Drag queen celebra o desfile da Parada do Orgulho LGBTQIA+ em cima do Camarote Solidário da Agência Aids
Agência Aids
Drag queen celebra o desfile da Parada do Orgulho LGBTQIA+ em cima do Camarote Solidário da Agência Aids

Em uma sala no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, um dos endereços mais famosos de São Paulo, a jornalista Roseli Tardelli trabalha duro ligada no 220v para que a 20ª edição do Camarote Solidário da Agência Aids saia perfeita. Ali, ela está rodeada de pedras energizadas, imagem de Nossa Senhora Aparecida, de quem é devota confessa, terço, um Evangelho espírita, além de outras figuras que remetem às culturas indígenas, tema que também defende com veemência.

Roseli é a criadora da Agência Aids, um portal de notícias que leva informações diárias sobre o universo do  HIV/Aids e que presta um serviço à comunidade LGBTQIA+ , a mais estigmatizada desde o surgimento dos primeiros casos ainda na década de 1980 . Foi de sua janela no 8º andar, em 2003, que ela teve a ideia de subir até o mezanino do Conjunto Nacional com quatro amigos para assistir confortavelmente ao desfile de milhares de pessoas que celebravam a diversidade no mês de julho. Entre uma garrafa de whisky e alguns petiscos surgiu a ideia de criar um verdadeiro camarote em que as pessoas pudessem acompanhar a festa lá de cima, sem esquecer do verdadeiro sentido da Parada: a empatia.

“No ano seguinte, chamamos outras pessoas e pedimos alimentos não perecíveis para doarmos para entidades que prestam auxílio às pessoas com HIV. Essa era nossa forma de ‘cobrar’ um ingresso e toda a estrutura começou a melhorar ano após ano”, introduz. “Muitas pessoas que vivem com HIV têm problema de instabilidade alimentar. Infelizmente, a população empobrecida é o maior alvo de HIV no Brasil e no mundo e, na maior parte dos casos, os camarotes de festas cobram ingressos para entrar, mas a gente só pede que as pessoas exerçam sua solidariedade”, explica.

Em entrevista exclusiva ao iG Queer , a jornalista ressalta que essa não é apenas uma ação de caridade, mas sim de empatia. Ela afirma que quando se trata sobre o universo das pessoas com HIV/Aids, ainda sobra preconceito no lugar que deveria existir o amor ao próximo.

“O Camarote surgiu justamente para termos mais solidariedade com as pessoas e a Parada é uma celebração da diversidade e respeito, então unimos duas formas bonitas de empatia. Comecei a ligar para as pessoas pedindo apoio, como empresas de farmacologia, marcas, ao próprio Conjunto Nacional e nos consolidamos aqui.”

O espaço no mezanino começou a ficar pequeno diante do interesse de várias pessoas que queriam assistir ao desfile do Camarote. Por este motivo, o evento foi transferido para o Parque Mário Covas em 2019, um ano antes da pandemia da Covid-19 se alastrar pelo mundo e o Camarote Solidário ser obrigado a se restringir ao modelo virtual. No ano passado, o iG Queer deu início a uma parceria com a Agência Aids e transmitiu ao vivo na home do portal iG toda a programação do Camarote .

Essa união  foi renovada para a celebração dos 20 anos do Camarote Solidário na Parada do Orgulho LGBTQIA+ 2023 , que volta ao Parque no dia 11 de junho, na Avenida Paulista, 1853 – Bela Vista, e ganhou novos parceiros que entram para formar um time de veículos que abraçarão a causa e difundir a arrecadação de alimentos de forma virtual por todo o país. A TV Sesc/Senac montará um estúdio no escritório da Agência Aids e o programa – comandado pela jornalista Patrícia Palumbo e pela drag queen Dindry Buck – será retransmitido pelo portal iG , os sites Doutor Maravilha, Superindetectável e Catraca Livre, além das redes sociais da própria Agência.

“Esse ano também teremos o Camarote Virtual para não esquecermos das pessoas que moram longe. É importante que as pessoas se vejam ali, se encontrem e o Parque será perfeito para isso. É um espaço ao ar livre, sem aglomerações, fechado com grades, o que garante a segurança principalmente de famílias com crianças pequenas”, avisa.

Histórico dramático

A família Tardelli: Sérgio, Idalina, Antônio e Roseli  no início dos anos 1990
Arquivo pessoal
A família Tardelli: Sérgio, Idalina, Antônio e Roseli no início dos anos 1990

Roseli se identifica como uma mulher lésbica e seu amor pelas pessoas que vivem com HIV surgiu ainda no começo da década de 1990, quando voltou de um mestrado realizado em Pamplona, na Espanha, e descobriu que seu único irmão, Sérgio Tardelli, estava infectado com a doença.

Naquela época ainda não existiam tratamentos que pudessem prolongar a vida dessas pessoas e o mais comum era vê-las adoecendo até morrer. O plano médico se recusou a dar um tratamento digno para Sérgio, o que fez a família Tardelli entrar na justiça para terem seus direitos assegurados e foram as primeiras pessoas a se exporem na TV e nos jornais em busca de ajuda.     

“Meu irmão chegou a dar entrevistas a programas de televisão, a mídia ajudou, tivemos protestos em prol da saúde dele. Os convênios não queriam atende-lo e, na época, não tinha qualquer tipo de medicação, nada. Ele se infectou entre 1989 e 1990 e faleceu em 1993. Eu costumo dizer que era a década da tragédia porque muitas pessoas morriam em pouco tempo. Depois, quando entraram os antirretrovirais, esse cenário mudou muito. Vivenciamos o que tinha de pior: o Sérgio morreu sem enxergar, nem andar, com 35 kg. Eu não ia fazer de conta que nada tinha acontecido na minha vida e eu precisava fazer alguma coisa. Foi nessa época que comecei a pensar na Agência Aids”, lembra.

Ela se formou como jornalista em 1984 e foi a primeira mulher a apresentar o “Roda Viva”, um dos programas de entrevistas mais importantes da televisão brasileira. Ela também já foi âncora de programas jornalísticos da Rádio Eldorado e criou em 2003 a Agência Aids, onde trabalha até hoje. Roseli reconhece que grande parte do estigma sobre o HIV surgiu justamente nos veículos noticiosos que anunciavam a doença como a “peste gay” ou “câncer gay”.

“Fomos nós, jornalistas, que ajudamos a criar esse preconceito, o estigma da pessoa com HIV . Na época em que surgiu a doença, foi a imprensa que noticiou dessa forma e publicizamos a forma como a medicina falava há 40 anos, sem ao menos questionar o porquê ‘o público gay era de risco’. Não entendo o motivo de não perguntar ‘como assim peste gay?’. Faltou a gente investigar mais. Acho que faltou empatia. Nós ajudamos a construir um imaginário equivocado e solidificar o preconceito”, assume.

Quando surgiu o Camarote Solidário, o grande problema era justamente encontrar patrocinadores que pudessem ajudar financeiramente um evento que era durante a Parada Gay (como era chamada antigamente) e em prol de pessoas com HIV, dois públicos que historicamente sofrem grande rejeição. A tarefa não foi fácil, mas a organizadora conseguiu uma parceria com a DKT, uma empresa com ação de responsabilidade social, além de ajuda de programas de governo municipal, estadual e até federal.

O maior desafio de Roseli hoje é justamente furar essa bolha das empresas que já tenham algum vínculo com esses dois públicos e encontrar marcas que abracem essa ideia solidária, mas essa tarefa não é fácil. Ela conta que, no início deste ano, conseguiu uma reunião com um executivo de uma grande empresa, mas as portas não estavam abertas.

“Fomos até lá e o gestor me questionou ‘onde está a ação social desse camarote?’. Eu fiquei muito surpresa com o questionamento. Ele chegou a dizer que poderia ‘usar o mesmo valor para comprar as cestas básicas’, assim não precisaria do Camarote. A gente ainda escuta esse tipo de postura arrogante de quem tem o dinheiro em mãos. Não se deu ao trabalho de procurar saber um pouco sobre nós, mas estamos na luta há 20 anos. Somos um marco de resistência.”

Felizmente, para este ano, conseguiu o apoio do Senac e Sesc de São Paulo, das farmacêuticas GSK ViiV Healthcare, Gilead, Abbott e Janssen, da Coordenadoria Municipal de IST/Aids de São Paulo, da Unesco e da Galeria 2001.   

Força

A jornalista diz que sua força para celebrar esses 20 anos do evento vem de seu irmão que ainda é uma figura muito marcante em sua vida, além das pessoas que a ação solidária ajuda em diversas partes de São Paulo e fora do estado. Ao todo, o Camarote já conseguiu arrecadar 22,5 toneladas de alimentos que são distribuídos para várias instituições. Em cada edição, ao menos 10 organizações são contempladas com as doações.

“Ano passado, por exemplo, foram 11 delas, que acolhem pessoas com HIV/Aids, instituições de apoio à comunidade LGBTQIA+, como Casa1 e Florescer, Centro de Referência à Diversidade, Grupo de Incentivo à Vida, Casa Brenda Lee, entre outras. Também inovamos no passado com doações para a Rede Paulista de Tuberculose, que é uma parcela reprimida, que precisa comer para tomar o remédio. Ano passado também tivemos doações para o Movimento das Cidadãs Positivas, de mulheres que vivem com o HIV, que não têm uma ONG, mas se organizam entre elas”, enumera.    

Quem se interessar em ajudar essa ação, Roseli alerta que é possível doar de qualquer parte do Brasil ou até mesmo de fora do país. No  site feito especialmente para as doações (clique aqui) é possível comprar uma (ou mais) cesta básica e os alimentos serão totalmente revertidos para a causa. A entrada ao Camarote é reservada a apenas 500 convidados escolhidos pela agência que farão parte do espaço no Parque Mário Covas.

Agora você pode acompanhar o iG Queer também no Telegram!  Clique aqui para entrar no grupo. Siga também o  perfil geral do Portal iG.

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!