O ano de 2022 está entre os mais importantes da história para a população LGBTQIAPN+, sendo tema principal da “Parada do Orgulho”, o voto consciente nas próximas eleições que acontecem em outubro. Embora o preconceito esteja enraizado na população de forma geral, houve um grande aumento do “preconceito visível” nos últimos quatro anos e se tornou, mais do que nunca, uma necessidade da população LGBTQIA+, assim como de outras minorias, ter representantes nos diversos âmbitos do governo.
Nas últimas eleições, o Brasil mostrou bons sinais de representatividade, como os exemplos das vereadoras Erika Hilton (PSOL), a mulher mais votada de todo o país, e Duda Salabert (PDT), a mais votada de toda a história de Belo Horizonte, mas, como apontam representantes da comunidade, ainda há muito a melhorar e será necessária a união da população como um todo para que, não somente os direitos LGBTQs, como o das mulheres, negros, indígenas e de outras minorias sejam respeitados.
As maiores dificuldades enfrentadas por LGBTQs na política
“Nós estamos em um processo de grande fricção social e política. Estamos vendo o avanço das forças progressistas que mobilizam direitos, vez e voz das maiorias minorizadas deste país, que são as populações submetidas a um processo de opressão e violência estrutural que dura mais de 500 anos no Brasil”, aponta o senador Fabiano Contarato (PT), em entrevista exclusiva ao iG Queer.
Contarato, que é pré-candidato ao governo do Espírito Santo, alerta que grupos e movimentos de extrema-direita regem contra as minorias e disseminam discursos e atos de ódio, com atentados às liberdades civis e ao princípio do Estado laico, atuando também contra a liberdade de imprensa e disseminação de fake news e, com uma tentativa de minar a lisura das eleições, atacam os órgãos públicos que atuam contra o autoritarismo do Presidente da República, que persegue os LGBTs, negros, indígenas e outras parcelas da população que permanecem vulneráveis em um país machista, misógino e homofóbico.
Em entrevista ao iG Queer – clique aqui para assistir na íntegra – a pré-candidata a deputada federal pelo estado de São Paulo, Erika Hilton, aponta que, apesar de ser a vereadora mais votada do país, não sente uma melhora efetiva nos direitos da comunidade, mesmo que hoje existam mais representantes, ainda há uma grande força na oposição focada em boicotar os direitos das minorias.
“A luta diária faz a diferença e ainda é preciso enfrentar uma grande bancada religiosa, que é muito maior do que as que estão ao lado dos direitos da comunidade LGBTQ+, e que luta para barrar os avanços nos direitos da comunidade”, afirma a vereadora.
Para Erika Hilton a presença e luta da população LGBTQ+ é importante para não deixar ser esquecida, mas é preciso muito para que se consiga dar passos mais amplos. Segundo ela, os partidos, muitas vezes, não compreendem e muitas pessoas LGBTQ+ que tentam entrar na política não encontram respaldo e enfrentam dificuldades muito maiores.
Para Andrea Cassa (PSOL), mulher lésbica, professora em escola pública e pré-candidata a deputada federal pelo Rio de Janeiro, a maior dificuldade enfrentada por pessoas LGBTQI+ no cenário político já começa ao tentar entrar nele, por ser dominado por um padrão heteronormativo e de “índole duvidosa”.
“Eu estou me candidatando pela primeira vez a um cargo parlamentar, para a Câmara dos Deputados, e é muito difícil encontrar espaço”, diz Andrea.
“Quase não há espaço para quem já está na política há muitos anos, para nós que estamos tentando entrar é ainda mais difícil. Dentro de todos os partidos, incluindo o meu, eles dão prioridade às candidaturas e pré-candidaturas mais antigas. Aos quadros e nomes que já estão na política há mais tempo”, afirma a professora, que destaca que, apesar de já ter 25 anos de militância na luta pelos serviços de educação e saúde pública, encontra dificuldades de ser ouvida.
Dani Balbi (PCdoB), mulher trans, professora universitária pela UFRJ e pré-candidata a deputada estadual pelo Rio de Janeiro, aponta que certos valores conservadores que compõem a sociedade brasileira funcionam como amarras estruturais para o desenvolvimento de uma cultura mais plural e diversa no país, e que esses valores se expressam na política, seja no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas ou nas Câmaras Municipais.
“Em tempos normais, esses já são obstáculos complexos para a inserção de nossa comunidade na política. Mas a situação é ainda pior, pois não estamos em tempos normais”, afirma Balbi. “Estamos em um cenário em que o Presidente da República instrumentaliza o Estado brasileiro em nome de valores que não são apenas conservadores, mas sim reacionários. Então eu não tenho dúvidas de que estamos em um momento de extrema dificuldade para a nossa comunidade. E é justamente por isso que minha pré-candidatura não é um mero desejo individual, mas sim uma exigência coletiva e democrática que a realidade nos impõe”.
Ainda com tantas dificuldades e combates às minorias, hoje é possível ver grandes nomes que representam os ideais de minorias étnicas, sexuais e de gênero. Théo Souza, homem trans, palestrante e “multiartivista” (multiartista e ativista) preto focado em causas de diversidade e inclusão, acredita que, em um contexto histórico é inegável que houve um grande avanço no que diz respeito à diversidade na política, mas que ainda é preciso avançar muito.
“Há muitos entraves gerados pelo governo atual (que é explicitamente antagonista das pautas sociais e LGBTI+) e ainda temos muito o que avançar para que tenhamos homens trans, pessoas com deficiência, mais pessoas negras, pessoas intersexo e pessoas de cada vez mais recortes dentro do parlamento, para que possamos representar a sociedade (e a comunidade LGBTI+) de forma cada vez mais justa e coerente com a realidade”, afirma Théo.
Para o ativista, o avanço nesses debates pode ser ainda maior com o impacto de pessoas mais jovens votando e que histórias como as das vereadoras trans, Erika Hilton e Duda Salabert, possam se repetir em um contexto nacional, levando representantes LGBTQ+ também às Câmaras Federais.
Vale ressaltar que, tão ou mais importante que eleger bons candidatos aos cargos de Presidente da República e Governador, é necessário escolher bons representantes para as Câmaras estaduais e federais, pois são eles os responsáveis por criar projetos de lei e fiscalizar os atos de governo, relevantes para a população como um todo.
Para Contarato, esse retrato social se manifesta no Congresso Nacional, onde é o primeiro senador declaradamente homossexual.
“Já apresentei diversos projetos em favor da população LGBT, e o Senado aprovou nosso projeto que derruba a proibição de homens que se relacionam com outros homens de doarem sangue, que é um absurdo sem qualquer respaldo científico e traduz inclusive os preconceitos enraizados numa área-chave do Estado: a saúde pública como direito básico inscrito na Constituição”, diz.
O senador afirma ser necessário um caminho de diálogo com posições divergentes, articulação política para evitar a aprovação de retrocessos e constante interlocução com a sociedade civil, para isso é de total importância que a população LGBTQ+ ingresse na vida pública.
“O Parlamento é o berço da democracia, é voz da sociedade, e eu sempre estou buscando estimular a população LGBTQIA a buscar um partido político, a filiar-se, a candidatar-se. A representatividade nos centros de decisão política é essencial para nossa luta. Se abrirmos mão desses espaços, nossos algozes vão seguir dominando-os e nos atacando”, alerta o senador.
Projetos de lei que não saem do papel
Contarato diz que, tanto no Senado como na Câmara Federal há um forte movimento de reação às pautas de costumes e aos direitos de populações historicamente violentadas, como o povo negro e os povos indígenas e que o avanço não acontece por falta de interesse.
“Há dezenas de projetos barrados e engavetados por falta de vontade política. Nossa luta é para assegurar, em marcos legais, os direitos que nós, LGBTs, conquistamos por via judicial, como o reconhecimento do casamento entre pessoas de mesmo sexo e o direito à adoção”, diz o senador, pai de duas crianças com o marido, Rodrigo Groberio.
Para Andrea Cassa, há um problema até mesmo entre os partidos da esquerda, que muitas vezes deixam de defender certas causas para não se comprometerem com a sociedade e não perderem o eleitorado, “eles não entram no debate, essa é a maior dificuldade”.
Além desse aparente medo por parte da esquerda, há uma direta oposição da direita conservadora que, segundo Cassa, tem a própria pauta “que é de negar direitos humanos a toda a comunidade LGBTQI+, aos negros, aos quilombolas, aos indígenas". "Vivemos hoje no Brasil um momento extremamente difícil, onde o ódio, a intolerância e o preconceito imperam”. Ela acrescenta ainda que bancadas conservadoras bolsonaristas jamais vão concordar com a simples existência de pessoas LGBTQ+ e que há o interesse em retirar todos os direitos conquistados ao longo de quase 40 anos de luta.
Erika Hilton também menciona o exemplo de um projeto de lei que se tratava de gêneros alimentícios entre as pautas da Câmara Municipal de São Paulo, mas que foi barrado apenas por conter a palavra “gênero”.
“O projeto se tratava de ‘gênero alimentício’, para nós entendermos o lugar em que estamos. As pessoas buscam por palavras-chave, exatamente para se colocarem na contramão. Eles não estão discutindo o mérito, mas sim os direitos, se é para a população LGBT não importa...”, denuncia.
Balbi afirma que a única forma de mudar esse cenário é ampliar a voz das minorias na política, equilibrando a força entre as bancadas: “Precisamos alterar a correlação de forças no mundo institucional e o primeiro passo para isso é elegermos mais e mais representantes da nossa agenda em outubro deste ano”.
O que precisa mudar e como melhorar o país para as minorias
Para Contarato, é necessário realizar uma grande conscientização sobre o voto, e isso exige que as pessoas se mobilizem, protestem, se organizem nas comunidades e, além disso, acionem e cobrem os parlamentares.
“A informação é um tesouro inalienável. Abri mão de minha privacidade para contestar um fato absurdo e lançar luz sobre um direito que me foi negado no processo de adoção de meu filho Gabriel”, conta o senador, alertando sobre a importância de se atentar aos direitos básicos que correm o risco de desaparecer por não fazerem parte da legislação.
“Entre as conquistas alcançadas pela via judicial, o direito de adoção é, sem dúvida, um dos mais importantes. Assegura um direito básico às famílias homoafetivas e possibilita que estas se constituam em pé de igualdade com as demais. O fato, no entanto, de este ainda não ser um direito inscrito na legislação brasileira gera insegurança quanto a uma possível reversão, no caso de uma mudança da composição do Supremo Tribunal Federal (STF), e aumenta as chances de que indivíduos e instituições se recusem a reconhecê-lo”, analisa o senador.
Para casais homoafetivos, o parlamentar alerta sobre o direito à dupla paternidade/maternidade na certidão de nascimento da criança, já que ele mesmo teve esse direito negado por um promotor do Espírito Santo, que usou de argumentos homofóbicos contra a decisão.
“O recurso foi, felizmente, rejeitado pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo, e entrei com uma representação contra esse promotor no Conselho Nacional do Ministério Público”, continua.
“Sabemos, no entanto, que, em muitos casos, quando as pessoas não conhecem seus direitos ou não têm recursos para impugnar esse tipo de decisão ou manifestação homofóbica de autoridades, essas decisões judiciais acabam prevalecendo, mesmo sendo contrárias ao entendimento do STF. Essa é uma das razões pelas quais o Congresso precisa reverter a negligência em relação à consagrar proteções e direitos LGBTQIA+ no ordenamento jurídico brasileiro”, pontua o senador.
O direito à educação
Théo Souza, como pessoa trans, opina que é preciso maior acesso e implementação dos direitos da comunidade como um todo. “É por isso que é importante termos cada vez mais pessoas LGBTI+ (principalmente trans, que são geralmente mais invisibilizadas e marginalizadas), negras e com deficiência na política. Mas, para isso acontecer, é importante que tenhamos uma boa educação (e o acesso democrático a ela) e consciência social para demandarmos mais e elegermos cada vez mais pessoas diversas e que compreendam as demandas coletivas até a presidência”, afirma.
Andrea Cassa afirma também que é preciso mudar todo o sistema público de educação no país, por meio da capacitação e inclusão de professores. “Nossa escola não acolhe a diversidade, quando acolhe, é só no papel. Nós não temos profissionais de educação formados para aceitar e atuar com a diversidade”, aponta.
Para Cassa, há um grande problema ao lidar com a diversidade em todos os níveis de educação, que não sabe como lidar com a diferença, sendo preciso investir na formação de profissionais, da educação infantil (ensino fundamental e médio) até a educação de nível superior.
“Hoje, por exemplo, para uma mulher negra travesti entrar em uma universidade é muito difícil. Terminar um doutorado, ou um pós-doutorado, é quase impossível”, diz.
O que o eleitor pode esperar
Cassa afirma ter como proposta usar da experiência como professora de escola pública para levar ao Congresso Nacional uma unificação pedagógica em um projeto de educação que unifique toda a nação, resguardando as diferenças regionais e culturais.
“Nós precisamos ter uma educação que inclua os LGBTs, a cultura negra, a cultura dos povos originários. Que inclua e respeite. Nós precisamos falar sobre as nossas diferenças, sobre as nossas culturas. Isso não é falado no Brasil, e se não é falado, as pessoas não conhecem. E se não conhecem, não respeitam. Essa é a minha plataforma principal: uma educação inclusiva em todos os níveis de diferenças culturais. Não estou falando de ente federativo, nem das fases e as modalidades da educação básica”, conclui.
Dani Balbi diz ter um programa amplo que parte do combate ao racismo estrutural até a ampliação dos investimentos em ciência e educação. Ela ressalta questões que considera fundamentais para a comunidade LGBTQ+.
“Em primeiro lugar, é preciso lutar pelo incentivo da inclusão da população trans no mercado de trabalho. Em segundo lugar, o Rio de Janeiro precisa urgentemente de um programa que vise a emancipação da população transexual e travesti à exemplo do ‘transcidadania’ implementado na cidade de São Paulo na gestão Haddad. Em terceiro, precisamos de reserva de vagas nas escolas, universidades e concursos públicos do estado para pessoas trans de acordo com percentual indicado pelo IBGE. Por fim, defendo a existência de incentivo fiscal para empresas que empregarem pessoas trans. Os desafios são enormes, mas nosso programa que está sendo construído coletivamente busca saídas factíveis para enfrenta-los”.
Dá para ser otimista?
Para Fabio Contarato, sim. Para ele há uma mudança de comportamentos que exerce forte impacto na sociedade.
“Já fui alvo de homofobia muitas vezes e fui à Justiça, e posso destacar um caso concreto. O Ministério Público Federal propôs acordo ao empresário bolsonarista e presidente do PTB de São Paulo Otávio Fakhoury para encerrar acusação criminal pelo crime de homofobia (art. 140, §3º, c/c art. 141, §2º, ambos do Código Penal), após postagem ofensiva contra mim em uma rede social ”.
Para o MPF, os casos de homofobia, como ordenado pelo STF, se equiparam aos crimes de injuria racial. Contarato explica que, ao empresário, que é réu primário, foi proposto um acordo que leva a penas alternativas. Porém, caso não seja aceito o acordo, o processo prosseguirá e pode resultar em reclusão de três a seis anos, além de multa.
“Sem dúvidas, trata-se de importante reconhecimento, por parte do Ministério Público, no sentido de que crimes raciais e de ódio, como a homofobia, merecem repressão criminal. Este caso inspirará outras vítimas de preconceito a não deixarem crimes dessa natureza passarem impunes. No entanto, temos que refletir se a legislação atual, que permite acordos nestes casos, está ajustada aos anseios da sociedade, no sentido de punições mais rigorosas a todos aqueles que aviltam a dignidade de grupos vulneráveis”, alerta o senador.
Théo Souza também se mostra positivo, apesar dos resultados das últimas eleições, ele acredita que a experiência, dentro e fora da internet, serviu de alerta quanto a importância de uma boa educação política e social, desta forma pode haver uma grande mudança em relação à representatividade nas eleições deste ano.
Em quem os eleitores devem ficar de olho
Para que os avanços apresentados nas últimas eleições, especialmente as municipais, nas quais muitos representantes e apoiadores da comunidade LGBTQIAP+ foram eleitos, é fundamental que o eleitor – seja LGBTQ ou não – preste atenção em quem irá votar, avaliando não apenas as propostas e promessas de um candidato, mas também o que foi feito por ele ou ela no passado.
Para Théo, existem nomes importantes no parlamento, destacando a importância de identidades trans negras que carreguem a interseccionalidade, ocupando e ampliando cada vez mais esses espaços.
“Temos Erika Hilton, Erica Malunguinho, Lins Roballo, Benny Briolly, e também a Duda Salabert. No contexto LGBTI+, temos David Miranda, que é cis gay, suplente do Jean Wyllys no Congresso, e muitas vezes contamos também com o apoio de mandatos regionais de mulheres cis negras (que também vêm crescendo nos últimos anos)”, diz o ativista.
Dani Balbi aponta nomes que, para ela, representam inspiração na política brasileira: “Infelizmente, a representação LGBTIA+ ainda é insuficiente. Aqui no Rio me espelho muito na deputada Enfermeira Rejane, mulher lésbica do meu partido. Outros nomes que me inspiram são a Erica Malunguinho e a Isa Penna, em SP, a Ruth Venceremos em BH e muitas outras”.
Para Andrea Cassa, entre os principais nomes na política brasileira hoje estão, Erika Hilton, Erica Malunguinho, Colle Christine e Bárbara Aires. A pré-candidata também relembrou, como fonte de inspiração, a ativista trans Alessandra Makkeda, morta em maio, vítima de um mal súbito.
“A representatividade política envolve acolhimento de vozes, expressão de grupos até hoje silenciados, militância de toda a comunidade LGBT em cada município, em cada cidade, em cada canto do país. Temos uma tarefa desafiadora pela frente, e o caminho que sugiro sempre é o da informação, do engajamento sobre nossos direitos coletivos e individuais. Precisamos eleger mais LGBTs, mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pobres, líderes comunitários, porque esse ativismo cresce na base e força a história para o rumo certo, como tem feito o Supremo Tribunal Federal ao assegurar nossos direitos”, completa Fabio Contarato.
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