Você consegue passar na seleção para emprego, quer trabalhar, se desenvolver e logo percebe que foi parar lá “apesar” de ser uma pessoa LGBTI+. Saiu do armário para o chefe e colegas de trabalho, mas a empresa não saiu do armário para reconhecer que você existe e tem demandas específicas. Fala de plano de saúde para casais do mesmo sexo, nome social, licença parental e vê que uma andorinha sozinha não faz verão.
Há empresas que ainda enxergam demandas como um problema. Há outras que entendem demandas como fonte de inovação, aprimoramento ou transformação de políticas, processos, procedimentos, posturas, paredes etc. Estas empresas costumam querer dar voz às pessoas para que falem, para que possam sugerir mudanças e celebrar junto a festa da diversidade, nem que seja só em maio e junho.
Foi assim que surgiram os grupos de afinidade lá pelos anos 1990, reunindo as vozes isoladas em um lugar onde as pessoas com determinada característica fora dos padrões vigentes iriam trocar experiências sobre suas realidades (networking) e ampliar a troca com base na experiência de outros colegas e até de outras empresas (benchmark). Há grupos que vão além e efetivamente conseguem propor um plano de ação com procedimentos a serem adotados pela empresa (guidelines).
Isso de ter um grupo para chamar de seu evoluiu ao longo dos anos. Há um estudo da consultoria BCG (Boston Consulting Group) que faz um alerta sobre as novas gerações e a importância de rever o papel dos grupos de afinidade. É o estudo de 2020, intitulado “A new LGBTQ workforce has arrived – inclusive cultures must follow” . Traduzindo livremente, é algo como “uma nova força de trabalho LGBTQ chegou e uma cultura inclusiva precisa considerar isso”.
Nos anos 1990, os homens gays se destacavam e tinham mais facilidade para organizar e liderar os grupos de afinidade, apresentar reinvindicações ligadas a benefícios, não-discriminação, não retaliação e práticas de recrutamento e seleção. Era como dizer um grande não à discriminação, mas isso não é suficiente para a criação de ambientes de trabalho inclusivos. Não basta dizer não à discriminação, é preciso dizer sim à diversidade . Os grupos de afinidade LGBTI+ no Brasil estão vivendo exatamente esses diferentes momentos desde que foram criados aqui no final dessa década.
As empresas americanas influenciaram a nossa criação local de grupos e essa fase do “não à discriminação” pode ser caracterizada por grupos que lá chamavam de ERG (Employee Resource Groups), ou seja, grupos de empregados(as) que buscam contribuir para um ambiente de trabalho que não discrimina.
O tema evoluiu nos EUA para os BRG (Business Resource Groups), grupos que olham o negócio, as relações da empresa com todos os seus públicos e as oportunidades para inserir o respeito e promoção dos direitos LGBTI+ na maneira de ser, fazer e se relacionar. Por aqui, alguns poucos grupos caminharam para isso. Ainda assim, falta essa mobilização para a transformação do todo e a criação de um ambiente de trabalho e relacionamentos, produtos, serviços, atendimento, comunicação e outras interfaces da empresa com seus públicos que efetivamente considerem pessoas LGBTI+ em seu cotidiano.
Por que levantar a bandeira LGBTI+ na empresa? É para nos proteger, erradicar a discriminação que sofremos, mas é também para transformar o todo, para trabalhar em uma empresa que considere pessoas LGBTI+ na afirmação cotidiana de sua identidade, valores e princípios , bem como em seu planejamento estratégico. Já foi o tempo em que diziam que era tema da vida íntima. Estamos falando de cidadania, direitos iguais, uma empresa e uma sociedade melhores por serem inclusivas da diversidade sexual e de gênero.
O alerta que o estudo do BCG em 2020, de olho na realidade americana, é que as pessoas LGBTI+ mais jovens são muito mais diversas do que nos anos 1990. Há uma presença maior de mulheres, de pessoas trans e de pessoas negras, além de formas diferentes de se pensar e se apresentar como pessoa LGBTI+. É a influência da visão queer tornando as identidades menos relevantes do que a afirmação de que são pessoas com características diversas, fronteiras menos marcadas, ou seja, a afirmação de que somos isso e aquilo e muito mais.
As pessoas mais jovens já não querem ter que escolher um grupo de afinidade centrado em uma característica porque se percebem de forma menos rígida em relação à sua identidade, ou melhor, identidades. Questionam o porquê de não poder participar de outros grupos ao mesmo tempo ou porque os grupos de mulheres, pessoas negras, pessoas com deficiência e de gerações, os mais comuns nas empresas, não dialogam e trabalham juntos. Faz pensar em um único grupo de afinidade com o papel de troca de experiências, conhecimento sobre o que outras pessoas e empresas fazem e de produção de sugestões para aprimorar a qualidade das relações não apenas no ambiente de trabalho, mas com todos os públicos ou stakeholders.
Se você está vivendo esse momento de transição nessas empresas mais engajadas, já deve ter percebido que a estratégia de duas décadas atrás ainda se impõe e precisa ser urgentemente revista para o bem de todo mundo. Já é uma grande inovação que a empresa tenha um grupo de afinidade LGBTI+, mas observe algumas questões:
- Os homens gays ainda são os que lideram, têm voz e representam o tema na empresa e fora dela?
- O grupo possui pessoas aliadas ou apenas pode participar quem é LGBTI+?
- Há pessoas trans na empresa e com participação ativa no grupo?
- Há pessoas negras?
- As pessoas mais jovens participam?
- O grupo possui propostas e dialoga com todas as áreas da empresa para apresentar seu plano de ação?
- Há alguém da alta liderança, presidência ou diretoria, que atua como interlocutor do grupo junto à empresa e suas diferentes áreas de atuação?
- O que o grupo propõe é produzido em conjunto ou considerando as questões de gênero, raça, deficiência, gerações, entre outros aspectos?
Se você ainda sonha em entrar em uma empresa que respeita e promove direitos humanos de pessoas LGBTI+, pense nestas questões e encontre uma forma de contribuir com esse momento de reinvenção dos grupos de afinidade. A ideia de interseccionalidade ficou mais forte para afirmar que somos mais do que uma de nossas características, por mais que ela fale alto num mundo ainda preso a um padrão dominante. A cultura inclusiva – de gente, histórias de vida, perspectivas, expectativas, uma pluralidade de características, demandas e soluções – é o melhor investimento que uma empresa e suas pessoas podem fazer para vivenciar as transformações do século 21.
Se você está distante dessa realidade, sendo uma pessoa LGBTI+ ou aliada, solidária, comprometida com práticas inclusivas na sociedade, junte-se a colegas para ajudar seu empregador a ter uma empresa melhor para o mundo onde quer existir e se desenvolver. Não deu? Mude de emprego. No Brasil, aliás, mais de 6 milhões de pessoas pediram demissão no último ano (maio de 2021 a maio de 2022), o que é espantoso frente ao desemprego alto e à crise econômica que estamos vivendo. Quem são essas pessoas? Por que deixaram as empresas? O que estão buscando? Seja como for, estão indicando que as empresas precisam se reinventar para atrair e manter as pessoas que lhes interessam e que não se interessam mais por elas.
Grupos ou grupo de afinidade único, com todas as realidades presentes e dialogando sobre a vida, a vida como ela é, parece ser um bom espaço para acelerar as transformações que precisamos ver agora e não daqui a 30 anos.
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