Ao mesmo tempo em que as evoluções científicas seguem a todo vapor, do ponto de vista social o HIV/Aids ainda é marginalizado e estigmatizado
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Ao mesmo tempo em que as evoluções científicas seguem a todo vapor, do ponto de vista social o HIV/Aids ainda é marginalizado e estigmatizado

Em plenos anos 1980, nos Estados Unidos, houve a primeira comunicação oficial de um caso de Aids. Os quadros apresentavam imunossupressão grave e infecção por citomegalovírus, da mesma família da herpes e que causa infecções em indivíduos com o sistema imunológico deprimido. A semelhança encontrada entre os pacientes iniciais era que todos se tratavam de homens LGBT. A doença então recebeu o “apelido” de “gay compromise syndrome” (“síndrome do compromisso gay”). 

Ainda naquela década, o vírus chegou ao Brasil. O primeiro caso foi identificado no estado de São Paulo: um homem gay com febre, perda de peso, gânglios pelo corpo e inicialmente diagnosticado com tuberculose disseminada. Durante o 2º Congresso Brasileiro de Infectologia, esse e outros casos foram relatados. Neste evento, o pesquisador da área das vacinas Albert Sabin se pronunciou pela proibição da doação de sangue por parte de homens gays. Especialistas achavam que a doença não se transformaria em uma epidemia, mas as coisas não saíram como o esperado. 

Logo no começo da proliferação aguda da Aids no Brasil, os movimentos sociais enfrentavam um momento de ruptura. Em 1981, o jornal LGBT ‘Lampião de Esquina’ foi extinto. Já em 1983, uma crise política fragmentou o Somos, primeiro grupo unificado em prol dos direitos LGBT no eixo Rio-São Paulo. Em um contexto no qual a comunidade queer era a principal afetada pela doença e os tablóides estampam a Aids como “doença gay”, estas pequenas brechas tornaram cada vez mais “justificável” culpabilizar pessoas LGBT pelo advento do HIV. 

Ainda hoje, mais de 40 anos depois, pessoas que vivem com o vírus são alvo de estigma, especialmente as que não são heterossexuais e/ou cisgênero. Dados do Sistema de Informação de Agravos e Notificações divulgados pelo Boletim Epidemiológico de HIV/Aids em 2021 mostram que só em 2020 foram notificados mais de 29 mil casos novos de Aids no país. Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 920 mil brasileiros vivem com o HIV. Desse total, 89% foram diagnosticados, 77% fazem tratamento com antirretroviral e 94% das pessoas que passam pelo tratamento correto não transmitem o vírus. 

A Unaids, programa das Nações Unidas criado em 1996 e que tem a função de criar soluções e ajudar nações no combate à Aids, aponta que mais de 84 milhões de pessoas foram infectadas por HIV desde o início da epidemia. Ainda de acordo com o órgão, em 2021 cerca de 650 mil pessoas morreram por doenças relacionadas à Aids no mundo. Desde 2010, a mortalidade reduziu 57% entre mulheres e meninas e 47% entre meninos e homens. 

Há quem ainda não conheça a diferença entre o HIV e a Aids: o primeiro se trata do vírus que ataca o sistema imunológico e deixa o organismo desprotegido contra outras infecções. A Aids, por sua vez, é a síndrome da deficiência imunológica adquirida, ou seja, é a consequência da infecção por HIV. Não necessariamente quem contrai o vírus desenvolve a Aids.

“Anteriormente, lutávamos para que os pacientes não morressem de infecções oportunistas causadas pela Aids. Hoje, graças à disponibilização da terapia antirretroviral gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde), os pacientes conseguem indetectar o vírus e viver uma vida normal”, explica o infectologista Luan Victor Cavalcante. O especialista aponta ainda que ao longo dos anos a eficácia do tratamento evoluiu. 

“Anos atrás, era preciso tomar inúmeros comprimidos que traziam efeitos adversos, e hoje não mais. Conseguimos realizar terapia antirretroviral com um comprimido único que quase não apresenta efeito colateral”, diz. Além da medicação voltada para os cuidados que quem já foi infectado com o vírus, atualmente existe a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), disponível de graça pelo SUS desde 2017. 

Ela é uma medicação anti-HIV usada de forma programada para evitar a infecção. Pela forma como está aprovada no Brasil, a PrEP pode ser usada diariamente para que caso haja exposição ao HIV (situação de risco) o vírus não se instale no organismo. Para facilitar o uso da substância, pesquisadores do Estudo Mosaico, da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) estão desenvolvendo uma PrEP injetável, a Lenacapavir, que seria administrada a cada seis meses de forma subcutânea, como a insulina, por exemplo. Contudo, a injeção ainda está em fase de testes. 

Em 2021, em uma mensagem sobre o Dia Mundial de Combate à Aids, 1º de dezembro, o secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), António Guterres, ressaltou que ainda é possível acabar com a epidemia até 2030. Até que esse plano se concretize, é importante manter o foco na prevenção. A transmissão ocorre por meio de secreções como sangue, esperma, secreção vaginal e leite materno, sendo que para isso o líquido contaminado de uma pessoa precisa entrar em contato com o organismo da outra. 

Os cuidados envolvem o uso de agulhas e seringas descartáveis, luvas para manipular machucados e feridas e, sobretudo, o uso de camisinha durante as relações sexuais. Contudo, este último tópico ainda causa preocupações. Um levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) deste ano aponta queda na adesão de camisinhas entre os adolescentes brasileiros. De 2009 a 2019, o percentual de pessoas entre 13 e 17 anos que usaram preservativo durante a última relação sexual caiu de mais de 72% para 59%. A queda foi maior entre as meninas: de 69,1% para pouco mais de 53%. 

Além disso, o maior estigma ainda persiste. O HIV/Aids continua fortemente associado à comunidade LGBTQIAP+ pois, como dito anteriormente, o fato dos primeiros casos serem identificados em homens gays e o reforço da mídia sobre isso marcou essa parcela da população de maneira pejorativa e equivocada. “O vírus não está ligado a uma população específica, e sim a comportamentos de risco, seja a pessoa heterossexual, homossexual, bissexual, etc”, reforça o infectologista Luan Victor Cavalcante.

Samara Morais, psicóloga clínica e hospitalar com ênfase em pacientes com HIV/Aids, destaca que para a comunidade LGBT o momento do diagnóstico possui um peso bastante singular. “Quando a pessoa descobre a doença, o peso do estigma construído por anos vem junto. No Brasil, a epidemia de HIV atingiu principalmente homens que fazem sexo com homens, especificamente os cisgênero. Já no continente africano, por exemplo, a realidade é diferente”, explica. A especialista se refere aos dados da Unaids que apontam que na África Ocidental e Central a prevalência do HIV se dá entre mulheres entre 20 e 29 anos.

“Apesar de se desenvolver de maneira distinta em diferentes partes do mundo, o vírus é visto como ‘uma doença de gays’. Com isso, a população de homens gays, que já sofre muita violência e discriminação no ambiente familiar carrega ainda mais essa dificuldade. O acolhimento após diagnóstico é fundamental, porém, na maior parte das vezes, isso não acontece na família. É nesse momento que as ONGs e os grupos de apoio tornam-se essenciais”, destaca a psicóloga. 

Atualmente existem iniciativas sociais e grupos de assistência que não estão vinculados ao governo que se dedicam a suprir algumas demandas das pessoas com HIV, em especial as LGBTs. Esse é o caso do Grupo pela Vidda, do Rio de Janeiro. Ao iG Queer, Marcio Villard, coordenador da organização, destaca que o maior problema enfrentado atualmente é a falta de investimento. 

“As agências de cooperação e os organismos internacionais não priorizam investimentos no Brasil, tendo em vista que para eles já temos apoio governamental e de outras iniciativas – o que não é verdade. As ONG-Aids no país estão fechando há anos por conta da falta de apoio financeiro. Enquanto não existirem políticas para combater o preconceito contra pessoas com HIV e Aids, elas continuarão vivendo no isolamento, no silêncio e com medo de exposição”, ressalta. “As pessoas com HIV sabem que podem confiar nas ONG-Aids, inclusive muitos se voluntariam e atuam no acolhimento e nas ações realizadas pelas organizações. O Estado nunca acolheu efetivamente quem vive com HIV e Aids, ele é quem mais discrimina essas pessoas”. 

Vale lembrar que o corte de verbas do Ministério da Saúde previsto pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para reservar dinheiro ao Orçamento Secreto em 2023 atingiu 12 programas da pasta. Um deles é justamente o que distribui medicamentos para o tratamento do HIV, infecções sexualmente transmissíveis e hepatites virais. Só nessa frente, o ministério perdeu R$ 407 milhões. Marcio Villard aponta que além da falta de atenção política e financeira, a forma como o próprio sistema da saúde aborda pessoas com HIV/Aids é inadequada. 

“O que temos é um tratamento precário centrado em um modelo que não acolhe e muitas vezes promove o abandono de quem está se cuidando. Isso ocorre principalmente com os mais jovens. Não temos mais programas multiprofissionais como antes. A política atual prioriza basicamente os medicamentos e isso não é suficiente para promover saúde e bem-estar social”, explica. 

No caso das pessoas LGBTQIAP+, só em 2020 essa parcela da população, em especial homens gays e mulheres trans, puderam enfim doar sangue. Isso porque a epidemia de Aids, por ter sido muito associada com a comunidade, a via como o maior grupo de risco. Na época mais crítica de transmissão, já se sabia que uma das formas de contaminação era por meio da transfusão de sangue e, em vista disso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) criou, em janeiro de 1998, a Portaria Nº 34, que impôs empecilhos para que pessoas LGBT doassem sangue. 

Em 2020, com a crise de abastecimento dos hemocentros agravada pela pandemia da Covid-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu rever o caso e considerou a proibição ilegal. A partir daí, pessoas LGBT passaram a ser livres para fazer doação. “A população LGBT sempre foi responsabilizada pela epidemia”, relembra Villard. “Nos anos 1980 e 1990 existia a teoria dos três H, responsáveis pela transmissão do HIV: homossexuais, haitianos e hemofílicos. Estas teorias ainda persistem, porque para algumas pessoas alguém tem que ser responsabilizado”.

“De fato pessoas LGBT são estigmatizadas em relação ao vírus. As campanhas muitas vezes acabam potencializando o preconceito ao invés de orientar e informar sobre prevenção e promoção da saúde”, acrescenta. 

A sorologia na prática

Drew Persí  e  David Oliveira são homens gays cisgênero e vivem com o vírus HIV. Por meio das redes sociais, eles produzem conteúdo sobre o tema e participam de iniciativas que buscam acolher pessoas infectadas pelo vírus. Ao iG Queer, além de relatarem brevemente as próprias histórias, ambos ressaltaram alguns pontos em comum acerca da precariedade do atendimento do Estado às pessoas com HIV. 

“Meu diagnóstico foi em 2013”, relembra Drew. “Foi um processo bem complexo. Eu tinha todas as informações e era bem esclarecido sobre isso, mas quando acontece com a gente parece que a mente fica em branco. Na época eu não tive um bom acolhimento, e isso é algo que eu sempre gosto de lembrar, porque me motiva a proporcionar às pessoas algo que eu não tive”.

Na época em que recebeu o diagnóstico, Drew tinha 27 anos. ele precisou fazer uma série de exames, e entre eles estava o de HIV, que teve que ser refeito. Ao sair o resultado, o contataram por telefone para que fosse à unidade de saúde na manhã seguinte. A profissional que o atendeu não teve tato no momento de dar a notícia, e com base em suas experiências ele ressalta que o local em que a pessoa reside normalmente influencia no atendimento também. 

“Eu morei em São Paulo, mas também passei por Belo Horizonte, onde fiquei durante três anos e lá recebi o diagnóstico. Minha cidade natal é pequena, no sul de Minas Gerais. Eu pude presenciar diversos cenários, e no grupo de acolhimento do qual participo há pessoas de todos os lugares do Brasil também. Isso me fez enxergar que para quem está na capital paulista tudo funciona, mas existem muitos ‘Brasis’ por aí que não estão sendo assistidos. Recebo relatos de pessoas que vão para casa com um teste positivo reagente e não sabem nada sobre a rotina de medicamentos. Pergunto se o médico não deu instruções, mas eles só recebem o diagnóstico e uma receita para a medicação. Fora isso, não são orientados para nada”, explica. 

Para Persí, a forma como os tablóides associaram a Aids à comunidade LGBTQIAP+ desde o começo da epidemia no Brasil foi a “primeira grande fake news” do país. Ele ressalta que muitos dos obstáculos encontrados atualmente ainda são reflexos dos estigmas que continuam a ser reforçados. 

“Estampavam nas capas [de jornal]: ‘Peste gay’, ‘Câncer gay’. Fecharam as baladas LGBT, as saunas, todos os lugares frequentados pela comunidade. É o plano perfeito para eliminar pessoas que na visão da sociedade nem deveriam existir. Mesmo quando vieram os casos de mulheres hétero e crianças contaminadas, não houve esforço para corrigir o que tinham dito sobre a comunidade. Como resultado, precisamos carregar esse peso ao longo dos anos”, aponta. 

Como consequência da constante relação estabelecida entre pessoas LGBT e o vírus HIV, a comunidade carrega a maior parte da responsabilidade em falar do assunto e reivindicar políticas públicas. “Na internet, 99% das pessoas que falam de HIV e são abertas sobre a sua sorologia são LGBT”, diz Drew. “No meu grupo de apoio há várias mulheres que são diagnosticadas, mas elas nunca vão se expor por toda questão do machismo. No caso dos homens, se um heterossexual disser que tem HIV, vão acusá-lo de ser gay e ele vai precisar ‘provar’ que não é, porque pessoas automaticamente associam a doença à sexualidade”. 

“É muito injusto a comunidade LGBT carregar esse peso”, continua ele. “Estamos nessa luta há mais de 40 anos. Eu estou nesse meio há 10, e às vezes me sinto exausto. Na última vez que postei um vídeo falando do corte de verba na saúde que impacta a distribuição de medicamentos para tratamento de HIV recebi muitos comentários de ódio de pessoas que não levavam o assunto a sério ou simplesmente diziam que não era verdade. Essa é uma forma de matar as pessoas silenciosamente. Quando a passagem de ônibus sobe de preço, as pessoas vão para a rua protestar. Mas quando acaba o remédio para HIV as pessoas não fazem protesto porque elas vivem no anonimato justamente por conta da marginalização. Novamente é um plano perfeito para acabar com a gente”. 

David Oliveira é cristão, e desde o diagnóstico em 2017, marca presença em redes de apoio e fala muito do acolhimento religioso sob a ótica da sorologia. Atualmente ele consegue exercer a fé sem enfrentar represálias, mas reconhece que essa não é uma realidade palpável a todos. Assim como Drew Persí, ele também reconhece que a comunidade LGBT precisou assumir a luta em prol dos direitos das pessoas que vivem com o HIV/Aids devido ao estigma construído, ou seja, foi uma responsabilidade imposta a essa população. 

“Os casos começaram em grupos mais vulneráveis, entre eles pessoas LGBT e pretas”, diz David. “A mídia também teve um papel muito criminoso por disseminar a informação de um ‘vírus gay’, mas a gente assumiu esse problema por sobrevivência. Até hoje somos principalmente nós, homens gays, e as mulheres trans, travestis e cisgênero que damos a cara a tapa. Temos um alcance muito maior graças às redes sociais, mas a diferença entre pessoas LGBT que falam do assunto e homens heterossexuais e cisgênero que tem a mesma iniciativa é desproporcional”. 

Ele destaca ainda que um dos principais fatores que empurra as demandas nas mãos daqueles que são organicamente marginalizados é o fato de que na estrutura social que vigora sob o sistema capitalista, quem detém os mecanismos do Estado – homens brancos, ricos, heterossexuais e cisgênero – é que define a vida de tantos outros que são maioria numérica e que têm as vidas diretamente afetadas – e ceifadas. 

“A ciência não é pensada para os corpos dissidentes, e sim nos corpos padrões: brancos e cis. O próprio tratamento do HIV é pensado dessa forma. Ele não considera as particularidades de pessoas pretas ou as questões de saúde trans. Não somos nós quem fazemos a ciência, estamos inseridos apenas no trabalho de base. Quando vemos embaixadores de campanhas contra o HIV, geralmente são pessoas que não vivem com o vírus e falam que se solidarizam com a causa. Tudo bem, até podem se sensibilizar mesmo, mas não são elas que tomam remédios todos os dias e vivem esse preconceito”, conclui.

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