Na última semana, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) validou que a Lei Maria da Penha pode ser usada em casos de violência contra mulheres trans e travestis . No entanto, uma petição criada no site do Senado Federal pede para que os termos “gênero”, utilizados nos artigos 5º e 8º da legislação para se referir às mulheres que têm direito ao amparo da lei, sejam substituídos por “sexo biológico feminino”, o que inviabilizaria a aplicação para travestis e mulheres trans não redesignadas (ou seja, que não realizaram a cirurgia de redesignação sexual).
A alteração dos termos usados na lei indicariam que apenas mulheres cisgênero (ou seja, que se identificam com o gênero atribuído ao nascimento) possam recorrer à legislação. Por exemplo, a alteração no Artigo 5 afirmaria que a violência doméstica diz respeito a ações ou omissões baseadas "no sexo biológico feminino que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial" nos âmbitos domésticos, familiares ou de relações íntimas.
O Artigo 8 diz respeito à aplicação de medidas protetivas de outras ações legais que podem ser adotadas para interromper o ciclo de violência, conscientizar e prevenir os atos de violência motivados por gênero.
A decisão do STJ aponta que, assim como mulheres cisgênero, mulheres trans e travestis também são vítimas de uma série de violências motivadas por suas identidades de gênero. Além do sexismo, neste caso, é somada ainda à transfobia. De acordo com relatório organizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 140 pessoas trans foram assassinadas em 2012 – destas, 135 eram travestis e mulheres trans.
A criação da petição é atribuída a grupos de mulheres feministas radicais trans excludentes (também conhecidas pela sigla TERF, do termo em inglês), contrárias à validação. Trata-se de um grupo que acredita que as discussões acerca das mulheres devem ser concentradas no sexo biológico, que seria o único fator de identificação para o gênero feminino, e que afirma agir em prol de uma abolição de gênero.
As TERFs não reconhecem pessoas trans, principalmente mulheres trans e travestis, pelo gênero aos quais se identificam. A comunidade trans, bem como a conquista de direitos desta população, é frequentemente alvo de ataques destes grupos e vista como “ameaça” para os direitos de mulheres cisgênero.
A validação do STJ não anula nem diminui a cobertura da legislação para mulheres cisgênero. Ao iG Queer, Keila Simpson, presidente da Antra, afirma que o avanço de direitos das pessoas trans, especialmente com a Lei Maria da Penha, não visa a retirada de direitos das mulheres cisgênero, mas a amplicação da aplicabilidades de diversas leis para que possam amparar também a população T.
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“As pessoas são expulsas de casa quando se descobrem trans porque a família não compreende, não concebe essa dimensão e individualidade do ser humano. E aí quando ela cai no campo social, existem todos esses ataques, especialmente de pessoas que deveriam auxiliar e combater todas as formas de discriminação”, declara a presidente.
Simpson explica que o movimento trans tem debatido a desgenitalização dessas leis e debates sociais; ou seja, a noção de que a identidade de gênero está, na verdade, atrelada a outro campo que não os órgãos genitais. “Não estamos falando só da questão de direitos – especialmente estes das pautas femininas e de vanguarda –, mas pela igualdade de gênero. Mas as feministas radicais puxam o debate para os genitais”, diz.
“A nossa sociedade é vestida com o corpo coberto, então não é o genital não deve prevalecer. Nós estamos conseguindo almejar nossos direitos com muita luta e vemos esse discurso genitalizante ou patológico. É preciso compreender que a dimensão da mulher é de autodeterminação, de autoidentificação. Parte-se do princípio de respeitar a individualidade e a inviolabilidade do ser humano. Que pauta feminista é essa que parte do pressuposto que não respeita os outros?”, acrescenta.
A página oficial da Antra no Instagram se manifestou contra a petição e afirmou que os grupos de TERFs atuam há anos ao lado de bancadas conservadoras para poder prejudicar o acesso de pessoas trans a esferas públicas e as possibilidades de amparo a esta população, entre elas: uma ação contra a ida de mulheres trans e travestis dentro do sistema prisional a unidades femininas; e tentativas de substituir o termo gênero da Lei do Feminicídio, em 2015, e a lei de combate à violência política de gênero, aprovada em 2021.
“Não vamos recuar. Vamos continuar no embate, provocando o legislativo e o judiciário para que nós possamos, cada vez mais, galgar direitos que nos foram negados durante todo o tempo. Essas pessoas não querem tirar o direito de ninguém; pelo contrário, nossa luta é de ampliação de diversos para quem precisa deles”, conclui Simpson.
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