A presença de narrativas LGBTQIAP+ mais em séries, filmes, desenhos e quaisquer obras audiovisuais é uma demanda que possui diversas vertentes de discussão – especialmente considerando a quantidade de letras na sigla. Além da importância de vivências LGBT estarem presentes nos produtos da indústria audiovisual em si, vale chamar a atenção para o fato de que essa população é de fundamental importância por trás das câmeras, durante a produção destes materiais.
Gautier Lee é uma pessoa não-binária, preta, roteirista e diretora. Ao iG Queer, ela conta que começou a buscar pela representatividade LGBT em filmes e séries após ter consciência da própria identidade. “A primeira vez que eu ouvi falar [sobre pessoas não-binárias] foi em 2015, eu acho, quando eu estava começando a me questionar. Porém só quatro anos depois, em 2019, foi que eu voltei a pensar sobre isso. Comecei a conhecer mais pessoas da comunidade e passei a me entender”, explica.
“Eu busquei então por essa representatividade nos filmes e séries. Acho que até hoje me deparei com uns três personagens não-binários, e só um deles era negro. Eu nem acreditava que era possível existir narrativas não-binárias nesses produtos, e hoje essa representatividade existe, embora muito pequena. Sinto que estamos caminhando e que existem mais personagens relacionados à comunidade, mas tenho esperança que esse número aumente e a qualidade também. Não adianta termos um monte de personagens LGBT que pequem em qualidade e espalhem desinformação”, acrescenta.
Gautier continua ao comentar como as vivências da comunidade são plurais, em especial as não-binárias, que é onde ela se encaixa. “Eu tenho amigos não-binários e nós não temos nada a ver uns com os outros. A única coisa em comum entre nós é a identidade de gênero, e ainda assim nos expressamos de formas totalmente diferentes”, pontua.
Em vista dessa multiplicidade de vivência e da necessidade de uma crescente presença LGBT dentro e fora das cenas dos filmes, séries e desenhos, o iG Queer questionou a especialista sobre como o mercado audiovisual funciona para quem faz parte da comunidade e deseja trabalhar no ramo. Ela pontua que as portas estão se abrindo, mas ainda existem barreiras a serem superadas.
“Acho que existe uma aceitação muito maior da presença gay e lésbica e até bissexual”, começa Gautier. “Passando da letra B, fica um pouquinho mais difícil. Eu vejo um esforço, mesmo que pequeno, para trazer mais essas pautas [da comunidade] para o meio [audiovisual]. Por outro lado, as produções são muito ditadas pelo público, porque é ele que consome, então se continuarem consumindo apenas produções cis-hétero, é isso que a indústria vai produzir, afinal vivemos em um sistema capitalista que visa o lucro”.
“Ao mesmo tempo, alguns espaços estão mais dispostos a ouvir vozes diversas. Algumas empresas de produção de conteúdo estão criando ou já tem departamento de diversidade e inclusão. Certas produções colocam nos e-mails disparados para a equipe que ‘nesta produção não é aceito discriminação nem preconceito’, e anexam um contato caso alguém queira fazer uma reclamação, que pode ser anônima. Mesmo com essas iniciativas, ainda precisamos de mais pessoas LGBTs em posição de tomada de decisão”.
Gautier explica que a importância de pessoas queer encabeçando as produções vem do fato de que é muito comum que algumas produções enfraqueçam o significado de elementos LGBT dentro do produto final, especialmente se a equipe for majoritariamente cis-hétero.
“Eu entrego um roteiro, por exemplo”, explica ela. “Mas se não for dirigir ele, que muitas vezes é o caso, esse roteiro passa por um processo de produção composto geralmente por pessoas heterossexuais e cisgênero, incluindo a direção. Às vezes, as nuances que a gente cria se perdem, as pessoas não entendem. Por exemplo: a diferença entre uma travesti e uma drag queen. Você escreve uma personagem trans, mas na hora do casting decidem contratar uma drag hypada porque vai trazer audiência e na cabeça deles é ‘tudo a mesma coisa’”.
“O audiovisual é uma arte muito coletiva”, pontua a especialista. “Algumas vezes são necessárias mais de 100 pessoas para fazer um filme. Além da quantidade de gente envolvida, é um caminho longo a percorrer. A gente precisa ter pessoas LGBT tomando decisões para dizerem: ‘Essa personagem é travesti, então vamos contratar uma atriz que seja travesti’. Se não for possível encontrar, independentemente do motivo, então vamos trabalhar em prol de formar essas atrizes. É muito fácil falar que não existem pessoas trans no mercado sendo que nossa expectativa de vida é de 35 anos”.
Para Gautier, a ausência de pessoas LGBTQIAP+ na frente e por trás das câmeras “é um problema que precisa ser resolvido desde a base até o topo para que possa existir diversidade”. “Não podemos deixar que a representatividade fique apenas no papel, morra na hora do casting ou na hora da direção. Precisamos de pessoas ali dentro lutando para que essas narrativas cheguem ao consumidor final. Às vezes, é uma batalha para defender um personagem e impedir que ele sofra alterações na história”.
A profissional também faz um apelo para que pessoas cisgênero e heterossexuais enxerguem a demanda da comunidade como legítima, pois a constante resistência por parte delas impede que a representatividade avance e torna as produções cada vez mais adequadas à cis-heteronormatividade, que por sua vez contribui com um discurso de extermínimo e invisibilização da comunidade LGBTQIAP+.
“Cabe às pessoas cis-hétero se posicionarem também e falarem ao público que a produção vai entregar o que foi prometido, mas com diferentes embalagens”, diz ela. “A gente tem uma quantidade enorme de narrativas heterossexuais. Se eu abrir qualquer serviço de streaming, fechar os olhos e clicar em um título, eu sei que vai ter um personagem cisgênero e hétero ali, mesmo que seja uma obra LGBT – e está tudo bem, afinal pessoas cis-hétero continuam tendo pleno direito de existir”.
“Encontrar personagens queer ainda é difícil”, observa ela. “E poxa, a gente consome – e muito. Todo o universo ligado às divas pop, por exemplo, nasceu no meio LGBT. Se a gente consome, nossas demandas deveriam ser atendidas. Eu sinto que ultimamente uma resistência muito grande por parte das pessoas cis-hétero que acham que estão perdendo espaço, porque tudo sempre foi 100% delas e agora a comunidade está conseguindo criar os próprios nichos, avançar e construir mais narrativas”, salienta.
A profissional traz à tona o polêmico pink money, ou seja, iniciativas planejadas para lucrar em cima da comunidade LGBT sem realmente se comprometer com a causa de maneira politizada e consciente. Para ela, é importante que a comunidade mantenha os olhos abertos para isso.
“Quando uma pessoa cis-hétero quer produzir uma história LGBT, vale questionar se é porque ela reconhece a importância disso ou se é pelo pink money. Isso acontece principalmente porque as LGBT compram. A nossa representatividade é tão pequena no audiovisual, na literatura e nas demais artes que muitas vezes consumimos qualquer coisa porque é o que tem. Existe sim esse movimento de ‘vamos fazer qualquer coisa porque é para LGBT, então se eu colocar duas meninas de mãos dadas já é suficiente, porque também não posso me comprometer com o público conservador’”, aponta.
Por fim, Gautier exalta o papel e a força do audiovisual na disseminação das pautas LGBT e na conscientização sobre gênero e sexualidade, uma vez que os diferentes formatos dentro deste universo possibilitam que o assunto seja abordado sob perspectivas variadas para atender a demanda em questão.
“Se eu tivesse acesso a personagens não-binários quando estava me questionando, acho que teria enfrentado o processo mais facilmente”, observa ela. “Tive a sorte de conhecer pessoas reais, mas acho que tanto a ficção quanto o gênero documentário e o audiovisual em geral possuem a força de levar informação até as pessoas, porque não é algo não discutido. Muitas vezes, o contato que o público tem com questões de gênero e sexualidade é por meio de falas preconceituosas. O audiovisual leva conhecimento não necessariamente de maneira educativa, mas didática”, conclui.
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