente por ser algo novo e a pessoa ter de ir atrás. Quero que as pessoas sintam prazer em reconhecer que ela não conseguiu compreender tudo e se sinta a vontade de descobrir mais.”
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