O público consumidor de
Giorgio Trovato/Unsplash
O público consumidor de "cultura nerd" que odeia diversidade passou a ser conhecido como "nerdola", nas redes sociais

A cultura pop foi (e ainda é) por muitos anos dominada por um público primordialmente hétero e masculino, trazendo em suas principais obras personagens fortes, viris e capazes de “salvar o mundo” a cada nova história contada. Nessas obras, personagens femininos eram hipersexualizados e os LGBTQs, quando presentes, na maior parte das vezes eram vistos como alívio cômico ou piada.

Porém, de alguns anos para cá, pode-se ver diversas representações importantes nos principais meios: como os videogames, as histórias em quadrinhos e desenhos animados, as séries de TV/streaming e o cinema.

O público consumidor dessas obras, um dia consideradas de nicho, sempre foi conhecido como “nerd”, vítima de bullying e de diversos estereótipos, até que, exatamente por essa evolução que tais obras tiveram, ganharam muita popularidade e o nerd deixou de ser pejorativo para se tornar “cool”.

Por outro lado, uma parcela desse público que ganhou um espaço maior, principalmente nas redes sociais, parece não aceitar que o seu entretenimento favorito dê mais espaço unicamente para aquele homem branco, forte e musculoso, como o ator Arnold Schwarzenegger em “O Predador” (1987). Exemplo disso é a polêmica por trás do lançamento da mais recente produção da franquia, lançado em 2022: "O Predador: A Caçada".

Prey (nome original) foi acusado de “lacração” por trazer Naru, interpretada pela atriz Amber Midthunder, desempenhando feitos similares aos do personagem de Schwarzenegger no filme original, quando os músculos não fazem diferença no combate contra o caçador alienígena, mas sim a inteligência dos protagonistas.

Um fenômeno chamado nerdola e a política da lacração

Embora o termo “nerdola” não tenha sido criado para um uso negativo, essa foi maneira usada para separar o nerd, em um contexto geral, de seu “lado sombrio” que se recusa a aceitar representatividade onde quer que ela esteja, por mínima que seja. Bastando aparecer um personagem que não seja branco e hétero em um papel de poder que a polêmica está feita.

E por que ver minorias representadas em um papel de destaque incomoda tanto essa parte do público, como se a representatividade, vista como lacração, fosse uma ofensa pessoal ao seu próprio bem-estar?

“Estamos atravessando tempos de ódio, em que temos, simultaneamente, poderosos aparatos de opressão da potência vital dos indivíduos e de fragmentação do campo social”, diz a psiquiatra Natasha Senço ao iG Queer. Para ela, esses fenômenos contribuem para a identificação com determinados grupos de uma maneira cega e apaixonada, pelo negativo do termo.

“Quando não damos conta da complexidade das questões que enfrentamos, emerge o inconsciente e as defesas se intensificam. Nesse ponto é difícil estabelecer alteridade, tudo que me contradiz, me ataca”, explica.

Sou representado por aquilo que não me representa

O nerdola, definido pelo estereótipo, não se trata de um homem em plena forma física, que se veria representado por um personagem com músculos bem definidos em roupas coladas (ou pouquíssima roupa). Então o que lhe atrai tanto em personagens que seguem esse perfil?

“O ‘nerdola’ parece ser um subproduto da nossa cultura distanciada de uma formação humanista e integral, excessivamente focada no utilitarismo, em valores consumistas, que fetichiza uma masculinidade intangível”, diz a psiquiatra.

Para Natasha, os heróis dos filmes contemporâneos trazem mitologias pobres sobre suas jornadas, “[Eles] são imaturos, egocêntricos, não vencem pela força do espírito, mas por possuírem uma força descomunal que compensa seus erros e falhas de caráter. Nesse aspecto, produzem identificação com indivíduos que podem deter determinadas habilidades ou inteligências, mas com a formação integral e desenvolvimento humano imaturos”.

Um exemplo recente que pode ser encaixado nesse perfil é o personagem Hulk, da Marvel. Ao longo dos filmes, o alterego de Bruce Banner passou a receber várias críticas por deixar de ser um monstro descontrolado que destrói prédios enquanto soca alienígenas gigantescos para se tornar um ser mais inteligente e controlado, assumindo unicamente a personalidade do cientista.

A intolerância ao diferente

A representação do LGBTQIAP+ que se aceita e entende a própria sexualidade é, provavelmente, o que mais atrai o ódio desse público. Essa questão com a sexualidade alheia pode, de certa forma, ser um reflexo do que a pessoa entende sobre si mesmo e que se reprime em seus próprios desejos (não apenas os sexuais) e, ao se tornar parte de um grupo de “odiadores” (os famosos haters), seja a maneira mais simples de se sentir como parte de uma comunidade.

Natasha afirma que “quem reprime o próprio desejo para buscar um ideal de masculinidade não suporta a liberdade sexual do outro”. No livro “Psicologia das massas e análise do Eu”, Sigmund Freud, criador da psicanálise, adverte sobre aspectos sombrios do inconsciente envolvidos nos fenômenos de grupo.

“Hoje é possível falarmos em ego-gregarismo (termo cunhado pelo pesquisador Dany-Robert Dufour) conceito que se refere a uma nova forma de agregação, no qual egos vivem em ‘rebanhos’ como um alinhamento de eus em comunidades virtuais, com laços sociais precários. Esses grupos frequentemente têm um alvo de ódio, que representa um lugar de exceção, lançado à condição de inimigo”, explica.

A política na cultura pop

Nas redes sociais é bem comum que o nerdola reclame sobre “misturar política com entretenimento”, quando boa parte do que se consome é exatamente sobre política – aqui vale citar um dos maiores exemplos das histórias em quadrinnhos, os X-Men, que aborda segregação ao mostrar como os mutantes sofrem rejeição social unicamente por serem diferentes das “pessoas normais”.

O escritor Neil Gaiman declarou em seu Twitter que alguns fãs “não leram ou não entenderam” a obra original, por estarem criticando temas abordados na série “The Sandman”, que mostra diversos personagens pertencentes à comunidade LGBTQIAP+.

O que muito se aponta, nesses casos, como deu a entender o comentário de Gaiman, é que grande parte do público que consumiu esse tipo de conteúdo por décadas jamais entendeu o que estava lendo, demonstrando uma certa pobreza cognitiva por trás de todo esse ódio e preconceito. 

“Estamos atravessando uma mudança epistemológica em direção à complexidade. Enquanto o mundo sai de um pensamento linear e mecânico para o pensamento sistêmico e não-linear, necessitamos de outros tipos de inteligência e de uma capacidade mais refinada de abstração. O simbólico, o sonho é o que de fato nos torna humanos. Essa cegueira muitas vezes não é cognitiva, mas um recalque, um ponto cego que sinaliza questões não elaboradas pelo sujeito”, sugere a psiquiatra.

O nerdola odeia as mulheres?

Além do ódio contra gêneros e etnias, esse público também é muito conhecido por protestar sempre que há uma mulher com destaque. Em um dos episódios de “Mulher-Hulk”, aparecem diversas mensagens de ódio para a personagem, o curioso (e trágico) é que todas as mensagens mostradas no terceiro episódio da produção foram retirados das redes sociais do mundo real, recebidas quando a série foi anunciada.

Por muitos anos o papel feminino “de poder” vinha do estereótipo popularizado pelas famosas “Bond-girls”, nos filmes do agente 007, onde estavam para servir apenas como o par romântico do personagem principal. No momento em que a mulher deixa de ser sexualizada e ganha seu destaque, é vítima de ataques de ódio.

Natasha afirma que, assim como com outras minorias, não existem explicações inequívocas para essa reação contra as mulheres. “O melhor é pensarmos nas implicações… Como esse sujeito se implica em relação ao feminino? Me parece que o ressentimento opera na centralidade da coesão desses grupos. Rejeição social, amorosa, sentimento de abandono ou mesmo recusa da própria sexualidade… são muitos fatores que podem contribuir para esse ódio. Há também um aspecto do machismo arraigado na cultura brasileira”.

A médica aponta: “Há uma espécie de mito do homem viril que detém o poder sobre os demais no inconsciente nacional. O colonizador, o capataz, o bandeirante… temos uma ancestralidade de domínio e violência. Alguns grupos lutam pela desconstrução dessa herança e outros desejam reivindicá-la

Associado ao “nerdola que odeia as mulheres”, é muito utilizado o termo Incel, de involuntary celibates (celibatários involuntários, em tradução livre), que atribui esse ódio ao poder feminino e à própria incapacidade autoassumida de não conseguir atrair uma parceira romântica ou sexualmente. Logo, se não conseguem atrair uma mulher, elas também não podem ser fortes e independentes “como um homem”, quase como um sentimento de vingança.

“Poderíamos pensar na vingança como uma modalidade do ressentimento, assim como a inveja. A questão é que o ideal de força e independência está insuflado, não permite a existência do outro, então, já que não consegue corresponder ao seu próprio ideal, precisa sustentar as representações da fantasia e não suporta ‘emprestá-la’ ao outro”.

Entendendo o nerdola e por que tudo é lacração

“Pela perspectiva da psicanálise, a lacração poderia ser entendida como uma modalidade de gozo, quando há uma passagem da posição de oprimido a opressor, quando há uma forma ostensiva de atacar o outro, em detrimento à construção do próprio espaço de fala. A representatividade é relacional, em relação aos outros tenho um espaço, me sinto representado, posso dar a minha opinião. Entender isso como lacração, fala de uma fragilidade na capacidade relacional, falta de empatia e dificuldade em lidar com a frustração. As redes sociais amplificam e mimetizam esses fenômenos, mas eles são essencialmente humanos”, analisa a médica psiquiatra.

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