No primeiro turno das eleições deste ano tivemos ao todo 18 novos políticos assumidamente LGBTQIAP+ eleitos para o Poder Legislativo - resultado histórico para a população queer, especialmente para pessoas trans, travestis e negras. As 319 candidaturas LGBT+ ao Legislativo, que se cadastraram na plataforma da organização VoteLGBT, receberam um total de 3.494.037 votos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral - outro número histórico.
Entre as candidaturas eleitas está a de Carolina Iara, agora codeputada estadual pelo PSOL/SP. A parlamentar traz consigo uma vitória importante para a representatividade LGBTQIAP+ no Congresso Brasileiro: ela é a primeira deputada estadual intersexo do Brasil e da América Latina .
Nesta quarta-feira (26) é comemorado o Dia Internacional da Visibilidade Intersexo , que busca trazer atenção para a importância de debater o tema da intersexualidade , que diz respeito às pessoas que desenvolvem características sexuais que não se encaixam nos conceitos de sexo feminino ou sexo masculino.
Umas das maiores agressões que essa população é submetida são as cirurgias mutiladoras que tentam adequar as genitais dentro do espectro binário de masculino ou feminino, geralmente ocorridas durante a infância, quando a pessoa não tem capacidade de decidir pelo procedimento ou não. Carolina conta que foi submetida a três dessas cirurgias, que deixaram marcas até hoje, tanto físicas quanto psicológicas.
“ Existem 48 tipos de intersexualidade - que pode ser hormonal, cromossômica, corporal ou genital. No meu caso, ela acontece de forma genital e hormonal. Passei por três grandes cirurgias na infância, do zero aos 12 anos, e elas tiveram um grande impacto na minha vida, gerando um grande trauma”, afirma a parlamentar.
Ela explica que desde pequena sempre se enxergou como uma mulher e que seu corpo foi se ‘afeminando’
com o passar dos anos, mas a medicina optou em defini-la como do gênero masculino.
“A medicina escolheu, logo quando nasci, que eu deveria ser do sexo masculino porque o órgão mais proeminente era o peniano. No entanto, as cirurgias que eles fizeram para esconder minha ambiguidade genital, e depois para corrigir os erros médicos durante essas cirurgias, não surtiram efeito no sentido de identidade sexual, porque meu corpo continuou se feminizando”, conta Carolina.
A codeputada revela que sofreu muita dor física a partir desses procedimentos mutiladores, como ela os define, além de dor emocional, violência racista médica, procedimentos sem anestesia e xingamentos quando ela chorava.
“Houve um médico que chegou a afirmar que ele estava produzindo um negão e que negão não podia chorar, um homem não podia chorar. Então, por que eu estava chorando diante de um procedimento sem anestesia? Ouvi isso de um médico branco dentro do Hospital Santa Marcelina, em São Paulo, nos anos de 1990. Repito sempre: ‘meu grande sonho, minha grande pauta, é que nenhuma pessoa intersexo passe por aquilo que eu passei’”, diz.
Além da pauta intersexo
, Carolina, que foi eleita por um mandato coletivo da Bancada Feminista do seu partido, também luta pela visibilidade trans e travesti - identidade com a qual se identifica hoje em dia, aos 29 anos -, a pauta racial, e das pessoas que vivem com HIV. A codeputada contraiu o vírus quando precisou se prostituir na adolescência.
Segundo turno e parlamento conservador: ameaça às pautas LGBT+
Diante da ameaça da reeleição de um governo federal assumidamente LGBTfóbico, que pode ocorrer no segundo turno do pleito presidencial deste ano, previsto para o próximo domingo, a parlamentar acredita que há chances efetivas para que o oponente, o ex-presidente Lula, publicamente pró-LGBT+, seja eleito.
“O processo eleitoral está em aberto, então é plenamente possível, e eu diria até provável, que a gente consiga eleger o Lula. Acredito que é importante, não só a minha eleição pela bancada feminista do PSOL, como codeputada, mas também a eleição de várias LGBTQIA+, sobretudo de mulheres trans nesse país que mais mata travestis e transsexuais em números absolutos”, afirma Carolina, que acredita que este recorde de eleições ajude a desfazer os estigmas relacionados à população queer.
“Traz mais visibilidade para a pauta LGBTQIA+ e amplia as possibilidades de políticas públicas necessárias para essa população, além de combater os estigmas que são totalmente falsos. Mostra que temos toda a capacidade de ocupar cargos institucionais, de liderança e políticos”, afirma a codeputada, que chama a atenção para o parlamento eleito no primeiro turno, que tem em sua maioria políticos conservadores.
“Mesmo o Bolsonaro perdendo temos um Congresso Nacional conservador, o que vai nos fazer ter enfrentamento direto, como parlamentares LGBTQIA+ mais do campo progressista. Isso tudo nos traz uma responsabilidade muito grande”, finaliza.
Associação Brasileira de Intersexo
Mesmo que pouco debatida amplamente na sociedade, e até mesmo dentro da comunidade LGBTQIAP+, o grupo intersexo é organizado e representado por instituições, como a Associação Brasileira de Intersexo (Abrai). A psicóloga, psicanalista, psicopedagoga e sexóloga Thaís Emília é presidente da associação e explica que a origem da Abrai se dá a partir de ativistas do movimento intersexo que se articulam desde, pelo menos, o ano de 2014.
“A origem da Abrai vem de militantes intersexo que desde 2014 começaram a se reunir, e se encontrarem em congressos de sexualidade. A gente consegue resgatar a história do movimento a partir do surgimento da militância de ativistas como Eris Haru, Olívia Denardi e Dionne Freitas, que criaram a página ‘Visibilidade Intersexo’ no Facebook”, explica.
Outro fator que motivou Thaís a se engajar na causa e fundar a Abrai em 2018, que só conseguiu se regulamentar em 2020, foi ter um filho intersexo. Ela soube da sexualidade de Jacob já na gravidez.
“Em 2016, quando eu fiquei grávida do meu filho, no pré-natal já fiquei sabendo sobre a intersexualidade dele, mas não pelo termo correto e sim por uma terminologia que os médicos utilizavam chamada ‘genital ambíguo’ ou ‘genital diferenciado’. Eu já estudava sexualidade na época e a condição não foi uma questão para mim, mas ela se torna um problema quando meu bebê nasce em uma sociedade que não o aceita, simplesmente porque ele não pode ter uma simples certidão de nascimento por não ser menino e nem menina”, conta a presidente, que elenca os vários direitos violados às pessoas intersexo.
“Ele não teve direito à certidão de nascimento e ao cartão SUS. Minha licença maternidade foi negada porque meu filho não existia perante à lei. Com 15 dias eu já tinha retornado ao trabalho. Na época do nascimento eu estava no doutorado e por ele ser uma criança cardíaca, eu o levava para as aulas. A turma se sensibilizou e levamos a pauta da violação dos documentos de pessoas intersexo e a indicação de cirurgias precoces para uma conferência”, diz.
Com o decorrer do tempo, Thaís conheceu ativistas importantes da causa que não conseguiam acessar espaços, como o da academia e do debate teórico que ela, enquanto pesquisadora, acessava. Ela afirma que recebeu muito acolhimento dessas pessoas, principalmente quando seu filho Jacob morreu, em 2018. Diante do luto, ela viu a necessidade de organizar um trabalho em prol das pessoas intersexo, o que culminou na Abrai.
Ao longo desses dois anos efetivos de trabalho, desde a regulamentação da associação, a presidente elenca diversas conquistas que a Abrai conseguiu alcançar até o momento.
“O primeiro avanço que conseguimos foi desburocratizar o registro civil dos bebês. Depois conseguimos elaborar um documento informativo sobre bebês intersexo
, em conjunto com a Secretaria de Saúde de São Paulo, além da nota técnica do Conselho Regional de Psicologia
com orientações sobre como os profissionais de saúde mental devem atender as pessoas intersexo”, finaliza.
Ativismo intersexo
As redes sociais são uma poderosa ferramenta para propagar informação sobre a intersexualidade, que ainda caminha de forma lenta para ganhar o debate em nível nacional, conforme sua importância. Uma das pessoas que utiliza essas plataformas é o ativista intersexo João Marcus, de 26 anos.
Ele explica que, com o passar dos anos, construiu um empoderamento sobre seu corpo intersexo e que tenta passar essa mensagem para quem acompanha seu trabalho pela internet: “Me tornei uma pessoa empoderada a partir do momento que eu escolhi viver as minhas experiências de vida de cabeça aberta sem ter preconceito comigo mesmo”.
João conta que durante toda a sua vida teve medo de não ser aceito pelas pessoas, principalmente por se identificar com o gênero masculino, mas acreditar não ter um corpo que as pessoas entendam como masculino.
“Acredito que todos nós buscamos ser aceitos na sociedade, mas se tratando da minha condição sexual parecia ser distante fazer algumas coisas que aparentemente é normal para qualquer garoto, como por exemplo, usar uma sunga em um ambiente público, como uma praia ou um clube. Situações tão simples como essas foram um tabu durante toda a minha trajetória de vida, porque sendo um homem intersexo sem muitas características masculinas, me fez acreditar que eu não seria aceito por completo pelas pessoas”, afirma.
O produtor de conteúdo explica que, assim como a codeputada Carolina Iara, também foi exposto a três cirurgias mutiladoras de imposição de gênero durante sua infância. Ele considera que esteticamente os procedimentos foram positivos para sua vida sexual, contudo, eles geraram traumas emocionais.
“Houve períodos de dúvidas no meu subconsciente sobre o que realmente eu era, pois o meu corpo não se desenvolveu igual ao dos outros garotos. Na adolescência fui submetido a usar hormônios para conseguir ter mais traços masculinos. Passei por um processo de aceitação até descobrir de fato a minha intersexualidade”, explica João, que complementa: “Não sou a favor das cirurgias de forma tão precoce”.
Autoestima da pessoa intersexo
Um dos pontos levantados pelo ativista é a importância da pessoa intersexo desenvolver uma autoestima sólida. Para debater o assunto, ele compartilha com seus seguidores sua própria experiência de autoconhecimento e aceitação, em que houve diversos momentos de LGBTfobia.
“Sempre fui taxado como uma pessoa anormal por ter vindo ao mundo com uma genitália ambígua. Teve uma fase da minha vida que fui vítima de preconceito dentro do meu próprio laço familiar, quando uma tia chegou a proibir um primo de usar uma vestimenta pessoal que não me servia porque ela acreditava que seria algo contagioso e iria ser transmitido a ele”, conta.
O ativista conclui dizendo que percebeu que perdeu boa parte de sua vida tentando se encaixar em um padrão que, para ele, “hoje não tem muita importância”.
“Sendo uma pessoa intersexo, pansexual e ativista LGBTQIA+, desenvolvi o meu amor próprio com todo o reflexo da minha história de vida. Faço da internet a minha rede de apoio em que ajudo vidas compartilhando a minha história que acredito ser de superação. Elevo a autoestima das pessoas fazendo tudo aquilo que é impossível para a minha comunidade”, finaliza.
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