O Mês do Orgulho é recheado de pautas sobre a comunidade LGBTQIAP+, e este é um período em que aumenta a procura das empresas por diversidade e consultoria para reestruturar suas políticas internas. Sendo assim, a empregabilidade queer fica em evidência durante o mês.
Contudo, outro tema de muita importância para o combate à vulnerabilidade da comunidade, em especial das pessoas trans - as mais marginalizadas da sigla -, e que não ganha o mesmo destaque, se refere a um passo anterior à ingressão e permanência dessas pessoas no mercado de trabalho: a escolaridade.
Dados do Projeto Além do Arco Íris , do Instituto Afro Reggae , presente no Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021 , produzido pela ativista trans Bruna Benevides, apontam que 56% de pessoas trans estão no ensino fundamental, 72% não estão no ensino médio e apenas 0,02% estão no ensino superior.
Pela falta de políticas públicas direcionadas às carências da comunidade, a sociedade civil se organiza e coloca essas pautas em evidência, mesmo que os recursos sejam escassos e as dificuldades limitantes. Um exemplo de iniciativa pela educação da população trans é o projeto Tô Passada! Pré-Enem .
A assistente de coordenação, Giovana Peixoto, uma mulher cis bi, antes de fazer parte do quadro de voluntários, foi aluna do projeto. Ela explica que a iniciativa nasceu na pandemia, em 2020, e que agora, em 2022 - a primeira turma presencial -, conta com 15 alunos, sendo destes três pessoas trans.
“Quando fui aluna, eu tive contato com poucas pessoas trans porque, querendo ou não, foi um ano muito difícil. Com o passar do tempo muitas pessoas foram desistindo, poucos ficaram até o final [...] Eu sinto que é um lugar onde elas precisavam estar. Eu tenho uma aluna trans que disse que o projeto é o único ambiente que ela consegue realmente ter paz para estudar. Isso me dói bastante, mas também traz uma questão de acalento a essas pessoas. É algo que a gente consegue ofertar”, diz Giovana.
A coordenadora explica que o projeto é uma iniciativa do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) , em Minas Gerais, e que as aulas acontecem em uma sala da universidade.
“Os alunos apresentaram a ideia e a universidade resolveu abranger. É o primeiro semestre que a gente iniciou as atividades presenciais e começaram dessa forma agora no mês de junho. Tem que ter espaço, tanto para os alunos quanto para nós, da equipe. É tudo muito novo. Eu costumo ficar lá mais horas porque tenho que abranger os professores, os alunos. Eles têm gostado bastante. Acho que era tudo que eu queria ter vivido enquanto aluna do projeto no passado”, diz.
Experiência trans no ensino superior
Outra pessoa que também esteve envolvida na organização de um projeto voltado para a educação de pessoas trans é a estudante de Relações Públicas, Clarice Souza, 22. A jovem, que é uma mulher trans, foi voluntária no Prepara Nem
, uma iniciativa da
Casa Nem
, que acolhe pessoas LGBTQIAP+ em vulnerabilidade social no Rio de Janeiro.
“O Prepara Nem era muito voltado para o pessoal que morava na Casa Nem, mas ainda assim pessoas de fora podiam participar. Teve um ano que entrei como voluntária para dar aulas de produção textual. A experiência me fez ter uma outra imagem de projetos do tipo, porque por ser um um curso preparatório para vestibular, eu estava muito com a cabeça voltada para a questão do ingresso à universidade. Com o tempo, percebi que o que eu precisava fazer ali era meio que encaminhar as meninas para conseguirem, pelo menos, um certificado do ensino médio”, conta Clarisse.
A estudante completa dizendo que a experiência a fez refletir sobre as dificuldades que pessoas trans têm no acesso à educação: “A gente consegue ser muito mais produtiva quando ensinamos o básico para a pessoa conseguir o certificado do ensino médio”.
Clarice também relata sua experiência como mulher trans em uma universidade. Ela é formada em Marketing pela Unicarioca e agora está na segunda graduação em Relações Públicas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Ela sente que a experiência atual de graduação, em uma universidade pública, é diferente da que ela viveu na universidade particular.
“Na UERJ eu já consegui começar os estudos com todos os meus documentos atualizados com meu nome social. Consegui até mudar o nome no cartão de alimentação. Eles sempre expressaram muito apoio. Na universidade particular, em contrapartida, eu tive muitas dificuldades nessas questões. No geral, o ensino superior privado é muito voltado para o mercado de trabalho, eles são muito mais objetivos, mas não promovem nenhum debate social - seja em questões em provas e em exercícios ou em debates em sala de aula”, afirma.
Alfabetização trans: um entrave a ser superado
Mais um projeto que reúne esforços para resolver os problemas da educação de pessoas trans é o Espaço Diversidade
, da
ONG Espaço Urbano
. O geógrafo Vinicius Coimbra, um dos idealizadores da iniciativa, explica que o projeto acontece em parceria com a
Casa Florescer
, que acolhe pessoas trans em situação de vulnerabilidade, como foco em mulheres, na cidade de São Paulo.
“Na ONG eu trabalho com projetos, mas principalmente com educação ambiental. E aí a gente desenvolveu um projeto em 2019 chamado Espaço Diversidade. A pandemia atrasou o início efetivo dessa iniciativa, mas começamos neste ano. O projeto tem várias propostas. Uma delas, por exemplo, é levar conteúdos educativos sobre diversidade para grandes empresas, mas a principal frente é a educacional”, explica o geógrafo.
Assim como a estudante Clarice Souza, Coimbra também identificou que antes de ter um diálogo sobre a inclusão de pessoas trans no ensino superior, é preciso resolver os problema da educação de base.
“Lá nós temos alunas de todos os perfis possíveis em relação à educação. Há alunas que precisam de alfabetização, que precisam terminar o ensino fundamental ou o ensino médio no supletivo, e algumas já no processo de pré-vestibular. A gente trabalha com células de aprendizagem. Reunimos grupos que estão em status educacionais mais parecidos”, explica.
Mesmo com perfis diversos de alunas, o idealizador do Espaço Diversidade explica que a maior demanda, de fato, é por alfabetização.
“Essa questão da progressão continuada, aqui no estado de São Paulo, que passa o aluno de ano independentemente dele ter frequentado a escola ou não, acaba se tornando uma sabotagem para ele. Então, a aluna do projeto acaba tendo muita vergonha, porque ela te fala que está no nono ano, por exemplo, e então você prepara uma atividade de ensino fundamental para trabalhar. Com o exercício, você percebe que a aluna não consegue nem escrever o nome no cabeçalho da folha. Existem alguns passos anteriores aqui”, explica.
O sonho de ingressar no ensino superior
Uma pessoa que passou por um desses projetos e sente que viu sua vida ser transformada é a costureira Veronika Verão, 31: “Eu era da cracolândia. Quando cheguei em São Paulo, vinda do interior, era uma menina que passou pela prostituição, pela droga e estava em situação de rua. Conheci a Casa Florescer e lá rolou um projeto das escolas de samba com costura e eu aprendi a costurar ali, e tudo começou a mudar de pouco em pouco”.
Atualmente a costureira participa de dois projetos: Coletivo Tem Sentimento - de acolhida de mulheres e trans que oferece oportunidade de renda a partir da costura - e o Ação Educação - voltado para a escolaridade.
“O Ação Educação é maravilhoso. Promovemos muitos debates sociais, é babado! A vereadora Érica Hilton [PSOL-SP] foi em uma delas. A gente falou sobre políticas públicas. Foi incrível”, diz a costureira que pretende cursar Administração ou Gestão de Recursos Humanos.
“Hoje eu me sinto nesse caminho de ser alguém, fazer diferença, ocupar cargos de liderança, semear o amor. Também vou saber seguir carreira em um desses dois cursos. Vou ser uma microempresária, então preciso já saber administrar e cuidar dos funcionários, né?”, diz.
Sobre as expectativas de ingressar no ensino superior, a costureira afirma que são positivas, mas que sabe que terá percalços para enfrentar.
“Minha expectativa é uma das melhores. Mesmo que as pessoas tentem e não saibam lidar comigo, eu vou procurar me aproximar e tentar contar um pouco da minha trajetória para, pelo menos, ter um pouco de consideração e respeito sobre a minha caminhada. Sinto medo, mas sinto que eu vou ter que enfrentar isso com muito amor e carinho, porque eu vou ter que reeducar as pessoas que não saberem lidar com esse público trans e vai ser da melhor maneira possível: contando a minha história”, finaliza.
Levantamento sobre educação transmasculina
O Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) lançou em 2021 o levantamento " A Dor e a Delícia das Transmaculinidades no Brasil: Das Invisibilidades às Demandas" , em parceria Instituto Internacional Sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos.
O estudo ouviu 1.217 homens trans e apontou os seguintes dados sobre educação: 40,3% disseram ter o ensino superior incompleto; 23,5% o ensino médio completo; 11% o ensino médio incompleto e 12,7% o ensino superior completo. Esses são os primeiros dados do tipo no Brasil, segundo o coordenador nacional do Instituto, Kaio Lemos.
No momento, o IBRAT realiza outro levantamento específico sobre a educação da população brasileira transmasculina, chamado Mapeamento sobre Educação.
“Esse mapeamento que está rodando agora é específico sobre educação. Então, ele está trazendo dados mais pormenores sobre o assunto, fazendo um recorte de raça, cor, etnia, socioeconômico e territorial. Estamos investigando também as questões relacionadas às pessoas que deixaram de estudar e em que momento elas deixaram de estudar”, diz o coordenador.
Lemos também aponta a dificuldade de realizar este tipo de levantamento de forma voluntária.
“Nós temos várias dificuldades. A primeira delas é a questão de você fazer um levantamento a nível nacional. Você tem que ter um investimento muito bom, um investimento em todos os sentidos, não só financeiro, mas investimento institucional. O estado poderia estar fazendo esse levantamento, esse seria o melhor investimento. Não temos o estado, não temos uma instituição privada, nem uma instituição educacional que faça todo esse processo, então somos nós, a sociedade civil, fazendo isso, o que é muito difícil”, aponta.
“A gente espera dialogar com uma estrutura maior para fortalecer as políticas já implementadas, ou criar novas. Para que possa garantir, não só o acesso de pessoas trans pela educação, mas a permanência delas no ensino. É o principal de tudo. Não adianta a gente ter só acesso. A gente precisa permanecer”, pontua.
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