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Igrejas cristãs acolhem LGBTQI+ e questionam leitura bíblica opressiva

Ser LGBTQI+ e cristão é possível por meio das igrejas que defendem o evangelho inclusivo. “A homoafetividade nunca foi condenada”, defende pastor

Foto: Reprodução/Instagram
Igreja inclusiva ICM-Séforas, em São Paulo

“Quando eu assumi minha bissexualidade, eu tive mais crítica, mais ataque e mais ameaça do que qualquer outra coisa que já tenha acontecido comigo na vida, eu recebi a carta de igrejas que jejuavam para eu morrer, ser estuprado, ter câncer, para eu definhar. As pessoas me olhavam na rua na época e cuspiam”, divide Felipe Heiderich, pastor que tornou pública sua orientação sexual em 2021. 

Felipe, porém, não é o único atacado por sua orientação sexual ou identidade de gênero nos espaços que compartilham a palavra de Deus. Ele argumenta que o ataque se deu, sobretudo por já ocupar um posto de liderança dentro da igreja que frequentava. 

“Por ter estudado os originais da Bíblia em grego e hebraico e de, durante muito tempo, ser uma fonte confiável para interpretação das escrituras, quando eu digo: ‘Olha não é bem assim, a Bíblia não condena, não é pecado, não vai para o inferno’, eu me torno o que eles chamaram durante muito tempo de 'a grande heresia'”. 

Assim como Felipe, o pastor Chlisman Toniazzo também sofreu com a condenação cristã e, aos 19 anos, foi expulso de casa por ser gay. Por crescer em uma família bastante religiosa, sempre teve muito contato com a igreja e sempre ia aos cultos desde a infância.

No processo de não aceitar sua sexualidade para continuar na igreja que frequentava, chegou a se submeter a terapias de “cura gay”, jejuava para Deus curá-lo, e até entrou em um relacionamento heterossexual. No fim, percebeu que não podia mudar quem era, foi expulso da igreja e abandonado pela família. Desamparado e com apoio de alguns amigos, decidiu abrir uma igreja para acolher pessoas LGBTQIAPN+

“Cheguei a buscar em outras religiões uma espiritualidade que achava que não conseguiria conciliar em uma igreja cristã, mas eu ainda não me sentia completo nelas. Foi quando, em um dia aleatório, vi na TV uma igreja fundava por um casal de pastores gays. Quando vi, pensei ‘isso é coisa do diabo, não existe isso’. Imagina eu, de uma cidade do interior de Santa Catarina, sabendo disso. Mas ao longo do programa eles deram explicações bastante coerentes e, assim que acabou, fui estudar mais sobre e percebi que realmente dava para conciliar minha homossexualidade com a minha fé cristã”, explica Chlisman, fundador da Arena Church em Brasília. 

O casal de pastores que Chlisman se referia era Marcos Gladstone e Fábio Inácio, que estão à frente da Igreja Cristã Contemporânea, fundada em 2006 no Rio de Janeiro. 

Marcos, assim como muitos outros, sentiu a necessidade de saber como alinhar sua fé com sua orientação sexual, algo que não sabia como fazer até ter contato com o estudo da teologia inclusiva quando viajou aos Estdos Unidos. “Fiz como muitos cristãos LGBTQIA+, comecei a namorar uma jovem da igreja pensando que Deus fosse me ‘curar’ da homossexualidade”. Ele ficou noivo, mas não chegou a se casar com ela. 

Jacqueline Chanel, por sua vez, sofreu mais com a igreja cristã devido à sua identidade de gênero, pois ela é uma mulher transgênero. Abandonada na porta da igreja pela mãe aos 13, ela seguiu na igreja até os 20 anos. Quando o pastor à frente do espaço morreu, os religiosos passaram a condenar ela. “Passei a conhecer o ódio e o desprezo que os meus irmãos de fé desferiam contra mim. Passei a conhecer o fundamentalismo religioso”. Anos mais tarde, ela fundaria a ICM-Séforas na cidade de São Paulo, igreja que acolhe pessoas LGBT+, sobretudo pessoas trans e travestis, e tem ela como pastora.  

O revendo Christiano Valério, coordenador Geral das Igrejas da Comunidade Metropolitana no Brasil (ICM), soma o debate afirmando que, para as pessoas que se descobrem LGBTs em comunidades cristãs fundamentalistas, as tentativas de “curar sua atração” pelo mesmo sexo podem ser mais traumáticas do que uma rejeição total. 

“É tudo muito perverso, palavras de ódio e rejeição são operadas com voz mansa com uma capa de ‘amorosidade’, isso vai sendo interiorizado e o ódio e a vergonha por si é instalado. Não à toa, pessoas LGBTs que cresceram em lares cristãos fundamentalistas sofrem tanto com homofobia  internalizada, autossabotagem e outros transtornos”. 


Negados pelas igrejas cristãs tradicionais 

“Aceitar pessoas LGBTI+ desloca muito o paradigma principal da maioria das igrejas que é o controle do corpo. Permitir a possibilidade de um corpo que não segue o que a igreja determina, coloca em xeque muitas ideias sobre as instituições e seus mecanismos de controle”, argumenta Bob Luiz Botelho, fundador do Evangélicxs Pela Diversidade e pastor da Iglesia Antigua De Las Américas. 

Para Bob, as igrejas tradicionais aceitarem casamentos homoafetivos é aceitar, por exemplo, que não há uma hierarquia de gênero entre o que se prega de "mulher submissa e homem controlador", e isso desestabilizaria a estrutura. “No meu casamento, por exemplo, nem eu, nem meu esposo fazemos um ‘papel de mulher’. Condenar pessoas LGBTI+ é uma cultura institucional que garante a manutenção de toda uma estrutura que faz com que a instituição da igreja se mantenha de pé e com dinheiro”. 

Em sua ótica, ele ainda completa dizendo que aceitar pessoas LGBTI+ na igreja é aceitar que não se tenha mais privação de relação íntima antes do casamento, pois o que enuncia o pecado da relação sexual antes do matrimônio é a penetração entre genitais distintas.

“Aceitar pessoas intersexo  na igreja é assumir que Deus não fez ‘apenas homem e mulher’, como se distorcem nos textos bíblicos, porque corpos intersexo passam a ser celebrados como expressão da criatividade divina. Aceitar pessoas trans na igreja é dizer que ninguém tem controle ou sabe o ‘plano de Deus’ para vida de uma criança, porque ela não precisa corresponder a nenhuma expectativa criada sobre ela, nem a do gênero atribuído”, completa o reverendo. 

Jesus Cristo, o personagem central da fé cristã era um subversivo, estava em oposição ao sistema religioso de dominação e era severamente criticado por andar com os pecadores e perseguido até ser assassinado. E muitos esquecem disso. 

Má interpretação da Bíblia, traduções distorcidas e outros meios são usados para manipular a grande parte dos religiosos, que projetam os discursos que ouvem sem questionar sua veracidade. A condenação de pessoas LGBTQI+ é perpetuada entre dois grupos distinto: o primeiro é de quem reproduz interpretações feitas por outras pessoas apenas porque aprendeu que era assim, significando a maioria massiva das igrejas evangélicas no Brasil. Já outro, é a pequena quantidade de lideranças que operam a interpretação da Bíblia para atacar mulheres e LGBTI+ de maneira intencional. 

Marcos, pastor da Igreja Cristã Contemporânea, conta que por volta do ano 1433 começaram a inserir modificações nos textos bíblicos que são usados contra os LGBTQIA+. 

“Em 1 Coríntios 6: 9 se inseriu sodomita e ‘efeminados’ como aqueles que não herdariam o reino dos céus, também teologias começaram a se apresentar mudando a interpretação do pecado de Sodoma que deixou de ser o abuso sexual e passou a ser todo ato afetivo entre pessoas do mesmo sexo. Começam os escritos teológicos empregando o termo, por exemplo, ‘sodomia’ como quem tinha relações com pessoas iguais”, afirma. 

“O termo homossexual simplesmente não existia até 1892, o conceito nem a palavra para pessoas com atração exclusiva pelo mesmo sexo existia antes do final do século 19. Nenhum argumento contra diversidade sexual sobrevive a uma hermenêutica alinhada a conhecimento científico”, adiciona. 

Felipe retoma e diz que, ao longo da história, a Bíblia também já foi usada para condenar as mulheres, fazendo com que elas fossem queimadas na Idade Média, os negros, na época da escravidão, e hoje, as pessoas LGBTQIAP+.

“Satanás é um inimigo utópico, as pessoas não veem Satanás, e as igrejas precisam de um inimigo real para poder bater de frente e dizer se você não frequentar aqui, a sua família será destruída”. 


Ser LGBTQI+ e cristão é possível 

A Igreja Cristã Contemporânea é um exemplo, embora tenha seus dogmas da fé cristã, a diferença em termos práticos das demais igrejas cristãs é que entendem que a fé e a orientação sexual podem caminhar juntas. “Todo cristão deve ter uma vida piedosa independentemente de orientação sexual, não é difícil caminhar com Jesus Cristo, um privilégio incomparável. Quanto aos relacionamentos, por exemplo, cremos no amor entre iguais, que deve ser vivido dentro de um relacionamento monogâmico de fidelidade”, evoca Marcos. 

Andréa Gomes, pastora auxiliar da igreja Comunidade Cidade de Refúgio, fundada em 2011 pelo casal de pastoras Lanna Holder e Rosania Rocha, em São Paulo, usa versículos para exemplificar a possibilidade. Para ela, o primeiro passo é amar sua identidade, crendo que foi Deus que com amor te criou (Salmos 139:16); o segundo passo é estar em locais e com pessoas que irão respeitar a sua identidade (Isaías 32:18). Por fim, o terceiro passo é buscar todos os dias viver uma vida abundante (João 10:10). 

Felipe, por outro lado, argumenta que a palavra de Deus sempre condenará a promiscuidade, o adultério a prostituição. Porém, ele enfatiza que o fato dela condenar essas práticas, não significa que ela defenda a exclusão das pessoas.  

“A palavra de Deus afirma a todo momento que precisa existir um lugar de apoio e esse lugar de apoio deveria ser a igreja. Se você foi expulso de casa por ser LGBT, que o lugar de apoio não fosse a rua, mas fosse a igreja. Muitas pessoas se prostituem, principalmente pessoas trans e travestis, porque elas não têm o apoio em casa e não têm o apoio da igreja. Mas, a homoafetividade, nunca foi condenada”. 

Christiano da ICM situa que a palavra “amado” aparece 61 vezes no Novo Testamento, e em seis delas é usada para descrever como Deus se sente em relação a Jesus, e as outras 55 vezes é dirigida a toda diversidade humana. “Todos e todas nós somos profundamente amados por Deus. Essa é nossa identidade central: Deus é amor e nós somos prontamente amados de Deus”. 

Para ele, uma pessoa LGBT pode viver plenamente sua espiritualidade livremente sem se submeter ou fazer adesão acrítica a uma igreja, ou comunidade religiosa. “O conselho de Paulo diz isso: ‘Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão’, de Gálatas 5:1”, exemplifica. 

A importância de um evangelho e igrejas inclusivas 

“Muitos dos nossos membros foram vistos como anormais, sofreram agressões físicas e/ou verbais, além de muito preconceito, ódio e rejeição. Temos visto como igreja, famílias LGBTQIAPN+ sendo restauradas e constituídas. Sendo que um dia, essas famílias achavam que seria algo impossível de acontecer”, afirma a pastora Andréa. 

Arena Church, Comunidade Cidade de Refúgio, Igreja Cristã Contemporânea, ICM-Séforas, Evangélicxs pela Diversidade, as Igrejas da Comunidade Metropolitana (ICM), Igreja Apostólica Novo Templo Internacional (Ianti) e tantas nascem com o objetivo de acolher, modificar e libertar concepções negativas sobre pessoas LGBT+ e como a fé cristã pode ser alinhada com suas vidas. 

“Quem condena é o homem e nunca Deus. Esses espaços levam a palavra da verdade, os tirando de toda mentira que só serviu para os trazer dor”, completa Andréa. 

As igrejas tradicionais de prática fundamentalista impactam a vida dessas pessoas tão fortemente que os LGBT+ passam a acreditar que Deus não os ama, que foram escolhidos para sofrer e entre outros pensamentos destrutivos. “Saem da igreja, mas o pior é que saem da presença de Deus, pois se acham indignos, inferiores ou odiados por aquele que o criou: Deus”, insere. 

Jacqueline pontua que ainda existe a necessidade de acolhimento e inclusão da comunidade LGBTQIAP+ nas igrejas, especialmente para a comunidade de travestis e transgêneros, porque é o recorte mais sensível dentro da comunidade e, porque  o Brasil ainda é o país que mais mata a população T.

“Deus não faz acepção de pessoas, isso é dito e as pessoas parecem não levar isso em consideração. A Arena Church abraça todas as pessoas, sejam elas LGBT+ ou não. A única coisa que buscamos é estar na presença de Deus”, defende Chlisman.

“Comunidades religiosas progressistas e afirmativas são espaços onde é possível ser e desenvolver uma relação afetiva com suas próprias identidades. É compreender que não somos objetos da religião, somos sujeitos dela. Tudo o que se falou sobre Deus foi um ser humano que disse”, finaliza Christiano.

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** Julio Cesar Ferreira é estudante de Jornalismo na PUC-SP. Venceu o 13.º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão com a pauta “Brasil sob a fumaça da desinformação”. Em seus interesses estão Diretos Humanos, Cultura, Moda, Política, Cultura Pop e Entretenimento. Enquanto estagiário no iG, já passou pelas editorias de Último Segundo/Saúde, Delas/Receitas, e atualmente está em Queer/Pet/Turismo.