Famílias lutam para acolher e combater ataques às crianças trans

Thamirys Nunes criou o perfil 'Minha Criança Trans' e lançou livro homônimo para debater o assunto depois que sua filha se assumiu trans antes dos quatro anos

Foto: Reprodução Instagram/@minhacriancatrans 21.07.2022
Thamirys, a filha e o marido.

A população trans é a mais invisibilizada da comunidade queer e este problema se agrava ainda mais quando falamos das crianças e adolescentes trans que, sim, existem. No contexto em que estamos inseridos no momento, em especial em um país como o Brasil, que não lida de forma acolhedora com a comunidade LGBTQIAP+, para as crianças e adolescentes essa discriminação social é ainda mais agravante. 

A sociedade tem mais dificuldade de debater o assunto, quando envolve menores, de forma clara e saúdavel, mesmo que estudos científicos comprovem que a identificação de gênero ocorre em precoce idade.

A pesquisa "Sex-typed preferences in three domains: Do two-year-olds need cognitive variables?" (Preferências tipificadas por sexo em três domínios: As crianças de dois anos precisam de variáveis ​​cognitivas?, em tradução livre), publicada pelo British Journal of Psychology, indica que por volta dos 27 a 30 meses da idade, ou até mais cedo, as crianças parecem ter uma noção rudimentar da identidade de gênero e já conseguem classificar verbalmente seu próprio gênero como menino ou menina.

Isso foi o que aconteceu na família da escritora e ativista pelos direitos trans infantojuvenis Thamirys Nunes, 33. Sua filha, Agatha, hoje com sete anos, expressou sua vontade de transicionar o gênero com menos de quatro anos.

"Desde muito pequena, minha criança demonstrava um grande desconforto com as atividades tipicamente masculinas, brinquedos, roupas e qualquer menção a ela enquanto menino, não gostava e se chateava muito", começa o relato da escritora.

"Só conseguimos compreender a profundidade e importância desse incômodo quando, com três anos e 11 meses de idade, ela começou a verbalizar algumas frases, como: ‘Mamãe se eu morrer hoje, posso nascer uma menina amanhã?’, ‘Mamãe seria tão mais legal se eu tivesse nascido menina, eu seria feliz’, ‘Mamãe me chama de filha só hoje, só para eu ficar feliz’", relata.

A mãe conta que antes da filha se declarar uma pessoa queer, a família não convivia com pessoas LGBT+, o que acendeu um alerta à Thamyris sobre o quanto ela estava inserida em uma bolha não diversa.

“Na nossa família e convívio íntimo de amigos não tínhamos, até então, contato com pessoas LGBT+, então foi um processo entender sobre gênero, sexualidade e, principalmente, compreender como deveríamos deixar isso evoluir para evitar mais sofrimento em nossa criança”, diz.

O primeiro passo foi o atendimento psiclógico, que não foi positivo no início já que logo a família se deparou com a primeira experiência de transfobia.

“Buscamos inicialmente uma psicóloga que foi transfóbica. Ela falou que a culpa era de nós, pais, que não sabíamos educar um filho homem. Depois conseguimos encontrar uma profissional que nos ajudou e acompanhou todo o processo de transição da nossa filha, além do Ambulatório Amigos do Hospital das Clínicas de São Paulo, que nos acolheu também”, explica.

A professora universitária Marcelle Alencar Urquiza, 49, também vem experienciando a jornada de criar uma criança trans: “Quase nada na vida de uma criança, que se diferencie das demais em qualquer aspecto é simples de lidar”, começa a docente que tem uma filha trans de 11 anos.

“A transfobia quando estendida a uma criança, é algo que nem eu como adulta consigo me preparar para lidar. Ainda estamos todos aprendendo sobre essa realidade”, diz Marcelle, que também relata como são as experiências da crianças em lugares públicos.

“Vejo olhares de estranheza quando saio com minha menina trans em todos os lugares. Na escola, por exemplo, alguns professores e alunos acompanharam as mudanças da transição e o surgimento dessa menina, no entanto, foram inúmeros os episódios de bullying desde os seis anos de idade”, afirma a mãe, que traz outros exemplos de dentro do ambiente escolar.

“Ela vive sendo excluída do convívio nas horas de recreio, nos trabalhos em grupo, nas rodas conversas… é uma queixa constante que escuto dela e que traz vários efeitos negativos como ansiedade e medo”, conta.

Redes sociais como ferramenta de informação

A escritora Thamirys Nunes tem um perfil no Instagram que usa para compartilhar a rotina da família e debater assuntos voltados à transgeneridade infantojuvenil. A conta foi criada para a divulgação do livro "Minha Criança Trans", que não obteve apoio de editoras para a publicação.

“Mesmo sem ser escritora, resolvi escrever um livro para tentar ajudar outras famílias em seus processos, mas também para expor à sociedade o quanto a transgeneridade infantojuvenil é um processo natural da criança e do adolescente, e o quanto a família precisa de apoio e afeto”, afirma a escritora, que explica que a rede social foi uma saída para a divulgação do livro.

“Infelizmente não encontrei apoio de editoras para a publicação. Tive que fazer um empréstimo e autopubliquei, mas não consegui colocar o livro para venda em nenhuma rede de livrarias. Daí surgiu a ideia de criar o Instagram para ser um possível canal de vendas”, conta.


“Eu não imaginava a proporção que isso ia ter em minha vida e a quantidade de pessoas que eu conseguiria ajudar e impactar com a nossa história. Fico muito feliz com a rede de apoio que estamos criando”, celebra Thamyris. A conta hoje já possui quase 90 mil seguidores. 

Ataques virtuais

Na contramação de todo o amor e acolhimento que Thamyris e sua família recebem no ambiente virtual, também ocorrem ataques e transfobia nos comentários e mensagens privadas. A escritora comenta que, inclusive, foi necessário acionar a delegacia para resolver alguns episódios de violência.

“Não posso negar que recebo muito carinho nas redes sociais, mas na mesma proporção, recebo ataques e ameaças dos mais variados possíveis. Algumas vezes já tive que fazer Registro de Ocorrência, mas eu não deixo o medo me paralisar, pois eu tenho uma criança que precisa de mim, do meu amor e que eu lute por ela até o fim”, afirma a mãe.

A professora universitária Marcelle Alencar Urquiza, também já identificou ataques e transfobias direcionadas à sua filha no ambiente virtual.

“Ela gosta de gravar vídeo de unboxing, desempacotando brinquedos e roupas, por exemplo, ou comentando sobre maquiagens e estilos de bonecas que ela gosta de colecionar. Eu acompanho tudo e vejo muita transfobia nas redes”, diz a docente que afirma que tenta limitar o acesso da criança às contas.

“Algumas pessoas parecem gostar de odiar e maltratar gratuitamente outras pessoas. Às vezes suspendo o celular, embora isso gere ansiedade à minha filha, mas é o único jeito de poupá-la um pouco de tanta agressão”, explica. É importante lembrar que a LGBTfobia é crime no Brasil , desde 2019, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) criminalizou a LGBTfobia e a tipificou como crime de racismo.

Apoio psicológico a criança trans


A psicóloga e terapeuta sexual Bárbara Meneses, que atua há 19 anos no Centro de Referência LGBT+ da Prefeitura de Campinas, em São Paulo, explica que é muito comum que as famílias encarem a transgeneridade infantojuvenil como algo passageiro.

“‘É só uma fase’, ‘vai passar’, ‘é para chamar atenção’, ‘isso é porque ela se baseia no irmão ou na irmã mais velha’, ‘é porque o pai ou a mãe são ausentes’, entre outros pensamentos, por exemplo, são típicos quando as famílias não querem levar a transição de gênero da criança a sério”, afirma a especialista, que revela que a criança trans mais nova que ela já atendeu tinha cerca de três anos e meio.

A psicóloga explica que a criança trans aborda muito questões ligadas ao cabelo, brinquedos e vestimentas, por exemplo, e que as famílias têm muita resistência de entender os desejos desses menores.

“Muitas vezes a criança vai trazer para o consultório uma questão ligada ao cabelo, por exemplo, que é muito significativo para elas. Cortar o cabelo ou deixa-lo crescer às vezes representa um sofrimento muito grande para a família, como a criança também expressar o desejo por brincadeiras que culturalmente não são atribuídas ao gênero de nascimento delas”, diz.

A terapeuta ainda revela que, pela falta de representação midiática, essas crianças se apegam a figuras não-humanas para buscar algum tipo de identificação.

“As meninas trans têm uma identificação muito grande com a figura da sereia, porque na parte cima ela se parece uma mulher, mas na parte debaixo ela tem um rabo de peixe, ou seja, não há genitália, então elas acabam se identificando muito”, comenta.


“Já os meninos trans trazem uma identificação muito grande com alguns super-heróis masculinos. Principalmente aqueles que têm uma identidade secreta. É muito comum esses meninos trans revelarem quando adultos que na infância rezavam para Deus pedindo para que eles se transformassem em um desses super-heróis”, diz a terapeuta.

Para finalizar, Bárbara Meneses ressalta a importância de toda a família embarcar no processo de transição porque não se trata de uma criança trans, “mas sim uma família trans”.

“Toda família diz, ao saber de uma gravidez, que não importa o sexo e que o mais importante é vir com saúde. Quando elas nos procuram para entender a transição de gênero de seus filhos, eu sempre pergunto, o que mudou? Se o gênero não era importante antes, por que agora essa transição é sinônimo de dor?”, questiona a especialista.

A criança trans no ambiente escolar

Uma pesquisa divulgada pelo Datafolha no início deste mês aponta que 73% das pessoas ouvidas afirmaram que a educação sexual deve estar no currículo escolar. Foram ouvidos 2.090 brasileiros com idades entre 16 anos ou mais de 130 municípios.

Os dados mostram uma abertura à discussão de gênero e sexualidade, mas na prática, o processo ainda é complexo e precisa ser entendido por todas as esferas, desde a escola, até os responsáveis pelos menores, como toda a sociedade em si.

O psicólogo clínico e escolar, especializado em políticas públicas, infâncias, juventude e diversidade, Vinicius Mota, que atua em uma escola de periferia em Brasília, afirma que o trabalho de integração infatojuvenil trans dentro da escola “deve ser multidisciplinar e multiprofissional porque a criança e o adolescente é de responsabilidade de todo mundo”, contudo, “não é o que ocorre sempre”.

“O primeiro passo que eu dou é conversar com a direção da escola. Nesta conversa sou eu, a direção e pouquíssimas pessoas. Nesse momento eu tento acolher quais são os conceitos e preconceitos dessa direção, então deixo ela livre para se expressar, usar termos errados, trazer valores religiosos, e tudo o que ela tem dificuldade com o assunto”, explica o psicólogo sobre seu método de trabalho.

Mota continua dizendo que depois de ouvir a direção, ele começa um trabalho de descontrução sobre o gênero e sexualidade.

“Depois começo o trabalho de reeducação, da construção de um novo olhar para a situação daquele aluno trans. Questão de gênero não é uma coisa que eu tirei da minha cabeça, é um conceito teórico e me baseio nele para realizar o trabalho”, afirma. “Depois o trabalho se estende ao corpo docente, para que chegue até os alunos”, completa o psicólogo escolar.

O especialista ainda é categórico sobre a obrigação que as escolas têm de acolher a diversidade.

“É importante deixar claro que não se trata de uma questão de escolha, se a escola vai ou não aceitar esta criança ou adolescente trans. Existe um amparo legal que nos obriga a trabalhar com diversidade e inclusão de todas as formas”, afirma.

Cenário clínico

O profissional explica que na escola há muita dificuldade porque “a grande maioria dos pais não apoiam ou não fazem o acolhimento da criança e do adolescente trans”, o que joga essa responsabilidade para a instituição que, nas palavras do psicólogo, “passa a ser o único lugar onde esse menor pode experienciar seu gênero sem limitações”.

Já no cenário clínico, de atendimento em consultório, Mota revela que a situação é diferente.

“A grande maioria dos que chegam até mim já têm certo conhecimento sobre o assunto e minimamente já aceitam a questão. Até hoje eu tive apenas dois casos de famílias que me procuraram e que um dos responsáveis não quis acolher o paciente menor”, finaliza.

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