Visibilidade intersexo: falta de políticas públicas ainda é um grande obstáculo
Entre as violências sofridas, pode-se destacar as cirurgias de adequação, normalmente feitas sem o consentimento da pessoa intersexo
“Durante boa parte da minha vida, vivi preso dentro do meu próprio corpo com muitas incógnitas. Hoje posso ajudar outras pessoas e, com esse meu novo legado, vou ensinar aos outros que ser diferente não me faz menor do que ninguém”, declara João Marcus Leite
, intersexo e produtor de conteúdo nas redes sociais sobre o tema. Desde o dia 26 de outubro de 1996, a data tornou-se o marco da Visibilidade Intersexo no mundo.
O dia e mês remete à primeira demonstração pública que se tem registrada de pessoas intersexo, realizada durante a conferência anual da Academia Americana de Pediatria na cidade de Boston, Estados Unidos. A partir deste momento, também ocorreu a inserção da letra “I” na sigla (LGBTQI) para a inclusão dessa parcela da população nas discussões sobre gênero e sexualidade.
Muitas pessoas ainda não compreendem completamente -- ou nunca tiveram contato -- com o I da sigla, o que faz com que as pessoas intersexo se mantenham atrás de um véu de dúvidas e questionamentos. Thais Emilia
, presidente da ABRAI
(Associação Brasileira de Intersexos), explica quem são essas pessoas e algumas das especificidades que permeiam esta população.
“Pessoas intersexo possuem corpos que não têm uma congruência esperada pela biologia da cultura de sexo em que estamos inseridos. Por exemplo: macho é uma pessoa XY, com glândulas testiculares, pênis, vesícula seminal, próstata e que produz testosterona na puberdade; fêmea é alguém XX, com ovários, útero, vagina, desenvolve as mamas durante a puberdade, etc. Qualquer variação entre macho e fêmea é intersexo”, esclarece.
Thais também chama a atenção para o fato de que o termo correto é “intersexo” e não “intersexual”, pois esta terminação (“-xual”), remete à sexualidade. “Intersexo se refere ao sexo biológico: macho, fêmea, intersexo. Intersexual é errado usar porque seria uma orientação sexual por questão gramatical, como bissexual, heterossexual, homossexual, etc”, pontua.
Ainda de acordo com a presidente da ABRAI, a medicina pontua mais de 40 DDS (Diferenças de Desenvolvimento do Sexo) categorizadas, porém conhecer esses fatores não é o suficiente para compreender o que é uma vivência intersexo e como ela se desenvolverá.
“A pessoa [intersexo] vai vivenciar no corpo dela alterações que façam com que ela sofra intervenções para conserguir se afirmar em um sexo. Por exemplo: tomar testosterona na puberdade porque a pessoa não viriliza naturalmente. Estamos inseridos em uma sociedade que entende o sexo de maneira binária [macho e fêmea], então se estivéssemos em um contexto que rompesse com esse sexo binário, ser intersexo não seria considerado um problema”, diz.
Reconhecer as vidas e os corpos intersexo, além de limitar e extinguir, mesmo que aos poucos, os tabus ao redor desses indivíduos, também contribui para a diminuição das violências sofridas por quem se encaixa na letra I. A psicóloga Suely Poitevin, credenciada da Paraná Clínicas, empresa do Grupo SulAmérica, destaca que muitos conflitos começam dentro das próprias famílias dos bebês intersexo, além, é claro, da incompreensão externa por parte da sociedade como um todo.
“Devido à particularidade, complexidade e abrangência da temática intersexo podemos considerar que uma das violências e exclusões que causam sofrimento advém das diversas falas errôneas, vindas do senso comum e não das Ciências Humana ou Sociais. A violência também está nas famílias nas quais o tema intersexo é um fenômeno real, complexo e com limites inquietantes desde a vida intrauterina do bebê, quando já existe a expectativa da definição de um gênero”, explica.
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A adequação dos corpos intersexo
“Direito à dignidade humana e ter os Direitos Humanos respeitados”, declara Thais Emilia ao ser questionada sobre quais são as principais reivindicações da comunidade intersexo. A presidente da ABRAI se prolonga, pontuando que dentro dessas demandas estão os direitos à integridade física e psíquica, principalmente porque, de acordo com ela, os corpos intersexo não são aceitos pela medicina brasileira atual como algo natural, o que é evidenciado pelas cirurgias de adequação corporal.
“A Resolução do Conselho Federal de Medicina de 2003 entende esses corpos [intersexo] como anômalos e compreende como urgência social que esses corpos sejam adequados, não como uma urgência do indivíduo. Porém, muitas pessoas intersexo que passaram por cirurgias de adequação quando pequenas entendem esses procedimentos como uma mutilação, pois foi retirado um pedaço do corpo delas sem o devido consentimento e às vezes essa pessoa não teve o direito de ser escutada. A reivindicação é essa: o direito de ser reconhecido pela lei como intersexo, para que existam políticas públicas para essas pessoas. A partir do momento que se vê a existência de pessoas intersexo legalmente, elas não precisarão mais passar por esses procedimentos sem consentimento”, declara.
Além das cirurgias de adequação, ou violência sofrida pela população intersexo no momento do registro da certidão de nascimento. Uma determinação do Conselho Nacional de Justiça deste ano passou a valer no país no início de setembro e, de acordo com ela, famílias de crianças intersexo poderiam registrá-las como “sexo indefinido”. Antes da decisão, os cartórios apenas expediam certidões se a criança tivesse sexo definido, porém a escolha do termo (“sexo indefinido”) gerou muitos debates e críticas por não reconhecer o sexo de pessoas intersexo e por ignorá-lo.
Suely Poitevin comenta a importância da certidão de nascimento e chama a atenção para o fato de que muitas pessoas só descobrem que são intersexo durante a adolescência, quando esses corpos não respondem à puberdade como elas esperavam que respondessem, por exemplo.
“Algumas vezes [os bebês intersexo] são registrados com um gênero de acordo com a genitália que nasceram, sem que os pais saibam que são intersexo. Outras vezes o registro de nascimento vem preenchido no campo do sexo como ignorado. A violência e exclusão que atingem a vida pessoal do adolescente intersexo estariam na omissão de informações a seu respeito, pois, além das crises de identidade no período da adolescência tentando buscar respostas para os questionamentos existenciais e culturais, passam também pelo espanto de descobrirem que seus corpos masculinos menstruam, por exemplo. Os adolescentes experimentam também algumas experiências dolorosas diante do desenvolvimento das características reprodutivas ou sexuais que não parecem se encaixar nas diferenças típicas do masculino ou feminino”, elucida.
Como fica o “I” em meio às outras letras?
Thais Emilia pontua a importância de levar em consideração que pessoas intersexo podem fazer parte de outras letras da sigla além do “I”, uma vez que elas podem possuir orientações sexuais e identidades de gênero que fogem da cis-hétero normatividade. “Ser intersexo é uma condição biológica e na própria ABRAI temos pessoas interexo de todas as letras. Eu, por exemplo, sou presidente da ABRAI e sou uma mulher bissexual, então temos mulheres intersexo lésbica, gay, bi, trans, assexual e pansexual. Por se tratar de uma questão biológica, temos essas intersecções”, explica.
Em contrapartida, João Marcus Leite diz que pessoas intersexo sofrem invisibilização dentro da própria comunidade por, entre outros motivos, serem vítimas de forte fetichização que, por sua vez, dá margem para episódios de assédio.
“Infelizmente sofremos preconceito dentro da nossa própria comunidade LGBTQIA+. O nosso corpo se torna alvo de muitas pessoas que nos veem como fetiche sexual, principalmente em aplicativos gays, causando um certo tabu no meio social. Isso nos enfraquece porque quem é vítima desse tipo de assédio se traumatiza por ser um tipo de situação que gera constrangimento. Muitas pessoas preferem se isolar do que se expor nas redes devido ao preconceito que sofre no próprio meio LGBT”, conta.
João Marcus comenta ainda algumas situações pelas quais já passou envolvendo o próprio corpo que o levavam a sentir-se inseguro em determinados espaços e em vestir certos tipos de roupa. “Eu sempre tive receio de frequentar banheiros públicos, ainda mais os masculinos, por receio das pessoas fazerem piadas comigo. Sempre urinei sentado, então para os meus colegas ou outras pessoas isso seria motivo de julgamentos, gerando interfobia. Durante a minha infância tive muitos problemas com isso, me lembro que teve um dia na escola em que eu fiquei segurando para não ir ao banheiro por receio das pessoas me verem urinando sentado e acabei fazendo xixi na roupa. Foi muito frustrante porque os meus colegas fizeram chacotas e riram de mim, foi constrangedor. Pelo fato do meu pênis não ter um tamanho avantajado eu não uso sunga porque é outro fator que sempre mexeu com o meu psicológico, então eu sempre evitei frequentar clubes e piscinas por medo de ser discriminado e passar pelo o que eu já tinha passado quando mais novo”, conta.
Sobre os corpos intersexo e os banheiros, Thais Emilia destaca que em ambientes de trabalho, principalmente em firmas e fábricas, é comum que pessoas intersexo se sintam pouco à vontade nos vestiários. “Algumas pessoas intersexo trabalham em locais com vestiários divididos apenas entre homens e mulheres e se sentem muito constrangidas em tomar banho e trocar de roupa no trabalho por terem um corpo diferente e saberem que isso chama a atenção e pode gerar perguntas”, diz.
A presidente da ABRAI destaca ainda que não existem políticas públicas no país voltadas para a população intersexo, o que deixa esses indivíduos desassistidos dentro das necessidades e demandas delas. Apesar disso, ela também comenta que quando essa discussão é levada para outros ambientes, normalmente por meio de palestras, costuma ser bem recebida.
“Continua-se ignorando todas as violências pelas quais pessoas intersexo passam, incluindo suas mães, que enfrentam uma violência obstétrica muito grande e acabam sendo culpabilizadas pelos médicos nas decisões que eles as induziram a tomar. Isso varia bastante: existem serviços médicos que respeitam e enxergam pessoas intersexo como sujeitos e dão opções para a mãe desse bebê, explicando quando é apenas uma questão estética que não precisa ser corrigida e quando é algo relacionado à saúde e prioriza o cuidado com a pessoa intersexo. Já outros médicos não respeitam os pacientes e nem a a dignidade humana, não explicam o que está acontecendo para as mães e para as famílias e já induzem soluções que acham que serão melhores para aquele indivíduo. A maior parte da sociedade não sabe o que é uma pessoa intersexo, mas quando levamos essa temática para escolas e faculdades, é recebido com muita empatia e choque ao saberem pelo que essas pessoas passam”, conclui.