Vicenta Perrotta, Guma Joana, Magô Tonhon, Sam Porto e Lana Santucci
1.Reprodução/Instagram; 2. Reprodução/Instagram; 3. Leo Faria; 4. Way Model; 5. Way Model
Vicenta Perrotta, Guma Joana, Magô Tonhon, Sam Porto e Lana Santucci

A indústria da moda é carregada de tradicionalismos e conservadorismos da elite criativa, que se concentra em uma camada social de pessoas ricas, cis, brancas e heteronormativas. Apesar de mudanças ocorrerem lentamente, há ainda a permanência majoritária destes corpos conduzindo o mercado.

Com a 50ª Casa de Criadores, semana de moda que reúne artistas, modelos e estilistas, finalizada no último domingo, reaqueceram alguns debates acerca de corpos trans e travestis dentro desse mercado. Isso porque o evento trouxe em seu line-up marcas que têm à frente pessoas transvestigêneres, não somente para desfilar como modelo, mas para exporem seu trabalho enquanto um corpo criativo dissidente.

Mesmo com eventos como esses, será que basta? O iG Queer conversou com duas estilitas que fizeram parte da 50ª Casa de Criadores , Guma Joana e Vicenta Perrotta . Além disso, os modelos Sam Porto e Lana Santucci e a maquiadora Magô Tonhon,  também trouxeram seus pontos de vista para dentro dessa discussão que afeta diretamente suas vidas.

Guma Joana , fez seu desfile de estreia presencial na Casa de Criadores na última quarta-feira (6). Além de ser estilista, ela é travesti, performer e artista. A sua trajetória inicia com a performance, mas a partir da criação experimental de figurinos para ela e seus amigos, ela decide integrar a produção de moda de maneira mais consciente.

A estilista conta que, ao iniciar na moda, julgava ser somente para a elite e, atualmente, ela tem certeza disso. “As dificuldades existem, pois, surge o desejo de querer criar e produzir, mas, em simultâneo, é preciso fazer milhares de outras coisas para poder sobreviver. Tenho que ficar fazendo projetos fora da moda em grande parte do tempo para poder manter o meu ofício com a moda”, diz.

Neste ano, ela apresentou a sua coleção “ D3SD1T4 #04: V1NG4NÇ4 ”, que revisita a atmosfera da cultura da vida noturna, gênero e resistência dos corpos dissidentes. Mesmo com suas conquistas, ela se questiona acerca de ocupar os espaços sempre como um token, pois reconhece serem poucas trans e travestis que conseguem ocupar espaços dentro da moda.

Todavia, para ela, outra dificuldade que enfrenta é ter seu trabalho sempre associado à sua identidade. “Me incomoda, de certa forma, ter meu trabalho rotulado por ser feito por uma pessoa trans e não por ser feito por uma profissional que trabalha dentro do mercado de moda. Quando vai para coleção, é outra história, porque uso meu trabalho como um lugar de manifesto desses corpos. Hoje em dia não é só sobre mim, pode até levar o meu nome, mas já deixou de ser só sobre mim”, reflete.

Para ela, a Casa de Criadores é um dos espaços mais bem pensados para acolher artistas, estilistas e modelos trans. Entretanto, reconhece haver mais para ser feito. “Embora exista esse lugar acolhedor, acredito que precisa ser mais bem consolidado, até para pensar nas intersecções dessas realidades, que são diferentes”, adiciona a estilista.

Vicenta Perrotta
Reprodução/Instagram

Vicenta Perrotta

Vicenta Perrotta , estilista veterana da Casa de Criadores, ativista trans e percursora da transmutação têxtil, criando peças a partir do upcycling, também relata como enxerga essa indústria. Em sua vida, a moda entrou muito jovem quando era fã de Madonna e passou a se interessar por moda de rua, tendo como inspiração as obras de Jean Paul Gaultier.

“Até hoje ocorre todo o tipo de dificuldade, a deslegitimação sempre acontece porque as pessoas não entendem o que você quer dizer. Quando uma travesti chega falando que: 'A moda é a racista, transfóbica, entre outros', a galera não acredita. Porque, de fato, a moda é uma plataforma construída pela indústria, como um meio de dominação. A moda e a indústria são cisgêneros, racistas, transfóbicos e permanece nesse vórtex”.

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis, por outro lado, é o que mais consome pornografia com essa temática, criando uma instabilidade e insegurança para a vida desse grupo com estimativa de viver até os 35 anos.

A estilista também está à frente do ateliê TRANSmoras , que capacita trans para a produção criativa. “O lixo me transformou em potência”, explica ela que expande a sua criatividade para peças agêneros feitas a partir de retalhos.

Apesar disso, ela denuncia algumas desigualdades que ela e muitas sofrem dentro desse mercado: “As pessoas trans não têm espaço nesse lugar, a gente serve para, às vezes, em algumas coisas, servir ao capitalismo. Mas, ao mesmo tempo, é horrível ficar fora desses lugares. Também é preciso ocupá-los, pois estamos inseridas no capitalismo e precisamos de dinheiro para sobreviver”, completa Perrotta.

“O Cistema, com C mesmo, de cisgênero, não é um lugar que cria possibilidades para o corpo trans prosperar. O corpo trans quebra esse pacto, então a gente precisa se fortalecer constantemente. É um projeto de morte e de deixar morrer, mesmo aqueles que não se sentem responsáveis, eles são, pois, nossos corpos estão sempre à margem”, enfatiza a artista.

Mesmo com modelos desfilando em outros eventos como o SPFW, a Casa de Criadores ainda é o único no Brasil que dá espaços para estilistas trans e travestis mostrarem suas produções.

“O São Paulo Fashion Week não é sobre criação, é sobre a indústria. A Casa de Criadores é sobre dar lugar aos criadores independentes. A indústria não é para os corpos dissidentes, mas apenas para colocar o corpo trans como algo ‘que está na moda’, criando um fim para nós. E não é sobre acabar, é sobre dar continuidade. É preciso hackear a plataforma ‘moda’ para trazer processos de mudanças efetivas, não somente para pessoas trans, mas para outras identidades lidas como dissidentes”, avalia.

“A gente não é ‘algo na moda’, somos pessoas que estão pensando e produzindo processos de existência, processos que quebram com esse ciclo genocida. Produzimos intelectualidade, tecnologia e outros lugares com outras possibilidades de existência”, completa a criativa. 

Patrocínios e o acesso ao dinheiro

“Eu desejo que as marcas e as empresas com condições olhem para o meu trabalho e de outras pessoas trans com dignidade, possam realmente entender e busquem nos patrocinar. Sinto que muita gente já conhece meu trabalho e a Casa de Criadores, mas eu ainda continuo sem apoio, assim como tantas outras”, comenta Guma Joana.

“Não tem patrocínio de nada, nunca tive, pouquíssimo. Nunca tem dinheiro, o relatório de impacto nunca é suficiente para a indústria e para as empresas. Sempre tem que ganhar as coisas no grito, nunca ganha. Se não grita, não ganha. E quem é que consegue ter impacto? São pessoas cis, que ainda ocupam majoritariamente as universidades e o mercado de trabalho”, adiciona Vicenta.

Dados da Associação Nacional de travestis e Transexuais (Antra), indicam que 90% da população trans no Brasil tem a prostituição como única fonte de renda e possibilidade de subsistência. Além disso, informações do Projeto Além do Arco-Íris/AfroReggae apontam que apenas 0,02% dessas pessoas estão na universidade, 72% não possuem o ensino médio e somente 56% concluíram o ensino fundamental.

Modelos na indústria

A modelo Lana Santucci relata que, mesmo com avanços, ainda percebe que para modelos trans, que têm mais notícias na mídia, ainda é escasso o espaço para outros tipos de corpos fora de padrão ou até mesmo homens trans.

Lana Santucci
Way Model

Lana Santucci

“Acredito que a indústria da moda, assim como qualquer outra indústria, dentro de um sistema capitalista, visa incluir os corpos que começam a ter algum certo tipo de capacidade financeira e de poder de compra. No momento que percebem que as mulheres trans e travestis estão chegando em lugares e ocupando espaços que não podíamos antes. Ao notarem isso, começa essa inclusão”, explica a top model que já posou para publicações como Vogue Brasil, Vogue Portugal, Elle, Glamour e L'Officiel, além de ter participado do reality-show "Born to Fashion".

Embora tenha um trajetória bastante consolidada, ainda sofre algumas transfobias no backstage: “Acabei de realizar um desfile que algumas vezes erraram meu pronome. Normalmente, são esses desrespeitos, essas faltas de noção que acontecem. Eu também não era modelo antes, porque eu ia nas agências e diziam que não tinha perfil. Mas, na verdade, era apenas porque eu era uma mulher trans e não queriam trabalhar comigo ou não queriam nem tentar ver se eu tinha algum potencial como modelo, e hoje estou fazendo todos os grandes trabalhos dentro da moda”, conta.

De outro lado, Sam Porto , modelo transmaculino expõe sua visão sobre como essa indústria atravessa a sua vida. O desejo dele de entrar para o mundo da moda surgiu após não se reconhecer dentro desse meio.

“Trouxe para a mídia a reflexão do quanto nós, transmasculinos, somos invisibilizados em todos os âmbitos e, assim, abri portas para que outros como eu fossem vistos e valorizados em questão de oportunidades profissionais”.

Sam Porto
Way Model

Sam Porto

Em 2019, o modelo foi o primeiro homem trans a desfilar no São Paulo Fashion Week. Ainda que tenha conseguido trabalhos depois desse desfile, ele conta que seu corpo não é sempre acolhido.

“Acredito que isso seja pelo fato de eu ser um homem trans não hormonizado. Eu ainda carrego alguns complexos pessoais com o meu corpo. Não são todas as vestimentas que eu me sinto confortável e ter que me explicar todas às vezes, me coloca nesse lugar de receio; de não entenderem. Além disso, sinto que, em alguns momentos, existe a preferência pelos corpos cisgêneros esteticamente mais fortes, com traços corporais mais marcados. Inevitavelmente, isso me coloca em um lugar de comparação que me atravessa”, desabafa o jovem. Os pronomes também seguem sendo desrespeitados em certas ocasiões.

Lana Santucci e Sam Porto se identificam quando o assunto é a mudança efetiva, ambos creem que a indústria permanece fechada, porém há um pequeno avanço no quesito de oportunidades.

“Ainda hoje, são poucas as pessoas trans presentes. Temos algumas mulheres trans na moda, assim como na TV, elas vêm alcançado e conquistando cada vez mais espaços, ainda bem. Mas para os homens trans, continua difícil, pois continuam invisibilizados tanto no meio artístico quanto na moda”, enfatiza Porto.

Backstage

Em relação aos profissionais do backstage estarem preparados para lidarem com o corpo trans, o modelo avalia que nunca viu nenhum tipo de treinamento ou projeto obrigatório sendo realizado para isso. “Estar preparado ainda traz a questão do interesse pessoal de cada pessoa e marca”, finaliza o modelo.

E quando o profissional no backstage é uma pessoa trans? Magô Tonhon , maquiadora e educadora de beleza rememora que a maquiagem entrou na sua vida de maneira não planejada, pois nunca fui obcecada em maquiagem. Somente aos 26 anos que iniciou se maquiando e logo depois resolveu expandir para outros rostos.

Em 2019, ela sofreu transfobia e racismo por parte de um estilista no SPFW. “Fui impedida de entrar no banheiro feminino do São Paulo Fashion Week. No mesmo dia eu estava trabalhando no time do Dindi Hojah, um maquiador que já fez a beleza do Kanye West. Fui chamada para compor o time com mais outra menina trans”.

Entretanto, o que era para ser um momento de comemoração, tornou-se um dia caótico, já que ela foi barrada do desfile de um famoso estilista, que estava encarando-a durante todo o seu trabalho. Ela foi chamada para retocar uma maquiagem de uma modelo rapidamente.

“O estilista estava se trocando, e ele falou: ‘O que você está fazendo aqui, você não devia estar aqui, vai embora daqui’. Foi uma situação muito triste”, narra.

Magô Tonhon
Leo Faria

Magô Tonhon

“Pessoas cis conseguem sempre mais trabalhos. E, ainda, sempre ocorre de maquiadoras trans só serem chamadas para maquiarem pessoas trans, isso não necessariamente é ruim, mas podemos maquiar todos os tipos de pessoas”, pontua Tonhon.

Em outro caso, seu trabalho foi questionado por um stylist que também faria parte da equipe que assinaria a capa da Harper's Bazaar da cantora Majur: “Esses tipo de transfobia, seja velada ou descarada, verbal ou física, são bastante comum”.

Rede de apoio

A rede de apoio entre pessoas transvestigêneres é outro ponto importante que ocorre dentro desse meio. Quando há alguém no backstage com elas, sentem-se aliviadas. “Eu já maquiei a Deputada Estadual Erica Malunguinho e quando ela soube ser eu, ficou aliviada. As pessoas transpiram aliviadas, e automaticamente assuntos de hormonoterapia, relacionamento familiar, afetivo e questões relativas à nossa vivência surgem e cria-se um ambiente acolhedor”, conta Magô.

“A rede de apoio é nós por nós, quando uma ganha um edital coloca duzentas, aí a outra escreve um edital e coloca mais duzentas. Outra ganha mais alguma coisinha e  coloca mais outras de novo”, retorna Vicenta Perrotta finalizando sua colocação.

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** Julio Cesar Ferreira é estudante de Jornalismo na PUC-SP. Venceu o 13.º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão com a pauta “Brasil sob a fumaça da desinformação”. Em seus interesses estão Diretos Humanos, Cultura, Moda, Política, Cultura Pop e Entretenimento. Enquanto estagiário no iG, já passou pelas editorias de Último Segundo/Saúde, Delas/Receitas, e atualmente está em Queer/Pet/Turismo.

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