Painel de palestrantes da Feira Diversa, no Rio de Janeiro, promovida pela Mais Diversidade
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A LGBTfobia ainda é uma realidade em diversos setores da sociedade, o que invibiliza as oportunidades dessa população, assim como os acessos a serviços, benefícios e direitos. Seja em atendimentos por telefone, em lojas, consultas médicas, atendimento no setor público, entrevistas de emprego ou espaços de trabalho e educação, todos os dias a população queer passa por microagressões em diversos ambientes, o que a faz ter um sentimento de não pertencimento em lugares onde a cis heteronormatividade se impõe como predominante.

Para a população trans e travesti - a sigla mais invibilizada da comunidade -, estas situações são ainda mais graves. Contudo, é possível notar que vem ocorrendo um progesso ao longo dos anos e as empresas têm buscado expandir seus olhares sobre uma prática mais humana, diversa e inclusiva.

A consultora de diversidade, Barbara Aires, já atendeu grandes empresas como Petrobras e FGV, além de universidades e escolas públicas e privadas. Ela se tornou conselheira LGBT+, no Rio de Janeiro, em 2011, após ter prestado consultoria no roteiro de programas como "Amor & Sexo" e "Fantástico", ambos da TV Globo, e "Liberdade de Gênero", da GNT.

Para a especialista, há três pontos principais que uma empresa precisa revisar quando deseja ampliar a diversidade no seu time, antes de melhorar seu atendimento a esta população.

"O primeiro é entender a população LGBTQIA+. São desde conceitos mais básicos de sexualidade e identidade de gênero, até uma contextualização social e histórica dos motivos pelo qual essa população é vulnerabilizada e excluída em diversas áreas", afirma a conselheira.

"O outro foco é mais direcionado: orientar a empresa em como receber essa população na companhia, como lidar com o funcionário queer no dia a dia e como preparar o corpo de funcionários para recebê-los. Contratar uma pessoas LGBTQIAP+ em uma empresa que sempre reproduziu a cis heteronorma, mesmo que de forma inconsciente, não é o suficiente, pois é necessário um preparo para que este funcionário permaneça", explica Barbara.

Já o terceiro ponto se refere especificamente ao atendimento mais humano que a empresa deve prestar a população queer.

"O terceiro ponto é saber atender essa população como cliente da empresa, como em setores de serviço, por exemplo. Tem que ter um cuidado a mais e preparar os funcionários porque, às vezes, uma 'piada', uma forma de falar, ou um atendimento um pouco mais impaciente pode acabar esbarrando em uma situação de LGBTfobia", diz.


Setores que apresentam mais resistência à diversidade

Barbara explica que, comumente, as empresas que buscam uma consultoria de diversidade geralmente já têm este trabalho em andamento porque já entendem a importância de um time múltiplo. Para a conselheira, o problema está em dois cenários mais específicos.

"O funcionarismo público, no geral, tem muita dificuldade em ter essa sensibilização. Eu chamo de sensibilização e não capacitação porque entendo que um ser humano não precisa ser capacitado para respeitar o outro. A gente busca que os atendentes que estão na ponta, em qualquer órgão público, estejam preparados para receber a população LGBTQIA+ quando esta precisar de um atendimento", afirma.

A consultora chama o segundo cenário que apresenta mais resistência de "trabalhos ditos masculinos". 

"Esses também são outro ponto importante que tem mais dificuldade para entender a diversidade. Quando uma empresa tem no seu quadro de funcionários uma maioria masculina, geralmente são os casos mais difíceis de serem trabalhados. É onde se tem mais as reproduções de LGBTfobia", diz.

Barbara também revela que chegar a esses ambientes para prestar a consultoria, por vezes, gera uma situação de desconforto para ela, já que muitas vezes os cargos de direção são ocupados por pessoas cis branco héteros que têm dificuldades de enxergarem seus privilégios.

"A recepção não é boa, generosa, acolhedora, amistosa, afetiva ou genuína porque geralmente esses pedidos de consultoria partem do RH, ou de um time de diversidade, que percebe que a empresa precisa discutir a questão, e a diretoria acaba acatando. Contudo, eles de fato não têm essa consciência, da estrutura de privilégios que eles fazem parte. E outro erro é que eles acabam individualizando muito o que a gente aponta como algo estrutural", conta.

A importância do Comitê de Diversidade

Barbara Aires também fala da importância de ter um Comitê de Diversidade dentro das empresas, para que a responsabilidade de abordar estes temas não caia nas costas de um funcionário queer específico.

"Muitas pessoas LGBT+, quando se veem nesse lugar de ter que ser o educador dentro da empresa, não se sentem à vontade porque ficam com muito receio e acaba não reproduzindo muito bem sua função dentro da empresa. A gente sempre recomenda às empresas que elas tenham um Comitê de Diversidade, e que ele seja diverso realmente com pessoas LGBT+, pretas, gordas, deficientes, para que existam visões diferentes sobre cada um desses temas", explica.

A advogada Bruna Cristina Santana de Andrade, CEO e cofundadora da startup Bicha da Justiça - uma empresa de tecnologia que trabalha com educação sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+ e formação jurídica para empresas e advogados - revela que denúncias de transfobia velada nos ambientes de trabalho são comuns no seu escritório.

"A gente tem recebido muitas denúncias de pessoas trans que vão avançando no processo seletivo das empresas e que, quando chega na hora de uma entrevista ou na hora de apresentar uma documentação para um contratação, acabam recebendo uma negativa. Geralmente não é falado de forma explícita que essa negativa ocorreu por se tratar de uma pessoa trans, mas fica evidente pelo comportamento contraditório da empresa", afirma.

A advogada comenta que é possível resolver a questão na Justiça, já que casos deste tipo são exemplos de transfobia: "Em relação a isso, existe legislação, é crime de transfobia e a empresa pode ser acionada dentro da Justiça do Trabalho e pagar a indenização referente a prática deste crime".

Bruna de Andrade ainda traz outros exemplos de transfobia que ocorrem em outros setores como o de consumo e financeiro, devido ao despreparo das empresas e dos funcionários.

"Os bancos de dados das empresas de consumo também são um outro grande problema, porque eles ainda estão desatualizados. De um modo geral, as empresas não conseguem apagar os dados dessas pessoas trans, então o nome morto referente ao gênero com o qual elas não se identificam, acaba voltando à tona", explica.

"A transfobia vai avançando. O Pix, por exemplo, tem sido um problema significativo. Talvez por ser uma tecnologia nova, as empresas não se atentaram em atualizar seus dados, então as pessoas trans têm dificuldade em realizar o serviço com o nome social", conta a advogada.

Além da lei contra a LGBTfobia (7716/89), a advogada explica que existe uma normativa do Ministério Público do Trabalho específica sobre o respeito à identidade de gênero e como isso deve ser observado dentro das empresas.


Bruna comenta que um dos pontos desta normativa do MPT é o direito da pessoas trans de utilizar o banheiro da empresa de acordo com a sua identificação de gênero, o que muitas vezes ainda segue em desrespeito.

"Mesmo em pleno século 21, a questão do uso do banheiro ainda é um tabu dentro das empresas. A proposta de resolução acaba gerando mais preconceito porque às vezes se destina o banheiro de pessoas com deficência para que a pessoa trans possa usar, ou um banheiro relacionado às questões de limpeza e faxina, o que acaba segregando essas pessoas da mesma forma", diz.

Atendimento em cartórios para retificação do nome

A retificação do nome nas certidões de nascimento é outro problema que as pessoas trans e não-binárias enfrentam quando o assunto é atendimento, segundo a especialista. Bruna diz que o cartório é direcionado a fazer as retificações, mas alerta que o desconhecimento ainda continua.

Ela acredita que exista um despreparo dos cartórios como um todo, mesmo que a normativa que permite a retificação direta em cartório - e não por meio da Justiça - já exista há quatro anos. A advogada atribiu esta lentidão na atualização do serviço público no atendimento a população LGBT+ à falta de cobrança e excesso de burocracia neste setor.

"No caso do setor público, os sistemas de cobranças são muito falhos, as penalidades são muito limitadas e até a própria apuração de um possível erro demora tanto tempo que acaba no esquecimento. Falta também adotação orçamentária, que é um problema sério. Dentro do setor público não se faz nada sem previsibilidade de orçamento e dificilmente se coloca como prioridade tratar políticas de diversidade e inclusão", finaliza.

Como tornar uma empresa mais inclusiva?

Uma pesquisa feita pela Mais Diversidade - empresa que presta consultoria, treinamentos e pesquisas -, em novembro do ano passado, sobre as condições de trabalho da população queer, aponta que 54% dos entrevistados não sentem segurança para falar abertamente sobre a orientação sexual ou identidade de gênero no trabalho.

Outros dados da pesquisa apontam que 74% dos entrevistados sentem falta de um trabalho mais inclusivo e 54% sentem falta de mais representatividade queer no mercado. A head de RH e sócia da Mais Diversidade, Amanda Aragão, atua para combater estes dados. Ela conta que percebe que muitas empresas chegam na consultoria com uma visão equivocada do que é contratar uma pessoa queer e que esse é o primeiro ponto que precisa ser trabalhado.

"Sou muito contra à ideia de que a empresa vai 'perder algo' para contratar uma pessoa que pertence a um grupo sub-representado. Tem muita gente que pergunta, por exemplo, 'o que vai precisar flexibilizar?', e eu não sou a favor dessa abordagem", diz a especialista.

"Algo que é inicial é a gente entender o que essa pessoa vai agregar de diferente no time da empresa e não o que vai ser necessário flexibilizar. É muito mais o que a empresa vai ganhar contratando uma pessoa que tem uma vivência diferente, uma perspectiva de vida diferente", complementa.

Outro ponto importante na visão de Amanda é a empresa manter seu banco de dados, quanto a identidade de gênero e sexualidade dos colaboradores, atualizado.

"Quando falamos de pessoas LGBT+, geralmente esse é o último dado que a empresa tem. Elas costumam já terem os dados de gênero - por pressão do RH -, às vezes, os de pessoas com deficência - por conta do cumprimento legal -, depois a empresa olha para a questão racial e, por último, elas se organizam para terem os dados de identidade de gênero e orientação sexual. Como elas vão trabalhar a complementariedade nos times se elas nem sabem quantas pessoas LGBT+ existem na empresa?", indaga a head de RH.



Hora da entrevista

Segundo Amanda Aragão, a entrevista também é um momento importante para trabalhar a diversidade, seja na escolha dos candidatos quanto no tratamento a estas pessoas.

"No momento da entrevista é importante que o recrutador esteja preparado para não fazer perguntas heteronormativas. Por exemplo, para pessoas não-binárias a orientação é perguntar primeiro quais são os pronomes que a pessoa tem preferência em ser chamada. É não ter medo de fazer essa pergunta, entender que ela é desejável, que é muito melhor que errar e, se errar, eventualmente, se desculpar porque faz parte", orienta.

"Acontece muito, por exemplo, o RH está entrevistando um homem e ele diz que é casado, e a próxima pergunta feita é: 'O que a sua mulher faz?', mas em nenhum momento o candidato disse que é casado com uma mulher. Como estamos organizados em uma sociedade que é hétero cis normativa, toda a entrevista, formulário de inscrição, por exemplo, estão pautados neste lógica", explica.

"Se a pessoa trans ainda não fez a alteração do documento, é importante entender que mesmo assim toda a entrevista deve ser feita com o nome social. Se a pessoa for contratada, ela deve receber um crachá, uma carterinha do plano de saúde e outros acessórios de identificação já com o nome social", alerta.

Empresas também precisam orientar clientes e parceiros

Além dos funcionários, a head de RH também acredita que a empresa precisa atuar na mudança de pensamento dos clientes que atende e dos parceiros de negócios, a partir da sensibilização de seus colaboradores.

"Situações de transfobia nem sempre ocorrem a partir dos funcionários. Em empresas de varejo, como grandes supermercados, às vezes esses problemas ocorrem por parte dos clientes. Por exemplo, o que uma empresa deve fazer se um cliente cis fizer uma queixa de utilizar o mesmo banheiro de uma mulher trans? Os colaboradores que estão na loja precisam estar preparados para darem uma boa resposta", afirma.

"Diversidade não é um assunto interno e não acaba somente na contratação. O que a empresa faz se um cliente for LGBTfóbico? O que ela faz se um parceiro de negócio cometer transfobia? Isso também é problema da empresa", finaliza.

Inclusão de pessoas trans no setor hospitalar

Outro setor que ainda precisa avançar na pauta de inclusão de pessoas trans, seja no quadro de funcionários quanto no atendimento, é o hospitalar. A gerente de seleção, Diversidade e Inclusão do Hospital Israelita Albert Einstein, Priscila Surita, explica que a empresa tem atuado em prol desta causa. 

"Temos uma estrutura elaborada para assegurar que quando profissionais trans entrem na organização se sintam apoiados. Esse cuidado começa em nossos processos de seleção, monitorando todos os nossos sistemas para que o nome social seja usado e respeitado em todos os contatos e nos benefícios. Quando alguém é contratado, a equipe de Diversidade, Equidade e Inclusão trabalha para acolher e viabilizar, se necessário, a capacitação das equipes que irão receber estes profissionais", afirma.

A especialista também conta que o hospital atua em parceria com instituições do terceiro setor que apoiam a causa LGBTQIAP+ e, além dessas ações, externamente o Einstein estabelece iniciativas com outras instituições do terceiro setor, para a indicação de colaboradores trans.

"Atualmente, a organização está com o projeto de empregabilidade TransFormar, que é realizado em conjunto com projeto Transcidadania – da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo – que tem um centro de acolhimento LGBTQIA+ na Zona Sul da cidade", diz.


A gerente ainda revela que o hospital vem trabalhando para rever o atendimento médico às pessoas trans e o Grupo Médico Assistencial LGBTQIA+ atua para rever os protocolos médicos para a população trans.

"Trabalhar a equidade em saúde, na adaptação de pacientes da nossa organização é fundamental para diminuir as inequidades no sistema. O hospital tem, até o momento, oito protocolos já publicados com foco no atendimento de saúde da população LGBTQIA+", pontua.

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