Apesar das evoluções dentro do mercado de trabalho frente às demandas da comunidade LGBTQIA+, somente 37% das empresas possuem orçamento voltado para diversidade e inclusão, de acordo com uma pesquisa feita pela Korn Ferry, empresa global de consultoria organizacional com 250 empresas no país, em diversos setores. Deste total, 49,9% apontaram que ocorreu uma evolução no cenário empresarial do ponto de vista da diversidade durante o último ano.
Mesmo que com alguns desafios, especialmente no setor de recrutamento de talentos sub-representados, as empresas registraram formação de times inclusivos e diversos, avanço de grupos sub-representados em posições sênior e identificação de talentos sub-representados de alto potencial. Este tipo de levantamento apenas evidencia o quanto determinadas parcelas da população ainda possuem dificuldade de se colocarem no mercado de trabalho e, quando conseguem, não encontram um cotidiano acolhedor e adequado, ainda mais do ponto de vista das mulheres LGBTQIAP+.
Fernanda Rodrigues, lésbica e orientadora diurna do Casarão – organização social sem fins lucrativos, fundada em 2008 para inovar as atuações política e social em favor da cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexual – conta ao iG Queer um pouco da sua trajetória no mercado de trabalho.
“As dificuldades começaram ainda na infância, com intenso bullying na escola. Nesse espaço sofri tentativas de agressão física e constantemente era xingada, sendo chamada de 'Maria sapatão'. Como focar nas aulas, fazer atividades em grupo com pessoas que riem de você ou te batem? Cheguei por conta do preconceito a ser expulsa de cinco escolas. Mesmo assim, concluí o Ensino Médio, além de cursos técnicos para tentar entrar no mercado de trabalho. Felizmente, contrariando as estatísticas, consegui entrar no mercado formal”, explica.
Ela também diz que sempre conseguiu cargos que estavam muito aquém de sua formação. Fernanda chegou a trabalhar, dentre alguns cargos, como serralheira, ajudante de pedreiro, monitora de crianças, técnica de manutenção, produção de cartão de crédito. "Além dos trabalhos serem precários, em sua grande maioria, as pessoas rejeitavam a minha imagem, por ser mais masculinizada, e me julgavam pela minha orientação sexual”, lamenta.
De acordo com Fernanda, ser mulher em uma sociedade patriarcal já é bastante difícil, mas ser uma mulher lésbica, a situação é ainda pior. Ela alerta que em um ambiente de trabalho não vinculado à população LGBT, as agressões verbais e piadas de mal gosto são, muitas vezes, ignoradas pelos gestores.
"Eles acabam fazendo vista grossa em relação a esta violência. Em um ambiente pouco acolhedor e desprotegido, o abandono do trabalho e desestímulo acaba sendo uma triste realidade. Tive problema com ofensas verbais, recusa de trocar de roupa em minha presença em vestiários, dentre outros. Além dos episódios de violência LGBTfóbica envolvendo gerentes ou equipe de trabalho, também sofri violências por parte de clientes que rejeitavam meu atendimento e me ofendiam frente a frente."
Tendo em vista essa realidade excludente, é fundamental que as empresas estejam sempre dispostas a evoluir no quesito diversidade, como aponta Carol Amaro, mulher lésbica e supervisora de Data Analytics da Raccoon.Monks. Para ela, os ambientes corporativos devem “promover uma cultura diversa e inclusiva, se abrirem à inovação". "Automaticamente, novas e diferentes experiências são agregadas, visões de mundo plurais geram debates saudáveis e acolhimentos mais adequados”.
Ao iG Queer, ela também comenta alguns desafios com o qual se deparou no mercado de trabalho, incluindo episódios de assédio. “Enfrentei muitos preconceitos; precisei esconder de colegues e pessoas gestoras a minha orientação sexual por receio de represálias ou demissão. Já fui assediada por homens que falavam coisas grosseiras, por exemplo: 'Isso é falta de macho', além daqueles que insinuavam fantasias sexuais por eu ser lésbica”, pontua. “Pela estrutura já construída de forma errônea e muito preconceituosa, as pessoas disseminam essa falta de respeito e acabam invalidando as capacidades das mulheres lésbicas e das pessoas do grupo LGBTQIA+”.
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Por onde começa a mudança?
Antes de tomar iniciativas que promovam um espaço seguro para mulheres LGBT, é importante que as empresas primeiramente compreendam quais são as prioridades. É sobre isso que fala Ana Tomazelli, Fundadora da Ipefem – ONG dedicada à pesquisa e cuidado de mulheres cis e trans. Ela afirma que as dificuldades são muitas, destacando-se três principais, começando pela necessidade de enxergar cada letra com a sua particularidade.
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"Esse caso nos convida a destacar, principalmente, as mulheres lésbicas (quando falamos em orientação sexual) e as mulheres trans (quando falamos em identidade de gênero), por exemplo. A segunda dificuldade é ter a clareza do querer. Nós, como empresa, de fato queremos pessoas diversas ou nos vemos obrigados a isso? Esse tipo de reflexão precisa acontecer internamente para que os times possam encontrar caminhos de fazer dar certo, mesmo que 'por obrigação'. É feio, é desconfortável, mas, muitas vezes, é por aí mesmo que a coisa começa".
Por último, ela destaca que é o mais sensível de todos, que tem a ver com o letramento, a alfabetização das pessoas em questões relacionadas a gênero e vivências LGBTQIAP+. "Basicamente porque, de novo, muitas coisas se misturam aqui: o senso comum de que pessoas homossexuais são promíscuas; de que pessoas trans são perigosas e, portanto, uma ameaça – é daí para pior”, explica.
Ana ainda reitera uma das questões levantadas por Carol Amaro: o fato das empresas verem as mulheres LGBT como “menos capazes” para realizar determinadas tarefas. “Existe a percepção compulsória de que pessoas fora do padrão são incompetentes, principalmente para a realização de tarefas consideradas complexas em um escritório. E que padrão é esse? O homem-branco-cis-hétero-sem deficiência física ou o intelectual magro de cabelo curto e bem vestido porque é essa a imagem que vemos nos filmes, nos livros, nas novelas, nas propagandas e, nos últimos anos, também vemos com muito mais frequência na publicidade das redes sociais e na vida de influencers digitais”, aponta.
Tendo em vista todos esses pontos, Ana elenca os principais e mais básicos passos para que uma empresa mude a postura acerca do recrutamento, abordagem e convivência com mulheres LGBT.
- “Quem manda na empresa precisa querer que isso aconteça. Pode ser um dono, um presidente, um grupo de sócios, não importa. Parece simples, bobo ou ingênuo, mas é a verdade. E não se deixe enganar: mesmo mulheres na liderança principal de uma Companhia podem ser um empecilho à implementação de políticas afirmativas”
- “É preciso ter uma liderança carismática e genuína dedicada à área. Enquanto o assunto for secundário e não-prioritário, dissolvido entre as áreas, sem um norte, orçamento e agenda, esquece: não vai funcionar”
- “É necessário ter um plano. Apenas ficar levantando dados, recebendo denúncias pelos canais internos e fazendo palestras no mês de Março, não é suficiente. E um bom programa começa com o questionamento – afinal, por que estamos tão preocupados com a identidade e a sexualidade das pessoas?”
Já para empresas que possuem funcionárias LGBT e querem evoluir nas políticas de inclusão, Caio Zaio, sócio da Escola Korú, startup que conecta profissionais e empresas e que tem como um dos objetivos tornar as organizações mais diversas, dá algumas orientações que podem ser úteis.
“O primeiro passo na jornada de inclusão é mapear a quantidade de pessoas LGBTQIA+ dentro da empresa e trabalhar para ter mais representatividade dessas pessoas. Essa representatividade traz segurança para que essas pessoas consigam criar uma rede de apoio e acolhimento entre elas e que consigam ser mais autênticas no ambiente de trabalho. Outro passo importantíssimo é escutar e dar voz para essas pessoas - só elas vão conseguir te dizer se o ambiente é inclusivo ou não para elas", pontua.
Caio também destaca que a conscientização dos funcionários sobre pautas LGBTQIA+ também é uma ferramenta muito poderosa na criação de ambientes inclusivos, pois informação e conhecimento ajudam a formar opinião e respeito pelas pessoas.
"Uma última ação que é imprescindível é garantir o funcionamento de políticas antidiscriminatórias dentro de sua empresa, isto é, todos e todas devem, minimamente, respeitar seus ou suas colegas de trabalho”, explica.
Tendo em vista todas essas possibilidades, é de se esperar que o cenário corporativo melhore para as mulheres LGBT. Contudo, de acordo com Leizer Pereira, fundador e diretor executivo da Empodera, uma plataforma pioneira na construção de negócios inclusivos e preparação de carreira e conexão de jovens com organizações que valorizam a diversidade, existe vontade por parte das empresas, porém as ações efetivas ainda são embrionárias.
“Existe vontade intelectual, mas uma enorme inércia cultural por parte das lideranças. Precisamos de uma liderança mais corajosa e ousada para abraçar a causa e tirar do papel as iniciativas. Precisamos capacitar mais lideranças inclusivas. Estamos no início de uma longa e complexa jornada. Existem estatísticas que apontam a necessidade de mais 100 anos para alcançarmos a equidade de gênero, isto considerando o crescimento dos últimos 15 anos e sem nenhum período de retrocesso futuro”, conclui.
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